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Um estranho nas dunas – O Paleo-deserto Botucatu, Parte III

Texto original de Marcelo Adorna Fernandes, adaptado por Aline Ghilardi

 
Durante o XX Congresso Brasileiro de Paleontologia (XX CBP), realizado em 2007 na cidade de Búzios, Rio de Janeiro, foi anunciada pela primeira vez a descoberta dos vestígios do maior dinossauro herbívoro bípede do Estado de São Paulo. Um dinossauro do deserto que habitou o Brasil há mais de 140 milhões de anos. O Paleo-deserto Botucatu, veja as outras partes desta história nestes posts AQUI e AQUI.

Reconstituição do ‘ornitópode gigante’ do antigo deserto Botucatu. Por Marcelo Adorna Fernandes.

 

Os vestígios descritos deste animal são compostos por um conjunto de lajes de arenito contendo seis pegadas. As características das mesmas – com três dedos (tridáctilas) curtos e arredondados (sem evidências de garras, mas ‘cascos’) – indicam que o produtor se tratava de um dinossauro do grupo dos Ornithopoda.

Os Ornithopoda ou ornitópodes consituem uma subordem dos dinossauros Ornitísquios, ou ‘dinos com pelves de ave’, que incluem também os Ceratopsia, os Thyreophora e os Pachycephalosauria. Os dinos ornitópodes englobam animais hebívoros de portes diversificados, todos dotados de um aparelho mastigatório sofisticado, que favoreceu seu sucesso durante o período Cretáceo. Eles apresentavam desde porturas bípedes à quadrúpedes, uma cauda rígida e um bico córneo. O ápice de sua evolução se deu no final do Cretáceo com a expansão dos ‘dinos bico-de-pato’ ou hadrossauros.

O Paleontólogo Marcelo Adorna Fernandes e o conjunto de pegadas do grande ornitópode.

Cinco das pegadas encontradas são pertencentes a uma pista contínua com aproximadamente 3,60 metros de comprimento de uma ponta a outra (veja figura acima), cujos contra-moldes também estão preservados. A sexta pegada trata-se de um registro isolado (Veja figuras abaixo).


Cada pegada possui em média 35 cm de comprimento e 30 cm de largura; um fato bastante exótico quando se considera as proporções das demais ocorrências de pegadas da Formação Botucatu.

Pegada isolada (Esquerda) e contramolde (direita).

 

Existem muitas crenulações (deformações no substrato) ao redor das pegadas e as cristas de arenito em forma de meia-lua são bem evidentes na margem posterior (parte de trás) de cada pegada. Estas meias-luas, quase sempre na direção do mergulho dos estratos sedimentares, são o resultado do deslocamento de areia pelos pés do animal, quando este estava em progressão através das paleodunas (o esforço que ele fazia ao caminhar deslocava a areia para trás). O esforço observado nas pegadas encontradas indica que o dinossauro estivesse subindo a duna do paleodeserto.

Algumas pegadas da pista apresentam-se pouco definidas, devido à areia inconsolidada e seca da superfície ser facilmente deformável (bastante plástica). Animais de grande porte, portanto mais pesados, imprimiriam suas pegadas diretamente abaixo da camada mais seca de areia que sofreria total deformação, sem que houvesse preservação da morfologia dos pés nas camadas superficiais.

Devido ao excesso de peso no substrato arenoso, o animal produtor das pegadas coletadas provocou uma deformação das camadas inferiores de sedimento, transmitindo a impressão em subsuperfície e gerando o que chamamos de undertrack (‘sub-pegada’). O contato do pé do animal com a subsuperfície, possivelmente mais úmida, produziu as crenulações, podendo ter alterado o comprimento real do eixo maior da pegada ao levantar o pé para mudar o passo, revolvendo a areia seca em superfície. — Experimente isso ao caminhar na praia!

Ao todo, quase uma tonelada de rocha contendo os icnofósseis foram coletadas no dia 08 de julho de 2004 na pedreira São Bento, localizada no município de Araraquara no Estado de São Paulo, nas coordenadas de 21o49’03.4”S e 48o04’22.9”W. Estre estas, os registros do dinossauro aqui descrito. Esta pedreira apresenta a secção de uma grande duna fóssil com 20 m de altura e 100 m de comprimento, com mergulho de 29° aproximadamente em direção S-SW. As lajes coletadas estão depositadas na coleção de paleontologia do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Federal de São Carlos (DEBE/UFSCar).

