Cartas de um herói ressentido

Resenha publicada na Unesp Ciência de abril de 2011.

Análise das missivas de Simón Bolívar, um dos maiores ícones da independência da América Latina, revela o esforço de um homem frustrado para salvar sua honra e ser idolatrado pelas gerações futuras

Alheia à história da independência da América hispânica, a maioria dos brasileiros talvez deva a Hugo Chávez o pouco que sabe sobre o general Simón Bolívar (1783-1830).

O presidente da República Bolivariana da Venezuela (assim renomeada por Chávez) comporta-se como a reencarnação do herói que derrotou o domínio europeu no século 19 e até hoje é cultuado com tintas vibrantes também na Colômbia, no Peru e na Bolívia.

Em julho passado, Chávez ordenou a exumação dos restos de Bolívar, para investigar a “verdadeira” causa mortis. Os registros oficiais dão conta de que a tuberculose matou lentamente o general, mas o líder venezuelano desconfia que ele foi envenenado – afinal, herói que se preze morre assassinado, não de infecção.

É possível que a historiadora Fabiana de Souza Fredrigo tivesse problemas se quisesse publicar seu Guerras e escritas (Editora Unesp) no país de Hugo Chávez, pois o Simón Bolívar que ela revela, por meio da análise de suas cartas, é um ser humano vaidoso, ambicioso e, mais tarde, frustrado e amargurado. E, acima de tudo, um homem preocupado com a forma como seria lembrado na posteridade.

Por meio das 2.815 missivas que escreveu ao longo da vida, analisadas em seu doutorado na Unesp em Franca, a autora descortina um projeto de memória que Bolívar assumia como parte importante de sua vida.

“Ao oferecer aos seus interlocutores, cuidadosamente escolhidos, suas missivas, o general construía um código de valor entre seus homens (…). Bolívar pretendia que sua memória atingisse e mobilizasse gerações futuras. Pleitear a possibilidade de a posteridade anuir a seu projeto era uma aposta audaciosa, reveladora do fato de que, embora Bolívar não pudesse ter o domínio do futuro, o projetava. As cartas e os documentos que deixara para comprovar sua história eram a armadura protetora de sua honra”, escreve a autora.

Em nome dessa honra, o general costumava exagerar nos relatos de sucesso de suas estratégias militares e no número de soldados de que dispunha. Numa carta de 1822, Bolívar pede a outro militar: “[escreva] mil exageros de paz, guerra e coisas de Europa para que eu possa mostrar estas cartas a todos, principalmente aos inimigos, mas [escreva] exageros que sejam críveis”. Em 1825, quando começa sua decadência física, ele dissimuladamente registra: “Não mande publicar minhas cartas, nem vivo nem morto, porque elas estão escritas com muita liberdade e desordem”.

Libertar as colônias sul-americanas do domínio espanhol até que foi fácil se comparado ao trabalho que foi lidar com as guerras internas que se sucederam à independência e fragmentaram parte do continente, para profundo desgosto do general. “A vida de glórias terminaria com a incompreensão do povo que ele havia lutado para libertar”, afirma Fabiana. “Se, ao final da vida, algo paralisava Bolívar, não era exatamente a doença, mas o ressentimento.”

E se hoje nada disso transparece no culto ao mito é porque seu projeto de memória foi de fato bem-sucedido. Influenciou gerações de historiadores latino-americanos, principalmente venezuelanos, que abriram mão do olhar crítico e ignoraram as contradições do personagem – um cenário que felizmente começa a mudar, como mostra este livro.

Guerras e escritas – A correspondência de Simón Bolívar (1799-1830)
Fabiana de Souza Fredrigo; Editora Unesp; 290 págs. R$ 59

Tempo

 

 

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de uma artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é (…)

Lavoura arcaica, Raduan Nassar, Companhia das Letras, 1989, págs. 51-3.

Foto: tonivc

Especialização do conhecimento

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“Vivemos uma época de especialização do conhecimento, causado pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. A especialização permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e se sentir de algum modo solidários.

“A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em guetos culturais de técnicos e especialistas, aos quais a linguagem, alguns códigos e a informação progressivamente setorizada relegam naquele particularismo contra o qual nos alertava o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido do pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo – de povos ou indivíduos – gera paranóias e delírios, as deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocábulos herméticos.”

Em defesa do romance, Mario Vargas Llosa, em Piauí, edição de outubro de 2009.

Foto: maduroman

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