Marvada mesmo
Pinga, cachaça, branquinha, marvada ou, como dizem os gaúchos, canha. A segunda bebida alcoólica mais consumida no país depois da cerveja tem muitos apelidos carinhosos. Já a pedra no sapato de quem a produz atende por um nome comum apenas nos livros de toxicologia e química analítica: carbamato de etila.
Subproduto indesejável do processo de fabricação da aguardente de cana, e de alguns outros destilados, o carbamato de etila causa câncer em animais e provavelmente tem o mesmo efeito em pessoas, segundo classificação da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, ligada à Organização Mundial de Saúde.
A notícia não deve alarmar quem aprecia cachaça com moderação, mas medidas para manter esse contaminante em níveis seguros certamente farão bem a todos os consumidores. Como o câncer é uma doença multifatorial, a prevenção depende da redução dos fatores que contribuam, ainda que pouco, para seu surgimento.
A preocupação com o carbamato de etila em bebidas destiladas surgiu no Canadá em meados dos anos 1980, e hoje boa parte dos países com legislação sobre o assunto adotam o nível proposto pelos canadenses, de até 0,15 miligrama por litro (mg/l). Na aguardente brasileira, porém, esse limite quase sempre é excedido, como mostra artigo publicado em junho deste ano na revista BMC Cancer por pesquisadores brasileiros, canadenses e alemães.
Com base em 19 artigos publicados nos últimos anos, que avaliaram o teor do contaminante na pinga nacional, os autores calcularam um valor médio de 0,38 mg/l. O principal objetivo da pesquisa foi calcular o risco de câncer entre os consumidores expostos a produtos com esse nível de contaminação.
O resultado mostra que, se o limite de até 0,15 mg/l fosse respeitado, o potencial cancerígeno do carbamato de etila na cachaça se reduziria em 1/6 a 1/3, explica Maria Cristina Pereira Lima, da Faculdade de Medicina da Unesp em Botucatu e uma das autoras do artigo. Pode parecer pouco, mas é algo que se soma ao potencial carcinogênico do próprio etanol, associado a tumores do trato digestivo. “É um risco desnecessário e que podemos evitar”, diz a médica. “O etanol não dá para tirar, porque aí já não é mais cachaça.”
O carbamato de etila é hoje uma das principais barreiras para a exportação da cachaça, porque os principais compradores – Alemanha, Estados Unidos, Portugal e França – cada vez mais rejeitam produtos fora da especificação. Em 2009 o Brasil exportou 10,8 milhões de litros de aguardente, mas isso é menos de 1% do que produz anualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, representante das empresas do setor.
Instrução normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, publicada em 2005, estabelecia que destilarias e alambiques nacionais tinham até 30 de junho deste ano para adequar seus produtos ao padrão internacional. Mas a regra valeu por menos de um mês, pois no dia 19 de julho o ministério prorrogou o prazo por mais dois anos. “Há muita resistência entre os grandes produtores”, afirma Douglas Wagner Franco, do Instituto de Química de São carlos, da USP, e referência nacional em química da cachaça.
Os grandes produtores são geralmente aqueles que produzem aguardente em colunas de destilação – torres em que o álcool e outras substâncias voláteis (que dão aroma à bebida) são separadas do caldo de fermentação da cana-de-açúcar. É justamente nesse tipo de pinga que a concentração de carbamato de etila tende a ser maior, segundo Franco. “A contaminação geralmente é menor na aguardente artesanal, que é feita em alambique”, diz.
O pesquisador explica que os alambiques levam vantagem porque neles o processo de destilação é mais lento e feito em bateladas, de modo que as frações inicial e final do destilado, conhecidas como cabeça e cauda, são desprezadas. Aproveita-se apenas a porção intermediária, ou corpo. Na destilação por coluna, o processo é contínuo, não há separação de cabeça, corpo e cauda; logo, tudo é aproveitado.
Cuidar dos detalhes da produção é importante para evitar a formação de precursores químicos do carbamato de etila, já que a maior parte dele se forma após a destilação, como mostraram os estudos do pesquisador de São Carlos. O problema é que não se sabe quais são esses precursores na cana, explica Ian Nóbrega, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, coautor do artigo publicado na BMC Cancer.
Cana venenosa
“A cana-de-açúcar é uma planta cianogênica”, diz Nóbrega. Isso quer dizer que ela, assim como a mandioca e a cevada, tem compostos conhecidos genericamente como glicosídeos cianogênicos, que uma vez degradados ou processados, liberam cianeto, um veneno bastante volátil. “Faz parte do sistema natural de defesa da planta contra herbívoros”, acrescenta. É da reação entre esse cianeto e o etanol que surge o carbamato de etila.
O mesmo inconveniente ocorria com o uísque até os anos 1990, mas foi resolvido quando pesquisadores descobriram a identidade química do glicosídeo cianogênico presente na cevada. Com a revelação, os produtores passaram a usar variedades da planta que liberam pouco cianeto e a destilar mais lentamente, descartando (ou reprocessando) cabeça e cauda, frações nas quais a concentração do tal precursor era maior.
