Vida que não acaba mais

Uma nova área de pesquisa, a metagenômica, mostra que o mundo microscópico tem uma biodiversidade sem precedentes, além de um papel importante para a manutenção dos ecossistemas

Há mais micro-organismos entre a terra e os mares do que sonha nossa vã biologia. Com o perdão de William Shakespeare pela paráfrase ao seu clássico pensamento, a frase é a melhor tradução da biodiversidade desse universo – gigantesco, porém desconhecido. Bem, sonhava. Um novo mecanismo de análise genética conhecido como metagenômica está revelando o tamanho desse mundo.

Desde que o holandês Anthony van Leeuwenhoek usou pela primeira vez um microscópio para observar material biológico, em 1674, a Microbiologia classificou cerca de 5 mil espécies de bactérias – muito menos do que se pode esperar de seres que vivem neste planeta, como habitantes originais, há pelo menos 3,5 bilhões de anos. “A Microbiologia clássica sempre trabalhou focada numa única espécie, cultivada em laboratório”, afirma Darío Abel Palmieri, do Laboratório de Biotecnologia Vegetal da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Assis.

Com a metagenômica, explica, tornou-se possível estudar espécies que não se deixam cultivar em placas de Petri e estufas – a esmagadora maioria. Em 1g de solo, por exemplo, já foram identificadas geneticamente cerca de 1 milhão de espécies de bactérias, das quais no máximo 1% sobrevivem isoladas e fora de seu habitat. Outra vantagem do método é permitir a análise simultânea do DNA de todos os micro-organismos de uma amostra ambiental, diz o pesquisador.

Ferramentas poderosas
Trazendo tecnologias avançadas de genômica e bioinformática, a metagenômica vem transformando os laboratórios de Microbiologia nos últimos dez anos. Sua principal ferramenta é o sequenciamento do tipo shot-gun (traduzido como “a tiros de cartucheira”), usado pela primeira vez em grande escala pelo geneticista e empresário americano Craig Venter, em 1998 – quando a Celera, seu conglomerado, entrou numa ambiciosa concorrência com o consórcio público que coordenava o Projeto Genoma Humano.

O segredo do shot-gun sequencing é bombardear o DNA intensa e aleatoriamente, para depois sequenciar muitos fragmentos curtos ao mesmo tempo, com mais rapidez e menos custo. Depois é preciso remontar o quebra-cabeça para cada espécie, antes de partir para análises mais específicas, gene a gene. As duas etapas são de alta complexidade e seriam impensáveis sem o uso de poderosos algoritmos da bioinformática.

Especialistas estimam que pode haver mais de 10 milhões de espécies de bactérias. Mas eles não parecem preocupados com a classificação taxonômica de tantas novas conhecidas; o que os interessa é a diversidade genética das populações. E ela já é muito superior ao que se imaginava,como demonstrou o próprio Venter com uma expedição científica ao Atlântico Norte entre 2004 e 2006.

Nas águas do mar dos Sargaços (no meio do oceano) foram encontradas cerca de 1.800 espécies de micro-organismos, o que resultou na identificação de mais de 1,2 milhão de genes codificadores de proteína – dez vezes mais que o catalogado nas maiores bases de dados de proteínas da época.

Abundantes e ubíquas
Além de ampliar a compreensão sobre a filogênese das formas primordiais de vida, o instrumental metagenômico vem revelando a importância da microbiota nos ciclos geológicos (carbono e nitrogênio, por exemplo) e no equilíbrio dos ecossistemas, devido a sua abundante e ubíqua presença nos solos, na água, na fauna e na flora.

“Podemos conhecer a representação de cada espécie, família ou gênero na população de um determinado ambiente, saber se esta proporção muda ao longo do tempo e em função da ação humana”, explica Eliana Gertrudes de Macedo Lemos, especialista em metagenômica de solos da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal.

Também na biotecnologia, a metagenômica traz a possibilidade de acesso a gigantescas bibliotecas de genes, de onde podem sair muitas proteínas e, sobretudo, enzimas com grande potencial na agricultura e na remediação de danos ambientais, por exemplo. “O conjunto gênico da microbiota de um ambiente é capaz de revelar quais vias metabólicas estão em ação, se ela está envolvida com processos de ciclagem de um dado nutriente, como nitrogênio e fósforo. Ou se é capaz de degradar poluentes, como petróleo, fertilizantes, metais pesados”, enumera Eliana.

