Uma reportagem desleixada sobre publishers predatórios

A reportagem “Uma praga na ciência brasileira: os artigos de segunda”, publicada na revista Veja no domingo retrasado (6/12), causou espanto (para dizer o mínino) entre pesquisadores, alunos de pós-graduação e outros profissionais ligados ao mundo acadêmico brasileiro. Eu fiquei perplexa com tantas informações que não refletem a realidade. E pela repercussão no boca a boca e nas redes sociais, percebo que não fui a única. O texto traz um problema real, porém sob uma ótica distorcida e com tom incriminatório que desinforma leitores acadêmicos e não-acadêmicos. Para quem não leu, faço uma sinopse.

A matéria aborda a prática de pesquisadores brasileiros de publicar artigos científicos em periódicos de reputação duvidosa que, mediante a cobrança de uma taxa de publicação, aceitam quaisquer trabalhos sem que esses passem pela revisão por pares. Eles fariam isso porque, como a qualidade dos artigos é supostamente baixa, teriam poucas chances de serem aceitos por um periódico de maior impacto.

Por meio deste subterfúgio, os cientistas driblariam um mecanismo clássico, secular da ciência para avaliação crítica do resultados gerados por uma investigação científica. E ao mesmo tempo se beneficiariam ilegitimamente da pontuação que a publicação de tais  artigos lhe confere ao currículo, de acordo com os sistemas de avaliação da produção acadêmica de agências como Capes e CNPq. Avaliação essa que é importante tanto para a obtenção de recursos para novos projetos de pesquisa quanto para a progressão na carreira acadêmica.

Em síntese: como são cada vez mais pressionados para publicar, os pesquisadores estariam se valendo cada vez mais deste tipo de publicação – que a reportagem chama (sistematicamente ao longo do texto) de “periódicos desleixados” -, o que seria atentado contra às boas práticas de publicação e à própria ética do fazer científico.

Do ponto de vista jornalístico, este é um daqueles casos em que uma boa ideia de pauta terminou numa reportagem lastimável.

A pauta é oportuna porque, de fato, estas publicações existem e seu número cresce em ritmo assustador. É uma praga mesmo, no mundo inteiro. E é uma pena que a reportagem não tenha usado o termo apropriado para se referir a estes periódicos, bem como às editoras (algumas delas de fachada) que os publicam. Nos meios acadêmico e editorial, tais empresas são conhecidas como publishers predatórios.

Atentar aqui para o uso do termo técnico não é preciosismo, por duas razões. Primeiro, porque dá uma referência para quem quiser saber mais fazendo buscas no Google. Ainda que não haja muita coisa em português, a pesquisa com “predatory publisher” ou “predatory journal” vai trazer algumas dezenas de milhares de fontes para o leitor se informar melhor sobre este fenômeno (há verbete na Wikipedia). Segundo: ao saber como funciona esta prática predatória, compreende-se que o papel dedicado ao pesquisador é o de presa.

Como em todo ramo há picaretas, deve haver entre os pesquisadores quem se vale deste tipo de periódico como uma via fácil e rápida para publicação de artigos. Mas, sendo bastante pragmática, vejo pelo menos dois motivos que me levam a crer que a prática não seja disseminada nem esteja se disseminando no Brasil.

A principal razão é que a imensa maioria dos periódicos tidos como predatórios não tem fator de impacto ou não está indexada nas bases de dados mais respeitadas, como Web of Science, Scopus, PubMed e outras específicas de cada área. Esses são os principais requisitos, para a maioria das áreas, para que um título seja incluído no Qualis (o sistema indexador da Capes). Fora dele, o periódico é muito pouco atrativo para os autores.

Ainda que a reportagem tenha citado alguns periódicos que figuram no Qualis, e que são surpreendemente bem avaliados, acho mais provável que isto seja um acidente de percurso do que um ato de má fé. A classificação das revistas no Qualis não é feita na canetada por um burocrata da Capes, mas faz parte de um trabalho maior e complexo realizado por comitês de áreas que se reúnem a cada 3 anos e são formados por pesquisadores. Pesquisadores que, na minha visão, ainda não estão suficientemente informados sobre esta praga digital que afeta o mundo da comunicação científica.

Nem sempre é fácil reconhecer um periódico predatório. Muitas vezes as evidências só ficam claras depois de ele estar operando há alguns anos. Com alguma frequência pesquisadores me perguntam coisas do tipo: “recebi este email me convidando para publicar/fazer parte do conselho do editorial, você conhece esta revista ou publisher?” Geralmente eles não sabem da lista de Jeffrey Beall, um bibliotecário americano dedicado a desmascarar os impostores. Quase sempre o suspeito está lá.