Pedreira São Bento em Araraquara, SP – Corte de uma Paleo-duna. Pode-se observar as pegadas do grande ornitópode em fase de retirada. Foto por Luciana B. Fernandes.

 

Desde os primeiros estudos sobre pegadas fossilizadas da região de Araraquara, em 1976 pelo paleontólogo e padre italiano Dr. Giuseppe Leonardi, somente pegadas com no máximo 15 cm de comprimento tinham sido registradas.

Nunca havia sido registrada a ocorrência de dinossauros bípedes herbívoros deste porte aqui descrito na região Sudeste. Em 30 anos de pesquisa é primeiro registro de um dinossauro de grandes dimensões para a Formação Botucatu. Fato novo e muito importante para a compreensão da evolução dos dinossauros no Brasil e para o entendimento das mudanças ambientais em nosso País.

O Dinossauro Ornithopoda do interior paulista pesava aproximadamente duas toneladas, com uma altura de quase 4 metros e comprimento de 6 metros. Um gigante em se tratando de uma fauna de deserto.

Reconstituição do grande Ornithopoda da Fm. Botucatu. Por Marcelo Adorna Fernandes.

 

Entre em contato com o Paleontólogo Prof. Dr. Marcelo Adorna Fernandes:
Laboratório de Paleoecologia e Paleoicnologia – Universidade Federal de São Carlos, UFSCar
Contatos pelo telefone: +55 (16) 3351-8322
E-mail: mafernandes@ufscar.br
Fernandes, M.A. & Carvalho, I.S. 2007. Pegadas fósseis da Formação Botucatu (Jurássico Superior – Cretáceo Inferior): O registro de um grande dinossauro Ornithopoda na Bacia do Paraná. In: Carlhalho, I.S. et al (eds.) Paleontologia: Cenários da Vida, vol. 1, Editora Interciência.

A fauna do Paleo-deserto Botucatu – O Paleo-deserto Botucatu, Parte II

“O paleodeserto Botucatu foi um gigantesco deserto de dunas, que existiu durante o final do Período Jurássico (145 milhões de anos atrás) e começo do Período Cretáceo (há 130 Milhões de anos), quando os atuais continentes do hemisfério sul ainda estavam reunidos formando o chamado mega-continente austral Gondwana. Este antigo deserto abrangia algo como 1.500.000 Km² e se estendia desde o Estado de Minas Gerais até o Uruguai – em latitude – e da Bolívia até onde antes estava acomodada a África, na costa leste brasileira… Tratava-se de uma verdadeira imensidão de areia, com um clima seco rigoroso e condições aparentemente pouco propícias à vida…. mas apenas aparentemente… — Veja a primeira parte desta reportagem AQUI.

Em um lugar perdido em um pretérito tão remoto, numa era de animais tão diferentes, a curiosidade nos leva a perguntar: que tipo de criaturas viveram em condições tão adversas? É sobre isso que vamos tratar neste post do Colecionadores de Ossos.
Em um ambiente extremamente árido como foi o deserto do Botucatu, dificilmente são preservados fósseis de restos corporais de animais, tais como, ossos ou conchas…… Quanto a partes moles, então, nem pensar. Desta forma, a única maneira de saber quais animais viviam nesse deserto é por meio dos icnofósseis.
Icnofósseis, de forma geral, são registros de um comportamento de um determinado organismo que acabaram por ser preservados em um substrato que, depois de passar por processos químicos e físicos (Litificação), veio a tornar-se rocha.
Os tipos de icnofósseis mais comuns na Formação Botucatu (conjunto de rochas que representam hoje o antigo deserto Botucatu) são pegadas de vertebrados e invertebrados e evidências de alimentação de invertebrados endoestratais (“de dentro do substrato” ou “escavadores”).

Exemplos de comportamento que produzem icnofósseis: locomoção, alimentação, descanso, reprodução, etc. Exemplos de tipos de icnofósseis deixados por estes comportamentos: pegadas, perfurações, ovos, coprólitos (fezes fósseis), etc.

