Uma reportagem desleixada sobre publishers predatórios
A reportagem “Uma praga na ciência brasileira: os artigos de segunda”, publicada na revista Veja no domingo retrasado (6/12), causou espanto (para dizer o mínino) entre pesquisadores, alunos de pós-graduação e outros profissionais ligados ao mundo acadêmico brasileiro. Eu fiquei perplexa com tantas informações que não refletem a realidade. E pela repercussão no boca a boca e nas redes sociais, percebo que não fui a única. O texto traz um problema real, porém sob uma ótica distorcida e com tom incriminatório que desinforma leitores acadêmicos e não-acadêmicos. Para quem não leu, faço uma sinopse.
A matéria aborda a prática de pesquisadores brasileiros de publicar artigos científicos em periódicos de reputação duvidosa que, mediante a cobrança de uma taxa de publicação, aceitam quaisquer trabalhos sem que esses passem pela revisão por pares. Eles fariam isso porque, como a qualidade dos artigos é supostamente baixa, teriam poucas chances de serem aceitos por um periódico de maior impacto.
Por meio deste subterfúgio, os cientistas driblariam um mecanismo clássico, secular da ciência para avaliação crítica do resultados gerados por uma investigação científica. E ao mesmo tempo se beneficiariam ilegitimamente da pontuação que a publicação de tais artigos lhe confere ao currículo, de acordo com os sistemas de avaliação da produção acadêmica de agências como Capes e CNPq. Avaliação essa que é importante tanto para a obtenção de recursos para novos projetos de pesquisa quanto para a progressão na carreira acadêmica.
Em síntese: como são cada vez mais pressionados para publicar, os pesquisadores estariam se valendo cada vez mais deste tipo de publicação – que a reportagem chama (sistematicamente ao longo do texto) de “periódicos desleixados” -, o que seria atentado contra às boas práticas de publicação e à própria ética do fazer científico.
Do ponto de vista jornalístico, este é um daqueles casos em que uma boa ideia de pauta terminou numa reportagem lastimável.
A pauta é oportuna porque, de fato, estas publicações existem e seu número cresce em ritmo assustador. É uma praga mesmo, no mundo inteiro. E é uma pena que a reportagem não tenha usado o termo apropriado para se referir a estes periódicos, bem como às editoras (algumas delas de fachada) que os publicam. Nos meios acadêmico e editorial, tais empresas são conhecidas como publishers predatórios.
Atentar aqui para o uso do termo técnico não é preciosismo, por duas razões. Primeiro, porque dá uma referência para quem quiser saber mais fazendo buscas no Google. Ainda que não haja muita coisa em português, a pesquisa com “predatory publisher” ou “predatory journal” vai trazer algumas dezenas de milhares de fontes para o leitor se informar melhor sobre este fenômeno (há verbete na Wikipedia). Segundo: ao saber como funciona esta prática predatória, compreende-se que o papel dedicado ao pesquisador é o de presa.
Como em todo ramo há picaretas, deve haver entre os pesquisadores quem se vale deste tipo de periódico como uma via fácil e rápida para publicação de artigos. Mas, sendo bastante pragmática, vejo pelo menos dois motivos que me levam a crer que a prática não seja disseminada nem esteja se disseminando no Brasil.
A principal razão é que a imensa maioria dos periódicos tidos como predatórios não tem fator de impacto ou não está indexada nas bases de dados mais respeitadas, como Web of Science, Scopus, PubMed e outras específicas de cada área. Esses são os principais requisitos, para a maioria das áreas, para que um título seja incluído no Qualis (o sistema indexador da Capes). Fora dele, o periódico é muito pouco atrativo para os autores.
Ainda que a reportagem tenha citado alguns periódicos que figuram no Qualis, e que são surpreendemente bem avaliados, acho mais provável que isto seja um acidente de percurso do que um ato de má fé. A classificação das revistas no Qualis não é feita na canetada por um burocrata da Capes, mas faz parte de um trabalho maior e complexo realizado por comitês de áreas que se reúnem a cada 3 anos e são formados por pesquisadores. Pesquisadores que, na minha visão, ainda não estão suficientemente informados sobre esta praga digital que afeta o mundo da comunicação científica.
