Memórias de um subversivo

Lenda viva no meio acadêmico e talentoso cronista, o médico Luiz Hildebrando narra os momentos mais críticos do século 20 por meio de histórias pessoais que ajudam a entender melhor o Brasil e sua ciência.

(Texto publicado na edição de junho/2012 da revista Unesp Ciência)

Aos 83 anos – dos quais 60 de carreira acadêmica –, o médico e parasitologista paulista Luiz Hildebrando Pereira da Silva é um dos mais importantes cientistas brasileiros vivos e em atividade, ainda que pouco conhecido fora desse meio. Mas, mais importante que conhecer suas credenciais científicas superlativas é saber que o narrador destas Crônicas subversivas de um cientista um dia foi um menino que cresceu na zona sul da cidade de São Paulo ouvindo pelo rádio as notícias da Segunda Guerra; foi um estudante que viveu de corpo e alma a efervescência política dos anos 1940 e 1950; e se fez homem num mundo coberto pelas nuvens da Guerra Fria.

Intelectual combativo, militante comunista e habilidoso articulador político, Hildebrando tornou-se uma das primeiras presas da ditadura militar. Expulso ainda em 1964 após uma investigação por “atividades subversivas” na Faculdade de Medicina da USP, da qual era professor, ele passou mais de 25 anos – somados os dois períodos de exílio – trabalhando no Instituto Pasteur em Paris, ao lado de figuras estelares da ciência. De volta ao país há 15 anos, como autoridade mundial em malária, assumiu a tarefa de criar um centro avançado de pesquisas na improvável Porto Velho (RO), onde também ajudou a criar e dirige uma unidade da Fundação Oswaldo Cruz.

Estas memórias que saem agora pela Vieira & Lent são uma recompilação de dois livros – O fio da meada (Brasiliense, 1990) e Crônicas de nossa época (Paz e Terra, 2001). Nelas Hildebrando mostra que, além de ótima memória e muita história para contar, tem ainda uma bem lapidada veia literária. Não se trata de um livro de ciência nem de divulgação científica, porque não pretende ensinar nada a ninguém. Ele não pretende se ocupar da História com H maiúsculo, mas das pequenas narrativas do cotidiano, que por sua vez atravessam os momentos mais conturbados da política nacional e da geopolítica mundial do século 20. E que o leitor revive na pele de um cientista engajado, com ideais e convicções de sua geração, mas que sabe passar ao largo da tentação da autocongratulação.

As crônicas de Hildebrando estão cheias de pessoas e afetos. Assim, as lembranças da avó Chiquinha adquirem a mesma estatura das do amigo e físico Mário Schenberg, ou das do mestre François Jacob, Nobel de Medicina em 1965. Em muitas  flagramos  o autor rindo de si mesmo, como quando decidiu pegar em armas –  aparentemente pela primeira e última vez – para matar mosquitos.

Corria o ano de 1968, Hildebrando acabara de voltar do primeiro exílio e ainda não sabia que logo depois o AI-5 o expulsaria de novo. Entediados com a vida pacata como professores na USP em Ribeirão Preto, ele o amigo Erney Camargo – dois seres urbanos – usaram coquetéis molotov para exterminar os criadouros dos mosquitos que infestavam o câmpus da Faculdade de Medicina (leia trecho abaixo).

Outras histórias revelam os bastidores do jogo de forças que permeava a política universitária paulista e descrevem lances que tiveram profundo impacto no desenvolvimento científico e tecnológico do Estado e do país nas décadas seguintes. É o caso da criação da Fapesp.

A lei orgânica do governo Carvalho Pinto que instituía a agência de fomento à pesquisa de São Paulo é de 1960, mas houve dificuldades para regulamentá-la, em grande medida por resistência da USP.  A oportunidade de furar esse cerco veio quando o matemático italiano Jaurès Cecconi, que trabalhava no câmpus da universidade em São Carlos desde 1956, havia dado por concluída sua missão no Brasil e precisava retornar a Gênova, onde um  novo contrato o aguardava. Ocorreu, porém, que a reitoria não cumpriu o prometido e negou custeio da viagem de retorno para ele e a família, algo que na época era mais comum fazer de navio.