Os icnofósseis na Formação Botucatu são raros em alguns níveis. No entanto, existem estratos onde eles são extremamente abundantes, como por exemplo, aqueles que afloram nas cidades de São Carlos e Araraquara, no interior do Estado de São Paulo. Acredita-se que esta abundância relativa de rastros nas imediações destas cidades seja porque na época em que o antigo Deserto Botucatu existiu, haviam diversos oásis espalhados pela imensidão de areia. Estes abrigavam uma diversificada fauna e atraíam animais a procura de água. A existência destes oásis é corroborada com a própria preservação das pegadas, favorecida somente por causa da umidade.
Mas agora a pergunta que não quer calar: quem eram esses animais?

PERIGO !!!!. Apesar de ser irresistível e tentador atribuir um organismo produtor a icnofósseis… temos que tomar muito cuidado ! Não foram raras as vezes em que a atribuição de produtores a um determinado icnofóssil se mostrou totalmente equivocada, principalmente em se tratando de rastros de invertebrados. Pode-se dizer que, na icnologia de vertebrados isso é mais aceitável, afinal existe uma diferença mais conspícua entre os rastros de um dinossauro e de um mamífero , e dificilmente, eles produziriam um rastro semelhante – ainda assim isso poder acontecer… Entretanto, entre os invertebrados isto é comum, ou seja, grupos de invertebrados pouco aparentados – muito diferentes – podem produzir marcas muito semelhantes e, um mesmo grupo de animais – até mesmo da mesma espécie! – podem produzir rastros muito diferentes. Pense nisto!

Quando não existem fósseis de restos corporais, como é o caso do deserto do Botucatu, os cientistas recorrem, com muita parcimônia e cuidado, aos icnofósseis para saber que animais viviam naquele lugar.
Talvez o mais interessante sobre o Deserto Botucatu seja que, apesar de ser um deserto de mais de 130 milhões de anos, ele se parecia muito com um deserto atual, exceto pelas espécies hoje extintas, claro. Ele abrigava uma fauna adaptada ao ambiente desértico com uma composição semelhante ecológica a que vemos em desertos contemporâneos… vamos ver por quê.
Começando do alto da cadeia alimentar:
Hoje, esta posição é ocupada por mamíferos carnívoros de maior porte, répteis diversos e dinossauros terópodes do grupo dos coelurossauros com penas – as aves! Outrora, no antigo deserto, era ocupada também por dinossauros terópodes, como as aves atuais, mas por representantes de ramos ancestrais hoje extintos. A figura 1 mostra uma pegada de terópode coelurossaurídeo encontrado na Fm. Botucatu. Esta pegada apresenta um comprimento maior do que a sua largura, três dígitos com evidência de garras, sendo o dígito do meio o maior de todos.
Figura 1 – Pegadas de dinossauros atribuídas a Theropoda Coelurosauria encontradas na Formação Botucatu (Fotografias por Marcelo Adorna Fernandes).
Habitando o antigo deserto, ainda, poderia ser encontrado outro grupo de terópode, e sabemos disso por causa da presença de outro tipo de pegada. Estas também com os três dígitos, também com marcas de garras, porém os dedos mais espaçados: características típicas do grupo dos carnossauros (Figura 2). Veja a diferença.
Figura 2 – Pegadas de dinossauros atribuídas a Theropoda Carnossauria encontradas na Formação Botucatu (Fotografia por Marcelo A. Fernandes).
Os carnossauros, e também os coelurossaros, de fato estariam no topo da cadeia alimentar, já que são os maiores organismos carnívoros identificados no registro icnológico.
Existem evidências também de dinossauros herbívoros do grupo dos ornitópodes. Animais bípedes, reconhecidos por pegadas tão compridas quanto largas, com três dedos de extremidades arredondadas (sem marcas de garras), como mostrado na figura 3.
Figura 3 – Pegadas atribuídas a dinossauros ornitópodes encontradas na Formação Botucatu (Fotografia por Marcelo Adorna Fernandes).
E como não poderia deixar de ser dito, destoando da maioria das pegadas de dinossauros geralmente encontradas – todas de porte pouco avantajado – foi encontrada ainda uma trilha muito curiosa pelo tamanho do seu produtor. As pegadas gigantes seriam atribuídas a um grande dinossauro ornitópode, e foram encontradas pelo Prof. Dr. Marcelo Adorna (Figura 4). É muito estranho encontrar pegadas de um animal herbívoro tão grande em um lugar com tão poucos recursos vegetais para sustentá-lo.
Figura 4 – Pegadas atribuídas a um grande dinossauro ornitópode encontradas na Formação Botucatu. Ao fundo o Professor Marcelo Adorna, um grande estudioso dos icnofósseis desta Formação.
Nos desertos atuais existem ainda pequenos mamíferos muito bem adaptados às árduas condições dos ambientes desérticos. No deserto do Botucatu não faltavam estes animais. Eles ocupavam uma posição intermediária na cadeia alimentar, como as várias espécies de roedores atuais. A figura 5 mostra os característicos rastros deixados por eles. A figura 6 mostra uma cena que seria comum quando o deserto do Botucatu existia: uma interação entre dinossauro e um mamífero da época.
Figura 5 – Rastros identificados como Brasilichnium elusivum – atribuídos a mamíferos de pequeno porte – encontrados na Formação Botucatu (Marcelo Adorna Fernandes). Escala = 10cm.
Figura 6 – Uma interação comum entre um representante do grupo dos Dinossauros Theropoda e um mamífero durante o final do Jurássico, começo do Cretáceo, na região que compreendia o deserto do Botucatu.
Figura 7 – Reconstrução do paleoambiente durante o final do Jurássico, começo do Cretáceo, no deserto do Botucatu, com integrantes comuns da sua fauna: escorpiões, insetos e pequenos mamíferos.
Atualmente é muito comum encontrar em desertos diversos grupos de artrópodes adaptados a ambientes áridos, tais como, aranhas, escorpiões e variados insetos….. no Deserto Botucatu não era diferente. Existem icnofósseis atribuídos a esses animais que atestam a existência pretérita de animais muito semelhantes aos atuais no paleo-deserto (Figura 7).