As indústrias química, farmacêutica e alimentícia estão atentas às oportunidades que o sequenciamento do genoma coletivo da microbiota, o microbioma, pode abrir num futuro próximo.

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QUADRO: O inóspito reino das arqueas
A metagenômica tem renovado o interesse pelas arqueas, organismos procariotos sobre os quais ainda se sabe muito pouco, porque é muito difícil cultivá-los em laboratório, explica Darío Abel Palmieri, da Unesp em Assis. Estes seres unicelulares são comumente encontrados em lugares inóspitos — muitos quentes, salinos ou sulfurosos, como os gêiseres. Antigamente eles eram conhecidos como arqueobactérias, quando então pertenciam ao reino Monera, que era o único reino procarioto. Mas a taxonomia mudou. Nos anos 1970, concluiu-se que as arqueas são tão diferentes das bactérias e dos eucariotos que mereciam ter um reino só para si. Atualmente os procariotos são representados pelos reinos Bacteria e Archaea.

Especialização do conhecimento

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“Vivemos uma época de especialização do conhecimento, causado pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. A especialização permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e se sentir de algum modo solidários.

“A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em guetos culturais de técnicos e especialistas, aos quais a linguagem, alguns códigos e a informação progressivamente setorizada relegam naquele particularismo contra o qual nos alertava o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido do pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo – de povos ou indivíduos – gera paranóias e delírios, as deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocábulos herméticos.”

Em defesa do romance, Mario Vargas Llosa, em Piauí, edição de outubro de 2009.

Foto: maduroman

O outro cardápio da mandioca

Matéria publicada na Unesp Ciência de outubro de 2009.

Nossa mais tradicional raiz comestível não é só farinha ou petisco de bar. Estudos mostram as oportunidades e vantagens econômicas e ecológicas do etanol produzido a partir dela

Até o início de 2010, o Brasil vai começar a produzir etanol a partir de sua mais popular e original raiz comestível – a mandioca, também conhecida como aipim ou macaxeira. Duas usinas estão em fase final de montagem: uma em Botucatu, no interior paulista, e outra em Porto Nacional, no Tocantins. Elas fazem parte de um projeto de transferência tecnológica da Unesp cujo objetivo é oferecer a pequenos agricultores, principalmente das regiões Norte e Nordeste, um modelo de negócio sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental.

Não será a primeira vez que o país vai produzir etanol da mandioca. Nos anos 1970, época do Pró-Álcool, chegaram a ser implantadas nove usinas. Elas não vingaram por pelo menos duas razões. De um lado, houve problemas na articulação com os produtores do tubérculo. De outro, o grande sucesso industrial da cana-de-açúcar acabou por inviabilizar o negócio. É por isso que, desta vez, o foco no pequeno produtor está no cerne do projeto, segundo Cláudio Cabello, vice-diretor do Centro de Raízes e Amidos Tropicais (Cerat), do câmpus Lageado da Unesp em Botucatu.

Por ironia, essa planta originária da Amazônia, largamente difundida pelo continente e profundamente ligada com a cultura popular brasileira, já é usada para a produção de álcool na China, na Indonésia e nas Filipinas, onde sua principal finalidade é a adição à gasolina. Aqui, porém, o produto é mais atraente não como fonte de energia, mas como insumo para os mercados cosmético, farmacêutico, de bebidas e de tintas e vernizes.

O etanol é o segundo insumo mais usado pela indústria depois da água. E esses mercados demandam um álcool mais puro, como o da mandioca, o da batata-doce ou o do milho. Por isso eles são mais caros que o da cana-de-açúcar, que contém mais impurezas. “Nós temos um produto de melhor qualidade. Mas ao mesmo tempo sabemos que não podemos competir com os níveis espetaculares de eficiência do eixo da (rodovia) Castelo Branco”, afirma Cabello, referindo-se ao polo sucroalcooleiro do centro-oeste paulista.

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