Sede de sal

(publicado na UC de março/2011)

Pode acontecer com qualquer um. Já aconteceu com cerca de 30% dos brasileiros adultos. Um belo dia, provavelmente depois dos 50 anos, com azar antes disso, o sujeito deixa o consultório médico com a receita de um anti-hipertensivo e a recomendação expressa de fazer exercícios e diminuir muito o sal de sua comida. Ele é o mais novo membro do clube dos portadores de pressão alta, candidatos preferenciais ao infarto e ao derrame cerebral.

Tomar o remédio será a parte mais fácil. E se conseguir vencer a preguiça e a falta de tempo, o sujeito se dará conta de que a atividade física, nem que seja uma simples caminhada, pode ser prazerosa. A pior parte vai ser se acostumar à ‘vida sem sal’. E ter de lutar contra instintos primitivos que provavelmente o paciente nunca imaginou que tivesse.

O cloreto de sódio é tão importante para a biologia e a cultura da humanidade que nossos ancestrais percorreram distâncias absurdas e até travaram guerras por um bom punhado do mineral. “Substância divina”, para o poeta Homero, e um mineral “particularmente caro aos deuses”, segundo o filósofo Platão, seu simbolismo fica evidente no nosso vocabulário. Do latim sale derivaram palavras como salário, saúde e saudável (veja quadro abaixo).

A evolução talhou nosso cérebro para gostar de sal, precisamente do sódio. Fomos programados para buscá-lo. Em especial porque – e essa talvez seja a parte mais surpreendente dessa necessidade fisiológica – o apetite para este nutriente e a sede são irmãos gêmeos siameses.

A epidemia de hipertensão é resultado de uma espécie de emboscada evolutiva em que o ser humano moderno se meteu. A ironia é que precisamos desse mineral justamente para manter o equilíbrio dos líquidos corporais, o que inclui um nível adequado de pressão arterial – que nos permita ficar em pé, mas sem forçar muito a ‘tubulação’ sanguínea. No entanto, acabamos consumindo-o além do necessário, porque o cérebro trabalha como nos tempos em que era preciso viajar dias para encontrá-lo ou pagar caro para conseguir um pouco do então chamado ‘ouro branco’.

“Somos fortemente motivados a ir atrás de nutrientes que um dia foram escassos no ambiente”, diz o fisiologista Laurival Antonio De Luca Jr., da Faculdade de Odontologia da Unesp em Araraquara. “Esses mecanismos ancestrais de apetite por sódio estão presentes em muitos mamíferos e provavelmente dificultam o controle do consumo de sal por nós hoje em dia.”

Deve ser por isso que o consumo per capita de sódio nos Estados Unidos não diminuiu nos últimos anos, apesar dos esforços do governo americano para tentar restringi-lo. E ainda se mantém alto, por volta de 11 g/dia, contra os 5 recomendados pela Organização Mundial de Saúde, como mostra um estudo publicado no ano passado no American Journal of Clinical Nutrition.

Os autores do artigo sugerem como possível explicação para tal fracasso o fato de a ingestão humana de sódio ser “um parâmetro que mesmo a política pública mais bem intencionada não pode modificar na maioria das pessoas”. Nos Estados Unidos, alimentos industrializados levam rótulos para alertar os consumidores sobre o risco de hipertensão e doenças cardiovasculares, que são a primeira causa de morte no mundo, segundo a OMS.

O governo brasileiro também está preocupado com o impacto disso sobre o sistema de saúde. Uma resolução da Anvisa (RDC 24/2010), em vigor desde dezembro passado, determina que a publicidade dos produtos alimentícios tenha alertas não só para excesso de sal, mas também de açúcar e gordura saturada ou trans, os principais vilões da obesidade.

Mas a agência perdeu a primeira batalha na guerra contra os excessos alimentares. Cerca de 70% das empresas do setor estão sob uma liminar que as desobriga da exigência. A resistência tem pelo menos dois motivos: além de tornar o alimento mais palatável, o sódio é um ótimo conservante.