Entre os invertebrados, além dos que deixam marcas na superfície (epiestratais), existem também registros de Taenidium isp, que consistem em escavações sinuosas e meniscadas (em forma de menisco) atribuídas a anelídeos ou insetos coleópteros (Figura 8).

Figura 8 – Rastros identificados como Taenidium isp. Atribuídos a invertebrados (anelídeos ou insetos). Esta laje em especial antes de ser tombada no Museu de Hist;oria Natural Prof. Dr. Mário Tolentino, na UFSCar, era usada como pavimentação de uma calçada na cidade de Araraquara, SP.
Esses invertebrados poderiam ter servido de alimento para os mamíferos, já que estes animais conviveram juntos.
Os rastros fósseis do Botucatu são um testemunho muito interessante sobre um ambiente bastante particular do passado: um colossal deserto com dunas esparsamente pontuadas de oásis. Conhecer a diversidade biológica deste lugar é um desafio por causa da escassez de restos corporais preservados de animais e plantas. Até agora, apenas troncos fóssilizados foram encontrados, todos retirados da região de Minas Gerais.
Estes indicam a presença de gimnospermas, plantas do grupo dos pinheiros e araucárias. Já quanto a fauna, representativos e bem preservados icnofósseis nos permitem obter uma sólida idéia de como seria o cenário Juro-cretácico. Eles fornecem uma verdadeira e fantástica janela para que possamos vislumbrar a vida e as interações dos habitantes daquele ambiente passado.
Referências Bibliográficas
FERNANDES, M. A. Paleoicnologia em ambientes desérticos: análise da icnocenose de vertebrados da pedreira São Bento (Formação Botucatu, Jurássico Superior – Cretáceo Inferior, Bacia do Paraná), Araraquara, SP. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza. Instituto de Geociências. Rio de Janeiro, 2005.


FERNANDES, M. A.; CARVALHO, I. DE S. Revisão diagnóstica para a icnoespécie de tetrápode Mesozóico Brasilichnium elusivum ( Leonardi , 1981 ) ( Mammalia ) da Formação Botucatu , Bacia do Paraná , Brasil. Ameghiniana, v. 45, n. 1, p. 167-173, 2008.


FERNANDES, A. C. S.; CARVALHO I DE S.; NETTO, R. G. Ichnofósseis de invertebrados da Formação Botucatu, São Paulo (Brasil). Anais da Academia Brasileira de Ciências, v 62, n. 1, p. 45 – 49, 1990

A seguir, continuando a série de artigos sobre a Icnologia da Formação Botucatu: Um estranho gigante nas dunas e Xixi de dinossauro.

