Mão

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Que privilégio é o seu? Por que o órgão mudo e cego nos fala com tanta força persuasiva? Porque é um dos mais originais, um dos mais diferenciados, à maneira das formas superiores de vida. Articulado por meio de gonzos delicados, o punho arma-se sobre um sem-número de ossículos. Cinco ramos ósseos, com um sistema de nervos e ligamentos, projetam-se por baixo da pele, para depois se separar de chofre e dar origem a cinco dedos separados, cada um dos quais, articulado sobre três juntas, com atitude e espírito peculiares. Uma planície abaulada, percorrida por veias e artérias, arredondada nas bordas, une o punho aos dedos, ao mesmo tempo que lhes encobre a estrutura oculta. O verso é um receptáculo. Na vida ativa da mão, ela é suscetível de se distender e de se endurecer, assim como é capaz de se moldar ao objeto. Esse trabalho deixou marcas no oco da mão, e podem-se ler aí, se não os símbolos lineares das coisas passadas e futuras, ao menos o traço e como que as memórias de nossa vida de resto já apagada – e quem sabe, até, alguma herança mais antiga. De perto, trata-se de uma paisagem singular, com seus montes, sua grande depressão central, seus estreitos vales fluviais, ora fissurados por acidentes, cadeias e tramas, ora puros e finos como uma escritura. Toda figura permite o devaneio. Não sei se o homem que interroga esta chegará a decifrar algum enigma, mas me parece bom que contemple com respeito essa sua serva orgulhosa.

Henri Focillon (1881-1943), em Elogio da mão, tradução de Samuel Titan Jr., publicado na revista Serrote, número 6, novembro de 2010.

Foto: JonGenius

Tempo

 

 

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de uma artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é (…)

Lavoura arcaica, Raduan Nassar, Companhia das Letras, 1989, págs. 51-3.

Foto: tonivc

Especialização do conhecimento

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“Vivemos uma época de especialização do conhecimento, causado pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. A especialização permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e se sentir de algum modo solidários.

“A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em guetos culturais de técnicos e especialistas, aos quais a linguagem, alguns códigos e a informação progressivamente setorizada relegam naquele particularismo contra o qual nos alertava o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido do pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo – de povos ou indivíduos – gera paranóias e delírios, as deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocábulos herméticos.”

Em defesa do romance, Mario Vargas Llosa, em Piauí, edição de outubro de 2009.

Foto: maduroman

Pouso na lua

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A lua é, no fim das contas, um bom lugar para o homem. Um sexto da gravidade deve ser muito divertido, e quando Armstrong e Aldrin se lançaram à sua animada dancinha, como duas crianças felizes, não foi apenas um momento de triunfo, mas também de alegria. A lua, em compensação, é um lugar ruim para bandeiras. A nossa parecia dura e esquisita, tentando flutuar na brisa que não sopra. (Deve haver uma lição aí, em algum lugar.) É claro que faz parte da tradição dos exploradores fincar uma bandeira no solo, porém, enquanto assistíamos com reverência, admiração e orgulho, percebemos que nossos dois amigos eram homens universais, e não de uma só pátria, e deviam ter se equipado de acordo. À maneira de todos os grandes rios e mares, a lua pertence a todos e a ninguém. Ainda traz o segredo da loucura, ainda controla as marés que banham as praias de todo o mundo, ainda vigia os amantes que se beijam por toda parte, debaixo de bandeira nenhuma, somente do céu. É uma pena que, em nosso momento de triunfo, não tenhamos renegado a famosa cena de Iwo Jima e, em vez disso, plantado um emblema comum a todos: um lenço branco e frouxo, talvez, símbolo do resfriado normal que, como a lua, afeta a todos nós.

E. B. White, revista The New Yorker, 26.07.1969 (via revista Serrote número 2)

Dor fantasma

A melhor definição/explicação de dor fantasma que já li, por Sidarta Ribeiro na sua coluna “limiar neurociências” na revista Mente&Cérebro deste mês.

A cada ano, milhões de pessoas passam pela experiência da perda traumática de uma extremidade corporal. Frequentemente, as penas psicológicas e sociais da amputação vêm acompanhadas de uma dor mais bruta, fruto da percepção fantasmagórica do pedaço perdido, mão ou pé ausente doendo em pesadelos de sono e vigília. Pulsando, queimando ou coçando, o membro fantasma reclama da incompletude do mutilado. Um corpo que já não se representa como é, e sim como foi.

Decepado de forma acidental, o membro leva consigo terminais nervosos que não se reconstituem no coto. Disso resulta o desequilíbrio de vastos circuitos neurais que cartografam a interface com o ambiente, chegando até o âmago do sistema nervoso. As regiões cerebrais correspondentes ao membro amputado são invadidas e loteadas por representações vizinhas, num processo que pune a falta de atividade neural com a inexorável substituição de sinapses e células. Tal plasticidade remapeia a relação do corpo com o mundo, provocando a sensação fantasma. Um poeta diria que o cérebro transforma em incômodo a saudade do pedaço que perdeu. Será possível reverter esse processo?

O texto prossegue por mais três parágrafos que comentam uma pesquisa da UFRJ, na qual uma técnica usada para transplante de ambas as mãos tem levado à reorganização do cérebro dos pacientes, de modo a recuperar parcialmente a sensibilidade e o movimento e ainda diminuir a sensação fantasma. Se puderem, leiam.

Neurobiólogo, Sidarta Ribeiro chefia o laboratório do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra e leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Escreve divinamente e já faz tempo que está nos devendo um livro de crônicas reunidas.

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