Nem sempre é fácil reconhecer um periódico predatório. Muitas vezes as evidências só ficam claras depois de ele estar operando há alguns anos. Com alguma frequência pesquisadores me perguntam coisas do tipo: “recebi este email me convidando para publicar/fazer parte do conselho do editorial, você conhece esta revista ou publisher?” Geralmente eles não sabem da lista de Jeffrey Beall, um bibliotecário americano dedicado a desmascarar os impostores. Quase sempre o suspeito está lá.
Mas a lista de Beall não é consensual, ainda que seja umas das referências mais importantes nesta área – algumas vezes ele já se viu obrigado a remover periódicos e publishers dela. De qualquer forma, se a reportagem tem algum mérito, é o de chamar a atenção da Capes e dos pesquisadores para este problema, e incentivar a discussão pelos comitês de área sobre a necessidade de uma avaliação mais rigorosa das revistas incluídas no Qualis. Esta seria uma medida eficaz para desestimular autores que, por ignorância ou má fé, consideram a publicação de seus artigos em algum destes periódicos.
Em segundo lugar, há razões econômicas para que a prática não seja tão disseminada no Brasil como a reportagem faz parecer. Da forma como as linhas de financiamento à pesquisa estão estabelecidas aqui, não é nada simples para o pesquisador obter o recurso para pagar a taxa de publicação de artigo – mesmo quando ele quer publicar em periódicos de acesso aberto bem conceituados ou que simplesmente fazem seu trabalho corretamente (sim, eles existem e já vou falar deles).
O principal desserviço prestado pela matéria foi ter jogado um caminhão de areia sobre a já confusa compreensão que a comunidade acadêmica brasileira tem sobre os periódicos de acesso aberto. Ela reforça a percepção equivocada de muitos pesquisadores de que todo acesso aberto é predatório. Ou a de que os únicos periódicos de acesso aberto confiáveis são aqueles que não cobram taxa de publicação de artigo. Ou ainda a de que apenas as revistas de assinatura são dignas de respeito.
A reportagem ignora a existência de periódicos de acesso aberto que cobram taxa de publicação e são altamente conceituados em suas áreas. Assim como os predatórios que não cobram taxa de publicação (no início, até ter um certo número de artigos publicados e com isso persuadir suas presas). E ao afirmar que “todo periódico desleixado é de acesso aberto”, omite a existência de títulos de assinatura com baixa reputação e impacto que igualmente aceitam qualquer artigo.
Mas a confusão não para aí. Trabalho para um publisher de acesso aberto há um ano e meio, tempo suficiente para colecionar alguns casos bem ilustrativos. Como o de um pesquisador para quem eu e um colega estávamos tentando explicar os benefícios do acesso aberto em relação aos periódicos de assinatura. Ele parecia intrigado e, a certa altura, nos questionou: “Mas hoje em dia tudo é acesso aberto, não? Do meu computador [na universidade] eu entro na Web of Science e baixo qualquer artigo!”. Faltava-lhe a informação que a Capes gasta quantias consideráveis para dar acesso aos cientistas brasileiros não só a milhares de periódicos de assinatura mas também à própria Web of Science. Isto não é acesso aberto.
A literatura em acesso aberto é aquela que é digital, online e que pode ser lida, reproduzida, distribuída e adaptada sem custo e livre da maioria das restrições impostas por direitos autorais e licenciamento. Esta é a definição de Peter Suber, diretor do Harvard Open Access Project, reconhecido como um líder mundial do movimento de acesso aberto. Para quem quiser saber mais recomendo fortemente seu livro Open Access (MIT Press, 2012; que obviamente está em acesso aberto e pode ser visto aqui – em inglês).
Na prática, publicar um artigo em uma revista de acesso aberto significa não apenas que os leitores em qualquer parte do mundo poderão lê-lo e baixar o arquivo sem custo, mas também que os direitos autorais são exclusivamente dos autores. Além disso, seu conteúdo deve ter uma licença Creative Commons do tipo CC-BY, o que permite a livre reprodução, tradução, distribuição e adaptação (para outros formatos e plataformas, por exemplo) por qualquer pessoa, sendo que a única exigência é citar a fonte.