Vida salgada

Seres vivos precisam de vários minerais: cálcio, magnésio, fósforo, iodo etc. Mas nenhum deles parece nos despertar um apetite tão específico quanto o sódio (evidências sugerem apetite por cálcio e fósforo em algumas espécies, mas o assunto ainda é controverso). O privilégio concedido a este íon pela evolução provavelmente tem a ver com a intimidade dele com o líquido universal, que corresponde a mais de 90% do peso de nosso corpo. A primeira célula surgida na Terra, há 3,5 bilhões de anos, estava imersa nas águas salgadas do oceano primitivo.

Entre as razões para que essa forma primordial de vida tenha sobrevivido e evoluído para organismos marinhos, e depois para os terrestres, está a formidável propriedade de sua membrana celular de ser impermeável ao sódio, mas não à água.

Isso faz com que os fisiologistas pensem no corpo dividido em dois compartimentos líquidos: intra e extracelular. Ambos estão preenchidos por água, mas o segundo tem mais sódio que o primeiro. É como se o líquido extracelular, sangue inclusive, fizesse o papel daquele oceano primitivo.

O problema é que, vivendo fora da água, estamos sob o risco de desidratar a qualquer momento. Isso representa uma ameaça tão grande que os animais terrestres foram dotados de mecanismos para compensar a perda de água, de sódio ou de ambos.

Nessas ocasiões adversas, rins, glândulas adrenais, cérebro e até o coração são mobilizados para a produção de pelo menos cinco hormônios (veja quadro ao lado). Só nos damos conta de uma mínima parte do processo quando, como resultado dessa orquestração hormonal, centros cerebrais deflagram ou inibem a sede e a vontade de comer alguma coisa salgada.

Estamos acostumados a pensar que a ingestão de sal gera sede, mas raramente percebemos que beber água, quando o corpo está desidratado, pode resultar em vontade de comer sal. São dois comportamentos intimamente relacionados, e para entendê-los é preciso considerar que há três tipos de desidratação, como explica De Luca Jr.

O primeiro exemplo é o da desidratação extracelular, que resulta de uma hemorragia, de vômito ou diarreia, do exercício físico intenso ou da privação de sal. Perde-se sódio e água do meio extracelular, a pressão arterial cai e o cérebro ativa tanto a sede quanto a fome por alimentos salgados.

Já a desidratação intracelular decorre da ingestão excessiva de sódio, como quando comemos uma feijoada. Como a concentração do íon no líquido extracelular aumenta muito, parte da água que está dentro da célula migra para fora, por osmose. O cérebro então entra em ação para ativar a sede e inibir a vontade de sal.

Segredo do soro caseiro

O terceiro tipo de desidratação, por fim, é o da pessoa que fica privada de água e de sódio. “Isso produz uma desidratação dupla”, diz o pesquisador. Por mais que os hormônios ordenem aos rins para reterem água e sódio, a perda dos dois pelo suor e pela urina é inexorável. “Ocorre uma redução do volume dos fluidos tanto intra quanto extracelular”, explica. Nessa situação, a ingestão de apenas água irá corrigir a desidratação intracelular, mas não a extra. O que ocorre em seguida é a ativação do apetite pelo sódio, que antes estava inibido pela desidratação intracelular.

Para repor o líquido extracelular, numa emergência, nada melhor que a bem-sucedida fórmula do soro caseiro: água, sal e (para tornar a solução mais palatável) açúcar. Bebendo somente água, a pessoa vai continuar desidratada.

Pesquisando esses vários tipos de desidratação em ratos, De Luca Jr. e seu colega de laboratório José Vanderlei Menani estão testando as vias neurais envolvidas no apetite por sal, uma área ainda pouco explorada nas neurociências. Um dos interesses deles são neurônios localizados junto aos ventrículos, que são cavidades do cérebro, preenchidas por líquido. Esses neurônios fazem parte de ‘órgãos sensoriais’ capazes de detectar o que acontece na química do sangue, como mudanças na concentração de sal e de hormônios.

A dupla de cientistas integra o Laboratório de Fisiologia de Araraquara, no qual se estuda os mecanismos neurais envolvidos na ingestão de sódio e água em ratos com pressão arterial normal e nos geneticamente modificados para serem hipertensos. Embora tenham muita precaução na hora de extrapolar os dados para o comportamento humano, algumas observações acumuladas ao longo de anos de experimentos ajudam a entender o drama dos pacientes. “Comer pouco sal pode ser muito estressante”, afirma Menani.