>Mais novidades do Brasil, dessa vez do Rio Grande do Sul!

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Herbívoros dente-de-sabre do permiano brasileiro

Encontrado ainda em 2009 na região de Tiaraju, São Gabriel, no Rio Grande do Sul, Tiarajudens eccentricus é realmente um animal fascinante! Um herbívoro ‘dente-de-sabre’???

Imagem mostra os dentes de sabre de Tiarajudens. Foto de Juan Carlos Cisneros.


A novidade foi publicada na revista Science (AQUI) por Juan Carlos Cisneros e colaboradores. Tiarajudens foi retirado de estratos de idade permiana (Capitaniano) do Estado do Rio Grande do Sul, em afloramentos da Paleorrota. O animal, um anomodonte (Synapsida, Therapsida) herbívoro, apresenta características peculiares: dois enormes dentes em forma de sabre.


Reconstituição artística de Tiarajudens por Juan Carlos Cisneros.

Carnívoros dente-de-sabre são bem conhecidos e bastante frequentes, todavia herbívoros com esta característica são animais mais excêntricos. Alguns herbívoros-dente-de-sabre conhecidos são os Titanoides, mamíferos Pantodonta do Paleoceno, que viveram há cerca de 60 milhões de anos na região de Dakota, EUA, e alguns cervídeos atuais, como Hydropotes inermes (Veja imagem, não é primeiro de abril), cujos machos têm dentes bastante alongados e semelhantes a presas.

Hydropotes inermes, o veado com dentes-de-sabre chinês.

Tiarajudens seria o herbívoro-dentes-de-sabre mais antigo, já que viveu há 265-260 milhões de anos. O animal tinha o tamanho aproximado de uma anta (Tapirus terrestris) e além dos caninos de sabre, apresentava uma série de dentes no céu da boca, que serviam como dentes de reposição; incisivos achatados como os de cavalos, para cortar e arrancar plantas; e molares como o de uma capivara para triturar a matéria vegetal. A heterodontia (dentição com dentes de formato diferentes) não é um aspecto comum entre os terapsídeos anomodontes. Tiarajudens seria um dos primeiros desses animais com heterodontia. A capacidade de processar alimento dessa criatura deveria ser muito eficiente.

Os autores especulam sobre a utilidade dos grandes dentes de sabre: ou serviriam para afugentar predadores ou intimidar rivais da mesma espécie.


Reconstituição artística de Tiarajudens por Juan Carlos Cisneros.

Juan Carlos Cisneros Martínez é professor e pesquisador na Universidade Federal do Piauí (UFPI), especialista em anatomia e filogenia de tetrápodes permo-triássicos do Gondwana, estuda principalmente as bacias do Paraná e Karoo; também atua como ilustrador cientíifico.

O predador com hábito social mais antigo que os dinossauros

Decuriasuchus quartacolonia, também encontrado no Rio Grande do Sul, em estratos Triássicos de cerca de 240 milhões de anos atrás (Fm. Santa Maria), trata-se de um predador da família Rauisuchidae (grupo de arcossauros que viria dar origem aos crocodilos modernos). Foi descrito por Marco Aurélio França e colaboradores na revista alemã Natürewissenschaften (AQUI).

Crânio de um dos espécimes de Decuriasuchus.

Foram encontrados 10 esqueletos dessa mesma espécie, sendo que 9 deles, estavam dispostos uns sobre os outros. Os autores interpretaram o fato como uma evidência de hábito social destes animais. A aglomeração indicaria uma associação ecológica complexa, possivelmente envolvendo atividades em grupo, como a caça.

Os fósseis foram descobertas pelos pesquisadoress Jorge Ferigollo e Ana Maria Ribeiro do Museu de Ciências Naturais (MCN) da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB-RS), há 10 anos atrás, no município de Dona Francisca, região de Quarta Colônia, no interior do Rio Grande do Sul. Além de Marco Aurélio França, Jorge Ferigollo e Max C. Langer (associado a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP-FFCLRP) também foram responsáveis pela descrição do animal.

O predador de 2,5m de comprimento foi nomeado com base em uma referência ao exército romano, aonde ‘Decuria’ trata-se de uma unidade composta por 10 soldados. Já ‘quartacolonia’ refere-se à região aonde o animal foi encontrado.