Citando mais uma vez Suber (em tradução livre), “o acesso aberto beneficia literalmente a todos, pelas mesmas razões que a pesquisa científica beneficia literalmente a todos. O acesso aberto desempenha este serviço por facilitar a pesquisa e tornar seus resultados amplamente disponíveis e utilizáveis. Beneficia os pesquisadores enquanto leitores por ajudá-los a encontrar e reter a informação de que eles precisam, e também beneficia os pesquisadores enquanto autores ao ajudá-los a alcançar leitores que podem aplicar e citar seu trabalho e gerar novos conhecimentos com base nele. O acesso aberto beneficia quem não é pesquisador porque acelera a pesquisa científica e todas as coisas que dependem dela, como novos medicamentos e tecnologias, a resolução de problemas, a tomada de decisões, o aperfeiçoamento de políticas públicas e a apreciação da beleza da ciência”.
O acesso aberto só se tornou possível no início dos anos 2000, graças à revolução que a internet promoveu nos meios de comunicação em geral e na comunicação científica em particular. As facilidades tecnológicas para acessar, reproduzir e distribuir o conhecimento se chocaram com o modelo tradicional de periódicos, até então baseado em veículos impressos e em vigor há pelo menos 300 anos. Sob este modelo o acesso aos artigos tem custo, os autores têm de transferir os direitos autorais de seu trabalho para o publisher e muito pouco se pode fazer com este conhecimento, em termos de disseminação, sem autorização dele. Na mesma época, o valor das assinaturas dos periódicos cresceu muito acima da inflação e universidades mundo afora começaram a ter dificuldade em renová-las. Como consequência, o modelo passou a ser questionado pela comunidade acadêmica.
Três conferências internacionais realizadas neste período produziram documentos que assentaram as bases do movimento de acesso aberto: Budapest Open Access Initiative(2002), Bethesda Statement on Open Access Publishing (2003) e Berlin Declaration on Open Access to Knowledge in the Sciences and Humanities (2003). A premissa comum entre os três é a seguinte: na era digital, não faz sentido que os resultados de pesquisa científica financiada com recursos públicos tenham barreiras de acesso e disseminação.
Por esta época surgiram os primeiros publishers de acesso aberto, tendo como pioneiros PLOS, em São Francisco (EUA), e BioMed Central, em Londres (Reino Unido). (Eu trabalho para o segundo.) Estabeleceu-se um novo modelo de negócio para a publicação de periódicos. Nele, os custos dos serviços editoriais, em vez de serem cobertos pela cobrança do acesso, como ocorre nas revistas de assinatura, agora são pagos por meio da taxa de publicação de artigo (APC, na sigla em inglês). É importante ressaltar que esta mudança não altera em nada o compromisso dos publishers e dos editores com as boas práticas de publicação científica, especialmente no que diz respeito à revisão por pares. E vale a pena esclarecer também que a cobrança da APC deve ser feita depois desta revisão e apenas se o artigo for aceito pelo editor-chefe, que toma sua decisão baseado na avaliação dos revisores.
Muitos outros publishers de acesso aberto surgiram desde então. Paralelamente, diversos publishers tradicionais começaram a migrar, pelo menos parte de seu portfólio, para o novo modelo. Mas não demorou muito para que os impostores começassem a aparecer.
Quem está por trás dos periódicos predatórios conhece muito bem o mundo acadêmico e enxergou oportunidades. Percebeu que na última década a produção científica cresceu muito no mundo todo, mas especialmente nos países emergentes. Já os recursos para pesquisa não aumentaram na mesma proporção, o que tornou o ambiente mais competitivo. A produção de artigos passou a ser a principal métrica usada na avaliação do desempenho acadêmico, o que gerou uma pressão enorme, por parte das agências de fomento e dos programas de pós-graduação, por este tipo de publicação.
O resultado é que hoje quase qualquer periódico, de assinatura ou acesso aberto, bem ou mais ou menos conceituado, tem de lidar com uma longa fila submissões, principalmente dos países emergentes. Nos títulos mais estabelecidos, as taxas de rejeição subiram para conter a demanda. Em outros, os autores podem esperar mais de um ano para ter seu artigo publicado. Ou seja, é muito artigo para pouca revista.