A notícia se espalhou e foi bater no telefone de Hildebrando, que pensou, pensou e arriscou ligar para Plínio de Arruda Sampaio, então chefe de gabinete do governo estadual, que não era exatamente um companheiro, mas a quem respeitava. O governador Carvalho Pinto não gostou nada do constrangimento sofrido pelo professor Cecconi e pagou-lhe passagens de avião. Como a eleição na USP estava próxima, o incidente foi a gota d´água para o início de uma articulação de pesquisadores, apoiada pelo Palácio dos Bandeirantes, para colocar alguém da oposição na reitoria. Dos intensos debates sobre o tema, que acirraram os ânimos de Mario Schenberg e do arquiteto Vilanova Artigas e tiveram grande participação do casal Ruth e Fernando Henrique Cardoso, saiu a indicação de Antonio Barros de Ulhôa Cintra, que se elegeu em 1961 e botou a Fapesp em funcionamento no ano seguinte.

Quando Hildebrando é exilado pela segunda vez e retorna a Paris, em 1968, enfia a cara na genética de parasitas e dá passos científicos importantes, pelos quais o Instituto Pasteur investe nele. Aqui, o leitor que não vem das ciências biológicas pode não entender muito bem a descrição dos experimentos no laboratório, as hipóteses de trabalho ou resultados obtidos, mas isso não prejudica o fluxo da narrativa, porque importam menos as tecnicalidades que acompanham as perguntas da ciência do que o percurso, as convicções e os percalços que levam o pesquisador até elas.

“Milhares – milhões mesmo – de outros jovens que viveram os mesmos acontecimentos permaneceram indiferentes ou tomaram posições opostas”, reflete o médico na página 47. “Então, se nos interessa saber como e por que um adolescente insignificante, perdido num ponto do mapa-múndi, virou isso ou aquilo, ou não virou nada, é preciso se interessar pelo molho servido com o prato principal.”

Seu livro é, portanto, puro molho, temperado e maturado ao longo de várias décadas, de sabor ao mesmo tempo suave e intenso. Pois o prato principal, a História maiúscula, ele deixa humildemente para os  historiadores.

Crônicas subversivas de um cientista
Luiz Hildebrando; Vieira & Lent; 480 págs.; R$ 68

Trecho
A ideia para sair do buraco veio num domingo, na hora do aperitivo, Erney e eu sentados na varanda, olhando as vacas ao longe. – A única solução que vejo é virar ecologista, disse. Erney engasgou com seu uísque e quase se afogou num acesso de tosse. Ele era alérgico à palavra. Tudo o que fazia lembrar a natureza o enchia de urticária.

(…) – Escuta, Astolfo você não pensa que a situação do Culex aqui  é inadmissível? Uma faculdade de Medicina que se orgulha, com razão, de ser uma das melhores do país. Com um ensino de parasitologia de primeira qualidade e infestada de Culex! É vergonhoso!

(…) Astolfo não sabia o que era [coquetel molotov]. Não estava escrito nos seus livros. Sem fornecer a origem de minhas competências, explico o princípio. No laboratório preparamos sete “molotovs” (…) Abro caminho entre a vegetação. Um fogaréu, vinte metros à direita, me anuncia que Erney lançou o ataque.

(…) O cheiro de carne queimada de mosquito invade o ar – se é que mosquito queimado cheira a alguma coisa. Lanço meu segundo coquetel e espero. Depois me aproximo com o latão de óleo diesel. Chego mais perto… E o que vejo? Uma cabeça de cobra jararacuçu, assustada pelo fogo, emerge da superfície da água.

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