Reconstituição artística do esqueleto do animal.

Os primeiros registros de comportamento social entre espécies da linhagem dos arcossauros são 10 milhões de anos mais recentes que as rochas onde foram encontrados Decuriasuchus. Assim, este seria o registro mais antigo de hábitos sociais entre os arcossauros.


Marco Aurélio Gallo de França estuda anatomia, evolução e sistemática de arcossauros (principalmente Rauisuchia e Dinosauria), está associado à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP).

Mais novidades por vir!! Aguardem!!

>Novos vertebrados do Mesozóico brasileiro – Começamos bem 2011!

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Depois do anúncio de Tapuiasaurus em fevereiro, somam-se à lista de vertebrados mesozóicos do Brasil o gigante dino carnívoro Oxalaia, mais um bizarro crocodilomorfo terrestre – Pepesuchus – e Brasiliguana, um pequeno lagarto da região de Presidente Prudente, SP… 
Mas isso não é só, ainda há muito mais por vir!!

Tapuiasaurus foi descrito ainda em fevereiro na revista científica de divulgação livre, PLoS ONE (acesse o artigo aqui). O anúncio do bicho foi um sucesso: Dinossauro na cabeça! Um crânio completo foi apresentado por Zaher e colaboradores e o estado de conservação do material deixou pesquisadores do mundo inteiro boquiabertos. Tapuiasaurus pertence a um grupo de dinossauros chamado de saurópodes (dinos gigantes de pescoço e cauda longos) e mais especificamente a um ramo chamado de ‘titanossaurídeos’. Crânios de dinossauros saurópodes são relativamente raros, já que tendem a logo se desarticular do corpo depois da morte do animal. Por isso Tapuiasaurus foi recebido com tanta festa.!
A idade do fóssil está entre 125 e 112 milhões de anos. Ele foi encontrado nos estratos cretácicos da Bacia Sanfranciscana, nas imediações do município de Coração de Jesus, Minas Gerais, próximo a divisa com a Bahia.
Não só o crânio, mas vértebras, partes da escápula, um rádio e um fêmur também foram descritos.
O crânio é impressionante. Com o focinho alongado e a abertura nasal na altura dos olhos, ele lembra aquele de outros titanossauros como Rapetosaurus e Nemegtosaurus. Porém, Tapuiasaurus viveu bem antes destes animais – pelo menos 30 milhões de anos antes. Em termos evolutivos, essa é uma informação muito importante. Tudo indica que este formato craniano, comumente encontrado em dinossauros saurópodes titanossaurídeos do final do Período Cretáceo, já havia evoluído bem antes do que se pensava.
Uma exposição temática com os fósseis do animal está sendo apresentada no Museu de Zoologia da USP em São Paulo. Vale a pena visitar!! Exposição “Cabeça Dinossauro”.

O crânio de Tapuiasaurus macedoi.

Reconstituição do animal pelo paleoartista Leandro Sanchez.

Quanto a Oxalaia, anunciado à imprenssa brasileira no dia 16 de março, temos um registro bem menos impressionante, mas tão importante quanto o de Tapuiasaurus. Oxalaia tratava-se de um imenso dinossauro carnívoro espinossaurídeo (da família do Espinossauro e do Suchomimus, dinos com o focinho alongado e achatado como o dos crocodilos), que devia medir entre 12 e 14 metros. Seria o segundo maior dinossauro dessa família de terópodes. Os restos do animal foram encontrados ainda em 1999 durante uma expedição da equipe de paleontólogos do Museu Nacional à Ilha do Cajual, no Estado do Maranhão (Leia aqui!). Encontrado na famosa ‘Laje do Coringa’, o nível mais fossilífero da Formação Alcântara, o bicho parece ter sido um elemento comum no ambiente pretérito daquela região, onde são encontrados abundantes dentes do animal. Foram descritos por Kellner e colaboradores dois fragmentos de crânio, considerados suficientes para definir a nova espécie. O trabalho foi apresentado numa edição especial dos Anais da Academia Brasileira de Ciências e pode ser acessado aqui. Oxalaia pode ser considerado hoje o maior dinossauro carnívoro brasileiro. Três espécies de espinossaurídeos já foram descritas para o Brasil: Irritator challengeri, Angaturama limai e Oxalaia quilombensis. O nome Oxalaia faz referência a divindade africana Oxalá e quilombensis à um antigo Quilombo da região da Ilha do Cajual.