Mas a lista de Beall não é consensual, ainda que seja umas das referências mais importantes nesta área – algumas vezes ele já se viu obrigado a remover periódicos e publishers dela. De qualquer forma, se a reportagem tem algum mérito, é o de chamar a atenção da Capes e dos pesquisadores para este problema, e incentivar a discussão pelos comitês de área sobre a necessidade de uma avaliação mais rigorosa das revistas incluídas no Qualis. Esta seria uma medida eficaz para desestimular autores que, por ignorância ou má fé, consideram a publicação de seus artigos em algum destes periódicos.

Em segundo lugar, há razões econômicas para que a prática não seja tão disseminada no Brasil como a reportagem faz parecer. Da forma como as linhas de financiamento à pesquisa estão estabelecidas aqui, não é nada simples para o pesquisador obter o recurso para pagar a taxa de publicação de artigo – mesmo quando ele quer publicar em periódicos de acesso aberto bem conceituados ou que simplesmente fazem seu trabalho corretamente (sim, eles existem e já vou falar deles).

O principal desserviço prestado pela matéria foi ter jogado um caminhão de areia sobre a já confusa compreensão que a comunidade acadêmica brasileira tem sobre os periódicos de acesso aberto. Ela reforça a percepção equivocada de muitos pesquisadores de que todo acesso aberto é predatório. Ou a de que os únicos periódicos de acesso aberto confiáveis são aqueles que não cobram taxa de publicação de artigo. Ou ainda a de que apenas as revistas de assinatura são dignas de respeito.

A reportagem ignora a existência de periódicos de acesso aberto que cobram taxa de publicação e são altamente conceituados em suas áreas. Assim como os predatórios que não cobram taxa de publicação (no início, até ter um certo número de artigos publicados e com isso persuadir suas presas). E ao afirmar que “todo periódico desleixado é de acesso aberto”, omite a existência de títulos de assinatura com baixa reputação e impacto que igualmente aceitam qualquer artigo.

Mas a confusão não para aí. Trabalho para um publisher de acesso aberto há um ano e meio, tempo suficiente para colecionar alguns casos bem ilustrativos. Como o de um pesquisador para quem eu e um colega estávamos tentando explicar os benefícios do acesso aberto em relação aos periódicos de assinatura. Ele parecia intrigado e, a certa altura, nos questionou: “Mas hoje em dia tudo é acesso aberto, não? Do meu computador [na universidade] eu entro na Web of Science e baixo qualquer artigo!”. Faltava-lhe a informação que a Capes gasta quantias consideráveis para dar acesso aos cientistas brasileiros não só a milhares de periódicos de assinatura mas também à própria Web of Science. Isto não é acesso aberto.

A literatura em acesso aberto é aquela que é digital, online e que pode ser lida, reproduzida, distribuída e adaptada sem custo e livre da maioria das restrições impostas por direitos autorais e licenciamento. Esta é a definição de Peter Suber, diretor do Harvard Open Access Project, reconhecido como um líder mundial do movimento de acesso aberto. Para quem quiser saber mais recomendo fortemente seu livro Open Access (MIT Press, 2012; que obviamente está em acesso aberto e pode ser visto aqui – em inglês).

Na prática, publicar um artigo em uma revista de acesso aberto significa não apenas que os leitores em qualquer parte do mundo poderão lê-lo e baixar o arquivo sem custo, mas também que os direitos autorais são exclusivamente dos autores. Além disso, seu conteúdo deve ter uma licença Creative Commons do tipo CC-BY, o que permite a livre reprodução, tradução, distribuição e adaptação (para outros formatos e plataformas, por exemplo) por qualquer pessoa, sendo que a única exigência é citar a fonte.

Citando mais uma vez Suber (em tradução livre), “o acesso aberto beneficia literalmente a todos, pelas mesmas razões que a pesquisa científica beneficia literalmente a todos. O acesso aberto desempenha este serviço por facilitar a pesquisa e tornar seus resultados amplamente disponíveis e utilizáveis. Beneficia os pesquisadores enquanto leitores por ajudá-los a encontrar e reter a informação de que eles precisam, e também beneficia os pesquisadores enquanto autores ao ajudá-los a alcançar leitores que podem aplicar e citar seu trabalho e gerar novos conhecimentos com base nele. O acesso aberto beneficia quem não é pesquisador porque acelera a pesquisa científica e todas as coisas que dependem dela, como novos medicamentos e tecnologias, a resolução de problemas, a tomada de decisões, o aperfeiçoamento de políticas públicas e a apreciação da beleza da ciência”.

O acesso aberto só se tornou possível no início dos anos 2000, graças à revolução que a internet promoveu nos meios de comunicação em geral e na comunicação científica em particular. As facilidades tecnológicas para acessar, reproduzir e distribuir o conhecimento se chocaram com o modelo tradicional de periódicos, até então baseado em veículos impressos e em vigor há pelo menos 300 anos. Sob este modelo o acesso aos artigos tem custo, os autores têm de transferir os direitos autorais de seu trabalho para o publisher e muito pouco se pode fazer com este conhecimento, em termos de disseminação, sem autorização dele. Na mesma época, o valor das assinaturas dos periódicos cresceu muito acima da inflação e universidades mundo afora começaram a ter dificuldade em renová-las. Como consequência, o modelo passou a ser questionado pela comunidade acadêmica.