“No caso da cana-de-açúcar, a identidade do glicosídeo cianogênico ainda é desconhecida”, afirma Nóbrega. Logo, é inviável controlar o precursor do carbamato de etila ainda na planta. Restam, segundo ele, apenas os cuidados com a destilação. Para Franco, a aguardente brasileira poderia se adequar aos padrões internacionais se houvesse uma padronização nos métodos de produção, algo que ele vê com certo pessimismo.
Apesar disso, a situação vem melhorando, diz. Há seis anos, apenas 20% das marcas de cachaça passavam no teste do carbamato de etila, segundo o especialista de São Carlos. “Hoje, cerca de 20% são reprovadas”, compara. O problema é que justamente entre essas estão as que os brasileiros mais consomem.
Foto: André Mantelli
Texto publicado na Unesp Ciência, edição de setembro de 2010.
Trovadores caipiras
A Rua do Porto, no centro histórico de Piracicaba, está lotada quando a viola solta o primeiro acorde e o cantador começa a entoar seus versos rimados. É a largada do cururu, o repente caipira.
Como é de praxe, a “função” tem início com a louvação ao Divino Espírito Santo, homenageado da festa que acontece há 184 anos, sempre no início de julho, na cidade do interior paulista mais conhecida por suas pamonhas e seu inconfundível sotaque.
Pela importância do evento e pelo gabarito dos quatro cantadores (ou cururueiros) presentes, esse promete ser dos “bão”, como diria qualquer um deles.
A antropóloga Elisângela de Jesus Santos liga a filmadora para registrar mais uma vez essa tradição folclórica que só existe na região do Médio Tietê, um triângulo geográfico delimitado pelas cidades de Piracicaba, Sorocaba e Botucatu.
Desafio cantado de improviso e ao som da viola, o cururu é o objeto de estudo da doutoranda da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, cuja rotina tem sido perseguir os cururueiros de festa em festa. “Meu trabalho de campo é imprevisível. Quando fico sabendo que vai ter cururu em alguma cidade, eu vou atrás”, diz.
Como não há Festa do Divino de Piracicaba sem apresentação de cururu, lá está Elisângela no dia 10 de julho, acompanhada da reportagem da Unesp Ciência. O palco é simples e rústico, mas os quatro cantadores e dois violeiros – como é o costume – compensam a pobreza cenográfica com uma postura altiva e vestes elegantes.
Tanto Elisângela quanto a plateia sabem que os escalados da noite são da melhor estirpe. Jonata Neto e João Mazzero representam Piracicaba; Cido Garoto (foto acima) e Dito Carrara vieram de Sorocaba.
O cururu é sempre um desafio entre duas cidades, embora cada cururueiro cante separadamente. Apesar do clima de competição, não há vencedor oficial. Quem faz o prestígio do artista é o aplauso do povo, que valoriza a capacidade de improvisar e, principalmente, a criatividade para caçoar do adversário e responder aos seus ataques. Nesse jogo verbal, o humor é presença obrigatória e o limite das provocações é o respeito ao Divino.
Profano e sagrado se misturam nessa que é uma das manifestações culturais de cunho religioso mais antigas do Brasil, explica Elisângela, que no mestrado investigou suas raízes históricas, tão imprecisas como as da maioria das tradições orais.
O que há de consenso entre os especialistas em cultura caipira, porém, é que o cururu tem origem no processo de colonização do interior paulista. É obra do encontro dos bandeirantes com os indígenas que viviam às margens do rio Tietê no século 17.
Com os bandeirantes vieram os jesuítas, hábeis em usar elementos da cultura alheia como veículo de catequese. Assim, introduziram a viola e os versos rimados, legado do trovadorismo da Europa medieval, para disseminar a palavra de Deus entre os indígenas. Esses, por sua vez, incorporaram ao novo ritual cristão uma coreografia que lembrava os movimentos de um sapo – cururu na língua tupi.
O nome ficou, mas a coreografia está completamente extinta no desafio contemporâneo. O escritor Mário de Andrade foi um dos poucos a registrá-la quando percorreu a região com sua Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto que mapeou diversas manifestações culturais populares no Brasil no fim dos anos 1930.
O desaparecimento da dança não é sinal de enfraquecimento da tradição, porém. “O cururu está vivo até hoje por conta dessa capacidade de se transformar no tempo”, afirma a antropóloga.
Quem abre a apresentação da noite é Cido Garoto, 68 anos de idade e 50 de cururu. Por ser o primeiro, é ele quem puxa a carreira, isto é, determina a rima a ser seguida por todos os cantadores naquela rodada.
Como esperado, por causa da festa, Cido começa com a carreira do Divino, o que significa que os versos devem rimar em “ino”. Mas a regra só vale depois do baixão, um tipo de aquecimento entre violeiro e cantador, no qual esse último pronuncia uma sequência personalizada de “la-ri-la-rai”. Em seguida vem a louvação ao Divino e a saudação ao povo, “que é dever do todo cantorino”, canta ele.