Fragmentos do crânio de Oxalaia, descritos por Kellner e colaboradores.

Reconstituição artística do animal por Maurílio de Oliveira.

Pepesuchus pode parecer um nome estranho, mas foi uma homenagem ao Prof. José Martin Suaréz (conhecido por seus colegas como Pepe) para nomear o mais novo crocodilomorfo terrestre barsileiro. Descrito por Diógenes de Almeida Campos e colaboradores, a nova espécie conta com dois crânios quase completos e mandíbulas. O material é proveniente do famoso sítio “Tartaruguito” (Fm. Presidente Prudente, Grupo Bauru, Bacia Bauru), próximo às cidades de Pirapozinho e Presidente Prudente, no Estado de São Paulo. A nova espécie foi classificada como um peirossaurídeo e acrescenta ainda mais ao conhecimento desses animais na Bacia Bauru, Cretáceo Superior brasileiro. Os peirossaurídeos parecem ter sido um dos clados de Mesoeucrocodylia mais bem representados no paleocontinente austral, Gondwana. O material pós-craniano da nova espécie será descrito separadamente.

Reconstituição do crânio de Pepesuchus.
Reconstituição artística de Pepesuchus.

Por fim, não poderíamos deixar de falar de Brasiliguana, também publicado na edição especial dos Anais da Academia Brasileira de Ciências (acesse aqui). Brasiliguana trata-se de um pequeno lagarto dos estratos do Cretáceo Superior da Formação Adamantina, Bacia Bauru, da região do município de Presidente Prudente, SP. O registro de squamatas no Brasil é raro e inclui somente 6 apontamentos: Tijubina, Olindalacerta e squamata indeterminado, da Bacia do Araripe, e Pristiguana e 2 registros também não específicos da Bacia Bauru. Brasiliguana viria a acrescentar este conhecimento.
O animal foi descrito por William Nava e Agustín Martinelli com base em um fragmento cranial, cujos formato e implantação dos dentes, de acordo com os autores, são semelhantes a dos lagartos iguanídeos.

Material descrito de Brasiliguana prudentensis.


Já que falamos tanto da edição especial dos Anais da Academia Brasileira de Ciências, vale a pena checar os outros artigos. Você os encontra disponíveis aqui.

Não deixe de dar uma olhada naquele de Bittencourt & Langer (aqui). O amigo Johnny fez uma fantástica revisão sobre as ocorrências de dinossauros no Brasil e as suas relações biogeográficas. Referência!
As novidades por enquanto são estas, mas fiquem de olho porque tem muito mais por vir!


>As pegadas fósseis do interior paulista – O Grande deserto Botucatu, Parte I

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Texto original por Marcelo Adorna Fernandes – adaptações por Aline Ghilardi

Há aproximadamente 140 milhões de anos, durante o final do Período Jurássico e início do Período Cretáceo, a região onde hoje se localizam as cidades de Araraquara e São Carlos, no interior de São Paulo, era coberta por um imenso deserto que se extendia por uma superfície de cerca 1.600.000 km2 (do sul de Minas Gerais até o Uruguai).

Imagem ilustrativa de como se pareceria o antigo deserto de Botucatu.

Este antigo deserto, chamado de Botucatu, foi um dos maiores que já existiu na história do Planeta Terra, e nele, dinossauros e pequenos mamíferos caminharam em busca de água, que brotava em pontuadas lagoas – oásis – formadas entre as gigantescas dunas de areia. Estes animais pré-históricos deixaram suas pegadas enquanto prosseguiam em suas jornadas diárias, e fortuitamente, estes registros fossilizaram, deixando pistas valiosas sobre a vida misteriosa do passado.
As pegadas fossilizadas são encontradas hoje em lajes de arenito retiradas de algumas pedreiras de Araraquara e São Carlos. Estas lajes foram vastamente utilizadas durante os séculos passados para o calçamento público de diversas cidades do interior paulista. Hoje, as calçadas dessas cidades guardam um tesouro precioso de dezenas de milhões de anos….

Reconstituição da fauna extinta do antigo deserto Botucatu. Por Ariel Milani e Aline Ghilardi.