Três conferências internacionais realizadas neste período produziram documentos que assentaram as bases do movimento de acesso aberto: Budapest Open Access Initiative(2002), Bethesda Statement on Open Access Publishing  (2003) e Berlin Declaration on Open Access to Knowledge in the Sciences and Humanities (2003). A premissa comum entre os três é a seguinte: na era digital, não faz sentido que os resultados de pesquisa científica financiada com recursos públicos tenham barreiras de acesso e disseminação.

Por esta época surgiram os primeiros publishers de acesso aberto, tendo como pioneiros PLOS, em São Francisco (EUA), e BioMed Central, em Londres (Reino Unido). (Eu trabalho para o segundo.) Estabeleceu-se um novo modelo de negócio para a publicação de periódicos. Nele, os custos dos serviços editoriais, em vez de serem cobertos pela cobrança do acesso, como ocorre nas revistas de assinatura, agora são pagos por meio da taxa de publicação de artigo (APC, na sigla em inglês). É importante ressaltar que esta mudança não altera em nada o compromisso dos publishers e dos editores com as boas práticas de publicação científica, especialmente no que diz respeito à revisão por pares. E vale a pena esclarecer também que a cobrança da APC deve ser feita depois desta revisão e apenas se o artigo for aceito pelo editor-chefe, que toma sua decisão baseado na avaliação dos revisores.

Muitos outros publishers de acesso aberto surgiram desde então. Paralelamente, diversos publishers tradicionais começaram a migrar, pelo menos parte de seu portfólio, para o novo modelo. Mas não demorou muito para que os impostores começassem a aparecer.

Quem está por trás dos periódicos predatórios conhece muito bem o mundo acadêmico e enxergou oportunidades. Percebeu que na última década a produção científica cresceu muito no mundo todo, mas especialmente nos países emergentes. Já os recursos para pesquisa não aumentaram na mesma proporção, o que tornou o ambiente mais competitivo. A produção de artigos passou a ser a principal métrica usada na avaliação do desempenho acadêmico, o que gerou uma pressão enorme, por parte das agências de fomento e dos programas de pós-graduação, por este tipo de publicação.

O resultado é que hoje quase qualquer periódico, de assinatura ou acesso aberto, bem ou mais ou menos conceituado, tem de lidar com uma longa fila submissões, principalmente dos países emergentes. Nos títulos mais estabelecidos, as taxas de rejeição subiram para conter a demanda. Em outros, os autores podem esperar mais de um ano para ter seu artigo publicado. Ou seja, é muito artigo para pouca revista.

Pressionados para publicar e/ou frustrados com a demora de muitos periódicos ou rejeições sucessivas, muitos pesquisadores se tornam presas fáceis dos publishers predatórios, que infestam a caixa postal de suas potenciais vítimas. Às vezes o título da revista e o website são muito parecidos com o de outra, tradicional, na qual aquele autor já publicou anteriormente.  O conselho editorial quase sempre é fabricado e as indexações, principalmente quando são muito vistosas, geralmente são falsas. Alguns usam fatores de impacto “alternativos” que levam os autores a crer que se trata do (venerado) indicador da Thomson Reuters.

Tem gente que se dá conta da farsa a tempo, como quando recebe o aviso de aceite e o boleto para pagar a APC poucos dias depois da submissão – uma revisão por pares decente raramente leva menos de dois meses. Outros, infelizmente, só percebem a armadilha depois que o artigo foi publicado, o que é uma pena, pois jamais conseguirão retirá-lo de lá.

Alguém poderia argumentar que bastaria apagar tais e-mails para não cair em cilada. Mas não é tão simples. Faz parte da rotina do pesquisador receber mensagens, nem sempre indesejadas, enviadas por publishers. Ele pode ter se registrado para receber alertas das novas edições dos periódicos que acompanha, ser convidado para revisar artigos de revistas de sua área ou para submeter artigos para uma edição temática de um título no qual já publicou. E pode também receber convites para publicar em novas revistas de acesso aberto não predatórias para as quais, sobretudo nos seus primeiros anos de existência, este tipo de promoção é importante (e há formas de se fazer isso sem recorrer ao spam). Afinal, publishers sérios também sabem que existe uma demanda reprimida e investem em novos títulos.

Além de atazanar a vida dos pesquisadores, os publishers predatórios ameaçam a expansão do modelo de acesso aberto, que apesar do belo caminho trilhado nesses últimos 15 anos ainda é minoritário em relação ao modelo de assinatura. Para mim, a conclusão que fica é que precisamos urgentemente falar mais sobre as virtudes do acesso aberto. E esquecer aquela matéria desleixada.

 

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