Remédio fora do mercado é sinal de saúde

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Em 29 de setembro passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) cancelou o registro do medicamento Avandia (rosiglitazona), indicado para o tratamento do diabetes tipo 2. Assim como havia ocorrido com os anti-inflamatórios Vioxx, Prexige e o inibidor de apetite sibutramina, a medida resultou de estudos que identificaram alto risco de problemas cardiovasculares.

A pergunta que fica é: por que esse risco só foi detectado agora, depois que milhões de pessoas no mundo já consumiram o remédio e – principalmente – depois dos estudos clínicos que permitiram seu registro nas agências regulatórias de diversos países? O que falhou para que o problema não tenha sido previsto?

Especialistas rebatem afirmando que esse tipo de medida, que deve se tornar cada vez mais comum nos próximos anos, não é um mau sinal, pelo contrário. Mais do que falhas no sistema regulatório, ele demonstra progressos significativos, em nível nacional e internacional, de uma pouco conhecida trincheira da vigilância sanitária, a farmacovigilância, que monitora os medicamentos após o início da comercialização. Ela é necessária porque os estudos clínicos pré-registro não detectam as reações adversas menos frequentes, por uma questão estatística.

“Na fase 1, a droga é testada em dezenas de voluntários sadios, que não são as pessoas que tomarão a droga, para se obter dados de mecanismo de ação, distribuição e excreção pelo organismo”, diz Patrícia Mastroianni, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara. Aí são detectadas as reações adversas mais comuns, que ocorrem na proporção de 1:1, de 1:10 e, com muita sorte, de 1:100.

Nas fases 2 e 3, o medicamento é testado em pacientes, mas dentro de uma população selecionada e bastante homogênea, pois diversas variáveis são controladas (sexo, idade, outras doenças, outras drogas), para que se possa mensurar o efeito com precisão estatística. Na fase 2 participam algumas centenas de pessoas e na 3, alguns milhares, distribuídas em vários continentes. “Na fase 3, podemos detectar reações adversas na proporção de 1:100, 1:1000 e eventualmente 1:10 mil”, afirma a pesquisadora.

A vida como ela é
Mas só na fase 4, depois que a autoridade sanitária do país concedeu registro de comercialização da droga ao fabricante, é possível verificar como o medicamento vai funcionar na “vida como ela é”, diz. “Até o registro nós sabemos que o fármaco é eficaz e relativamente seguro. A fase 4 visa demonstrar sua efetividade, seu custo benefício em condições normais, quando a droga é usada por idosos, gestantes, diferentes etnias, pessoas com outras doenças e que estão tomando outros medicamentos”, enumera Patrícia.

“É equivocado pensar que um medicamento novo é necessariamente melhor. Pode ser do ponto de vista da eficácia, mas sua segurança só é consagrada após cinco anos de comercialização”, complementa. Segundo ela, na fase 4 é possível detectar reações na proporção de até 1:100 mil e eventualmente ainda mais raras.

O sistema nacional de vigilância sanitária da Anvisa coleta relatos de suspeitas de reações adversas provenientes de várias fontes, que embasam a agência a adotar medidas que vão desde alterações na bula e restrições de uso, até o eventual cancelamento do registro.

A farmacovigilância no Brasil teve início em 2001, quando o país virou membro de uma rede internacional criada em 1978 pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para monitorar os remédios no mercado. O marco que motivou sua criação foi a tragédia da talidomida nos anos 1960 e 1970 (quando milhares de bebês nasceram com má-formação nos membros).

A obrigação dos 101 países-membros é coletar relatos de reação adversa e outros tipos de problemas técnicos em medicamentos e produtos de saúde em geral, tomar medidas nacionais de segurança toda vez que surgir um alerta, além de alimentar o banco de dados mundial mantido pela OMS na Universidade de Uppsala, na Suécia, que por sua vez gera alertas internacionais. Com mais de 3 milhões de notificações, o banco permite fazer análises refinadas e detectar ocorrências impossíveis para cada país individualmente.

Em 2009, o sistema de farmacovigilância brasileiro enviou a Uppsala 5,5 reações adversas graves para cada 1 milhão de habitantes. É pouco, porque a subnotificação no país é alta, mas é quase o dobro do ano anterior. “Ainda estamos ampliando nossas ações e nosso banco de dados”, diz Murilo Freitas Dias, gerente da área de farmacovigilância da Anvisa.

Segundo ele, cerca de 30% desses dados vêm dos laboratórios farmacêuticos – obrigados, pela legislação, a manter um sistema interno de farmacovigilância e a relatar qualquer suspeita relatada por médicos ou pacientes à empresa. Outros 10% dos dados vêm de cerca de 3.000 farmácias notificadoras credenciadas, cujos profissionais foram treinados para relatar suspeitas de efeitos adversos.

Sentinela hospitalar
É dos chamados hospitais sentinela, porém, que vem a maioria dos registros da agência – 55%. “A Anvisa investiu na capacitação e treinamento de pessoas escolhidas a dedo nesses lugares, que fazem uma busca ativa de reações adversas, além da sensibilização dos profissionais de saúde para a importância da notificação”, diz Patrícia.

Monitorar efeitos adversos nos pacientes internados é muito mais fácil. E é nos hospitais que as reações mais graves costumam chegar. Um estudo da pesquisadora realizado no Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto indicou que até 9% das internações de emergência são causadas por reações adversas a medicamentos.

O HC da Faculdade de Medicina na Unesp em Botucatu participa da rede de 270 hospitais sentinela desde 2003. Segundo sua gerente de risco, a enfermeira Silvana Andréa Molina Lima, de 2003 a 2009, o número de notificações enviadas a Brasília saltou de 74 para 388.

Apesar desse crescimento, notado em todo o sistema na última década, a farmacovigilância nacional ainda tem muito que melhorar. “Precisamos ampliar nossa ‘escuta’ por meio da expansão da rede sentinela e das farmácias notificadoras”, afirma Maria Eugênia Carvalhaes Cury, chefe do sistema nacional de notificação e investigação em vigilância sanitária da Anvisa.

As farmácias são consideradas a perna frágil do sistema. “Ainda são mais estabelecimentos comerciais do que de assistência farmacêutica”, queixa-se Patrícia. “E não é uma situação controlada. Lá não se tem o prontuário do paciente, muitas vezes nem se sabe direito o que ele tomou.”

Mudar essa cultura (que inclui a automedicação) só vai acontecer no médio e longo prazo, admite a pesquisadora. E há muitos desafios pela frente. Um levantamento de 2009 feito pelo Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, do qual ela participou, mostra que a farmacovigilância está ausente no currículo de 80% das faculdades de farmácia do Estado.

Imagem: psyberartist

Reportagem publicada na edição de novembro da Unesp Ciência.

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