Hora de atacar
Logo depois Cido aproveita para alfinetar os adversários piracicabanos, porque um é “são-paulino” e o outro canta como um cachorro “latino” – “latindo” no dialeto caipira. Aplausos da plateia, que assiste ao espetáculo enquanto come pratos típicos, já que o palco fica em frente a uma espécie de praça de alimentação ao ar livre. As barracas em volta vendem pastel, linguiça, virado e até leitoa à pururuca.
Louvação, saudação, ataque e resposta. Essa é a sequência básica seguida por todo cururueiro e que dura entre 15 e 20 minutos em cada rodada. João Mazzero, que se apresentou depois de Cido Garoto, responde à crítica futebolística exaltando o XV de Piracicaba, time da segunda divisão do campeonato paulista, mas que logo “vai tá subino”, segundo ele.
A comparação canina é retrucada por Jonata Neto, para quem Cido quando canta parece uma cadela “parino”. Já Dito Carrara preferiu versos mais focados na religião, no trabalho e na família, num ritmo mais lento que o dos colegas. “Ele é o mais conservador”, contextualiza Elisângela, que já o conhece de outros cururus.
Apesar das provocações, o cururu a que assistimos até que foi bastante moderado, segundo a antropóloga. Em outras ocasiões, como em apresentações em clubes e festas menores, “a coisa pega fogo”, diz.
Nhá Bentinha, 62, uma ex-artista de circo, ex-radialista e atualmente apresentadora de cururu, explica a diferença à reportagem: “Hoje tá tranquilo por causa do Divino, tem que respeitar. Mas tem lugar aí que, Deus ô livre, é baixo calão mesmo”, diz em tom de reprovação.
A presença de Nhá Bentinha nesse universo é representativa das transformações pelas quais vem passando o cururu – prática historicamente masculina -, e que interessam à pesquisadora. “Não gosto muito de cantar. Não tem mulher que canta e pra debater com homem não fica bão. Então eu faço uma saudação e prefiro só apresentar”, justifica ela, que comanda o cururu que acontece a cada 15 dias no Clube Atlético Barcelona, em Sorocaba.
Ao observar apresentações e entrevistar cantadores e outros personagens, a pesquisadora vai fazendo a etnografia do cururu, tema do doutorado, apoiado pela Fapesp, a ser defendido daqui a dois anos. O objetivo geral é revelar a lógica das dinâmicas sociais que estão por trás desse combate simbólico tão arraigado à cultura do Médio Tietê.
“[Essa abordagem] é bem diferente da visão purista do folclorista”, pontua Alberto Ikeda, professor do Instituto de Artes da Unesp em São Paulo que estudou o cururu nos anos 1980 e participou da banca de mestrado de Elisângela, em 2008.
O olhar antropológico também é importante para desfazer estereótipos e preconceitos, acrescenta Ikeda. “Ao contrário daquela imagem do caipira preguiçoso e indolente, o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, com o cururu vemos o quanto a sagacidade e a destreza mental são apreciadas e valorizadas nessa cultura”, compara.
Os próprios cantadores admitem que o cururu está cada vez menos religioso e mais profano. “Antigamente a gente cantava mais na Escritura, agora é mais diversão”, diz Jonata Neto, 79 anos, cururueiro há mais de 50.
“Ninguém mais aguenta ficar ouvindo só louvação”, concorda Cido Garoto, que é também um dos principais divulgadores dessa arte. Escreveu Cururu – Retratos de uma tradição (2003) e é responsável pelo site www.osreisdocururu.com.br.
Segundo Elisângela, a profanação do ritual começou a ocorrer a partir da década de 1940, com a intensificação do processo de urbanização das cidades do interior paulista. Apesar de ainda manter o vínculo religioso, mas já sem a função original de catequese, o cururu contemporâneo é cada vez mais uma prática da sociabilidade caipira.
“Os cantadores passaram a falar mais da vida cotidiana, sobre os acontecimentos da cidade, intensificou-se o desafio entre eles”, descreve.
Versos sensuais
Até o fim do trabalho de campo, é de se imaginar que a pesquisadora terá muitas surpresas, como aconteceu na Festa do Divino de Piracicaba. Lá pelas tantas, Cido Garoto começou a descrever uma cena de sexo, cantando na carreira do A (com versos terminando em palavras como “cantá” e “gostá”).”Vou beijando ela da cabeça até os carcanhá”, rimou. E prosseguiu com versos sensuais que, se não chegam a ser impróprios para menores, foram capazes de surpreender tanto a plateia quanto a antropóloga. Cururu erótico?, pergunto a Elisângela. “Nossa, isso eu ainda não tinha visto”, confessa ela, rindo.
Publicado na edição de agosto de 2010 da Unesp Ciência.
Fotos: Luciana Cavalcanti