“O problema é que alguns medicamentos anti-hipertensivos tendem a aumentar o apetite por sódio”, diz. Isso pode ocorrer, por exemplo, com a furosemida e, dependendo da dose, com o captopril – os dois anti-hipertensivos mais prescritos pelos médicos. “Já a moxonidina inibe a vontade de comer salgado”, prossegue ele. “Em compensação, deixa a boca seca, porque também inibe a salivação.”

Algumas pessoas são mais fissuradas em sal e sofrem mais quando têm de maneirá-lo. A explicação pode estar na infância. Os cientistas já sabem que crianças e jovens que tiveram alimentação mais salgada chegam à idade adulta com maior intimidade com o saleiro. Isso pode acontecer também com quem passou por desidratação quando pequeno.

“Os grandes mistérios estão no cérebro”, diz José Antunes Rodrigues, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, sobre o desafio de entender os mecanismos que controlam a ingestão de água e sódio, o consumo excessivo do mineral e a própria hipertensão. Embora vários fatores de risco para a doença sejam conhecidos (e a ingestão exagerada de sódio é apenas um deles), 95% dos pacientes recebem o diagnóstico de ‘hipertensão essencial’, isto é, sem causa definida.

“Ainda faltam muitas respostas”, diz o pesquisador, que estuda o assunto desde 1955. “Uma pessoa pode comer mais de 5 g de sódio por dia por muito tempo e seu organismo vai regular o balanço hidros-salino. O problema é que, com o avançar da idade, as coisas começam a complicar. Não sabemos bem por quê.”

O ser humano viveu ingerindo baixíssimas quantidades de sódio durante toda sua existência como nômade e caçador–coletor. Foi quando passou a domesticar animais, há cerca de 5 mil anos, que se deu conta de que o sal é um excelente conservante dos alimentos. Por causa das carnes e peixes curados, já se abusou muito mais dele no passado. Estudos indicam que os antigos romanos consumiam pelo menos 25 g diários da substância. A dieta dos suecos do século 16, com cerca de 100 g de sódio por dia, seria intragável para os paladares contemporâneos.

No outro extremo estão os índios ianomâmis, que ainda hoje vivem na Amazônia. Eles são sempre citados em estudos que associam o consumo excessivo de sódio à pressão alta. Estima-se que nesse grupo, em que a doença inexiste, o consumo médio per capita da substância seja de 11 mg por dia – cem vezes menor que o do brasileiro médio.

Para reforçar o conteúdo salino de sua dieta, os ianomâmis mantêm um ritual que alguns acreditam que ajude a contornar a falta do nutriente: o canibalismo funerário. Contendo sódio (e outros minerais), as cinzas do morto são usadas como tempero. Há quem diga que o canibalismo, em qualquer modalidade, pode ter sido uma saída adotada por culturas que passaram pelo problema da escassez do íon.

Vício ou autoproteção?
A neurociência do apetite por sal é um campo fértil em hipóteses. Se hoje comemos muito mais sal do que precisamos, talvez seja porque, na verdade, estamos viciados. A hipótese de dependência química causada pelo sódio é de autoria de Yalcin Tekol, um farmacologista da Universidade Ercyes, na Turquia. O Manual Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) lista sete critérios associados à dependência e define que a confirmação de três já é suficiente para o diagnóstico.

Tekol, em artigo publicado em 2006 na revista Medical Hypothesis, lista quatro deles: consumo contínuo em grande quantidade por período prolongado; uso da substância apesar dos danos à saúde; desejo persistente e dificuldade de diminuir a ingestão; síndrome de abstinência. Acerca do último, o autor relata a própria experiência: “Eu me abstenho de sal de mesa há mais de 20 anos. No início, achava a comida sem sabor, tive anorexia e leve náusea”.