Como as pegadas fossilizaram?

Pegada de dinossauro carnívoro.

As pegadas deixadas pelos animais que habitavam o paleodeserto de Botucatu eram delicadamente recobertas pela areia trazida pelo vento, que formava camadas sobrepostas protegendo a pista do animal. Depois de milhões de anos, a areia das dunas compactou-se de tal maneira – por cimentação natural dos grãos devida aos sais minerais de sua composição – que transformou-se em rocha (arenito), preservando o registro da vida extinta.
As dunas do antigo deserto continham um certo teor de umidade que também ajudava na preservação das pegadas. Porém, a umidade não era suficiente para favorecer a fossilização dos restos ósseos de animais que ali caminhavam. O clima rigoroso, associado ao desgaste pela ação erosiva dos grãos de areia e o vento, destruía completamente os corpos dos animais. Por isso não encontramos fósseis corporais de dinossauros – ou outros bichos -, mas somente suas pegadas.

Pista de pequeno mamífero.

A raridade de fósseis nesse tipo de ambiente faz com que todas as informações a respeito da vida nos paleodesertos restrinja-se sempre à impressões – vestígios indiretos – como pegadas e escavações para fuga ou habitação, por exemplo.

Pista de pequeno dinossauro carnívoro e detralhe de uma pegada.

Os arenitos da Formação Botucatu

Com o passar do tempo, a areia deste imenso deserto foi sofrendo um processo de compactação. As camadas inferiores de areia foram sendo gradativamente cobertas por novas camadas que o vento trazia, e as pegadas foram “guardadas” num “arquivo sedimentar”. Camada após camada, a areia endureceu formando as rochas conhecidas como arenito, da Formação Botucatu, pertencente à Bacia do Paraná, a mesma rocha que compõe o Aqüífero Guarani.

Diagrama litoestratigráfico indicando o posicionamento da F,. Botucatu dentro da Bacia do Paraná.

Pedreira na cidade de Araraquara, SP, onde afloram os arenitos da Formação Botucatu. Ainda pode-se observar a inclinação da antiga paleoduna.

Calcamento de arenito em Araraquara, SP.

Pegadas no calçamento. Algumas são cobertas com cimento: Alguns moradores as tinham como ‘defeitos’ na calçada.
O arenito foi muito utilizado para calçamentos de vias públicas em Araraquara e região, conseqüentemente muitas pegadas são encontradas ainda hoje nas próprias calçadas de diversas cidades do interior paulista e inclusive na Capital.

O estudo do registro icnofossilífero

O estudo de um icnofóssil (vestígio preservado da atividade de um organismo) é de grande importância, pois pode auxiliar nas interpretações paleoambientais e paleoecológicas de um determinado período de tempo geológico, assim como evidenciar o comportamento dos diversos organismos fósseis.

As pegadas fósseis podem estar preservadas basicamente como impressões (epirrelevo côncavo), correspondendo a moldes das plantas dos pés do animal, e como contra-moldes (hiporrelevo convexo) produzidos pelos sedimentos sobrejacentes nas impressões originais. Devido ao peso, alguns animais poderiam ainda provocar deformações nas camadas inferiores do sedimento, formando as undertracks ou subpegadas.
A partir das pegadas fossilizadas é possível reconstruir o esqueleto do pé do animal, saber como era a pele e musculatura do pé. Também é possível conhecer relações ecológicas destes seres primitivos e sua influência nos ecossistemas. O estudo destes vestígios torna-se algo fascinante e que nos permite reconstruir, passo a passo, a trajetória da vida no Planeta.
O final da existência dos dinossauros do deserto no interior paulista foi selado por um grande evento magmático (registrado como a Fm. Serra Geral), no qual grandes fissuras na crosta terrestre derramaram magma sobre o paleodeserto, mudando o clima e a paisagem e determinando o fim do antigo ambiente do Botucatu. Isso se deu há pelo menos 135 milhões de anos.

Pegadas de pequeno mamífero.

Ilustração representando a antiga fauna do deserto Botucatu. Por Ariel Milani.

Maiores informações sobre o sítio paleontológico de Araraquara no site:
— Em próximos posts: “A fauna do Paleo-Deserto Botucatu”, “Xixi de dinossauro” e “Um estranho gigante nas dunas”