Essa dependência por sódio poderia, inclusive, explicar a atual epidemia de obesidade, como sugerem James Cocores e Mark Gold, da Universidade da Flórida. Os cientistas baseiam-se em evidências que mostram que o sódio estimula áreas do cérebro ligadas ao prazer, como o álcool. Diferentemente dos roedores, que gostam de beber uma solução salina, ou de ruminantes, que podem passar horas lambendo uma rocha salgada, nós ingerimos o sódio por meio dos alimentos, principalmente os industrializados, geralmente também abundantes em açúcar e gorduras.

Por outro lado, há quem sugira que a ingestão excessiva de sódio seja uma espécie de automedicação contra a depressão. É o que defende o fisiologista Alan Kim Johnson, da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Ele se baseia em estudos que mostram como ficam desmotivados os ratos privados do nutriente. Evidências em humanos associam a síndrome de fadiga crônica – um distúrbio de causas pouco conhecidas e que traz alterações de humor – a uma dieta voluntariamente pobre em sódio.

Enquanto os cientistas procuram evidências que confirmem ou rejeitem essas hipóteses e deixem mais claro como o sódio atua no cérebro, o melhor a fazer é maneirar o sal, mesmo quem (ainda) não tem diagnóstico de hipertensão. O pesquisador José Antunes Rodrigues, hipertenso desde os 60 anos (hoje ele tem 77) deixa a dica: “O segredo é temperar bem a comida e, às vezes, usar uma pimentinha.”

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Culto ao cloreto de sódio

Não é por acaso que a Vênus de Boticelli (ao lado) nasce no mar. O sal é um símbolo de fertilidade, saúde e imortalidade. O ‘salut’ com que os franceses se cumprimentam e os ‘saludos’ com que os hispânicos se despedem derivam do latim sale, salus, salubris. A palavra sal aparece mais de 50 vezes na Bíblia e, para São Jerônimo, Cristo era o “verdadeiro sal”. Se hoje o salário refere-se a uma quantia em dinheiro é porque o Império Romano pagava seus soldados com o mineral. Os chineses antigos conheciam as virtudes do pó branco, mas não ignoravam seus riscos. Há 3 mil anos, um imperador chinês escreveu que “se muito sal for usado na comida, o pulso engrossa, as lágrimas aparecem e a compleição muda”.

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Louco por um saleiro
Sal foi uma das primeiras palavras que o garoto aprendeu a falar, antes de completar 1 ano de idade.

Quando conseguiu caminhar com as próprias pernas, passou a revirar os armários da cozinha em busca de tudo que fosse salgado e, sempre que podia, atacava o saleiro. Seus pais obviamente estranharam o comportamento do filho, mas não colocaram obstáculos à fissura crônica dele pelo mineral.
Aos 3 anos e meio, por causa da suspeita de puberdade precoce, o menino foi internado num hospital.

Além de se deparar com uma dieta pobre em sódio, ele foi privado dos meios que tinha para obter a substância. Seu desespero não comoveu os médicos, que pouco entenderam a situação inédita. O garoto acabou morrendo, vitimado por complicações resultantes do desequilíbrio hidrossalino.

Trata-se de um caso clássico na história da fisiologia, descrito em 1940 pelo fisiologista americano Curt Richter (1894-1988), da Universidade Johns Hopkins (EUA). Richter foi o primeiro cientista a investigar o apetite por sódio, alguns anos antes de relatar essa história. Ele constatou que a criança tinha uma deficiência nas glândulas adrenais e, por isso, não produzia um hormônio (aldosterona) essencial para a retenção de sódio pelos rins.

Discussão - 5 comentários

  1. Otávio Müller disse:

    " A primeira célula surgida na Terra, há 3,5 milhões de anos", não seriam 3,5 bilhões? Ótimo texto, parabéns.

  2. Luciana Christante disse:

    Sim, claro que é "bilhões". Que vergonha! Obrigada pela correção.

  3. Barbara disse:

    Parabéns pelo texto! Muito esclarecedor!! Me ajudou aqui com a minha vontade louca e repentina de comer sal.

  4. Daniela disse:

    Muito informativo, parabéns!

  5. Josiane Bragança disse:

    Parabéns pelo texto! Sempre me senti "estranha" por causa da minha vontade louca de comer sal. Agora entendo que muitas outras pessoas passam pela mesma situação e que isso é "normal". Muito esclarecedor! Obrigada por compartilhar!

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