Pressionados para publicar e/ou frustrados com a demora de muitos periódicos ou rejeições sucessivas, muitos pesquisadores se tornam presas fáceis dos publishers predatórios, que infestam a caixa postal de suas potenciais vítimas. Às vezes o título da revista e o website são muito parecidos com o de outra, tradicional, na qual aquele autor já publicou anteriormente. O conselho editorial quase sempre é fabricado e as indexações, principalmente quando são muito vistosas, geralmente são falsas. Alguns usam fatores de impacto “alternativos” que levam os autores a crer que se trata do (venerado) indicador da Thomson Reuters.
Tem gente que se dá conta da farsa a tempo, como quando recebe o aviso de aceite e o boleto para pagar a APC poucos dias depois da submissão – uma revisão por pares decente raramente leva menos de dois meses. Outros, infelizmente, só percebem a armadilha depois que o artigo foi publicado, o que é uma pena, pois jamais conseguirão retirá-lo de lá.
Alguém poderia argumentar que bastaria apagar tais e-mails para não cair em cilada. Mas não é tão simples. Faz parte da rotina do pesquisador receber mensagens, nem sempre indesejadas, enviadas por publishers. Ele pode ter se registrado para receber alertas das novas edições dos periódicos que acompanha, ser convidado para revisar artigos de revistas de sua área ou para submeter artigos para uma edição temática de um título no qual já publicou. E pode também receber convites para publicar em novas revistas de acesso aberto não predatórias para as quais, sobretudo nos seus primeiros anos de existência, este tipo de promoção é importante (e há formas de se fazer isso sem recorrer ao spam). Afinal, publishers sérios também sabem que existe uma demanda reprimida e investem em novos títulos.
Além de atazanar a vida dos pesquisadores, os publishers predatórios ameaçam a expansão do modelo de acesso aberto, que apesar do belo caminho trilhado nesses últimos 15 anos ainda é minoritário em relação ao modelo de assinatura. Para mim, a conclusão que fica é que precisamos urgentemente falar mais sobre as virtudes do acesso aberto. E esquecer aquela matéria desleixada.
Instituto Biológico
Existe um cafezal na cidade de São Paulo (aparentemente o único), remanescente dos áureos tempos em que o café era a commodity mais importante deste país. Fica na Vila Mariana, bem perto do Parque Ibirapuera, e pertence ao Instituto Biológico, uma instituição de pesquisa ligada à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do governo paulista.
No dia 24 de maio, uma quarta-feira, lá estávamos eu e minha amiga Thaisi, às 9h da manhã, para acompanhar a primeira colheita da safra de 2012. O evento acontece todo ano, mas desta vez foi maior por causa dos 85 anos do Instituto Biológico.
Era uma manhã quente de outono, de céu acinzentado. Bolos, biscoitinhos, canjica e outros quitutes compunham uma farta mesa de café-da-manhã. Além de sucos e, claro, cafezinho feito na hora. Os convivas eram praticamente todos de meia idade, muitos japoneses, outros com aquele ar aristocrático de morador antigo da Vila Mariana, além dos funcionários do Instituto. A casa estava cheia.
Como era evento importante, não podia faltar o secretário de agricultura e mais um bando de burocratas doidos para discursar e aplaudir. Enquanto todos se encaminhavam para debaixo de uma tenda para o momento solene, eu e Thaisi fomos dar umas bandas pela propriedade de 122 mil metros quadrados, tombada pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Foi quando fiz estas fotos. É um lugar parado no tempo. O tombamento não justifica o ar de abandono.
O Instituto Biológico foi criado em 1927 por causa de uma praga que abatia os cafezais paulistas. No ano seguinte começou a construção do prédio na avenida Rodrigues Alves, em estilo art déco, que só foi concluída em 1945. Em 1932, o prédio serviu de hospedagem para tropas gaúchas que lutaram ao lado dos paulistas na Revolução Constitucionalista.
Em 1929, o Instituto Biológico admitiu o médico e microbiologista José Reis (1907-2002) que mais tarde abraçou o jornalismo e foi um grande incentivador da divulgação científica no país. Reis manteve durante mais de 50 anos uma coluna dominical na Folha de S. Paulo, tendo chegado a ser diretor de redação do jornal em 1962.
Para ver mais fotos e versões ampliadas destas, Flickr.
A Amazônia, por Adrian Cowell
Está em cartaz no Cinesesc, em São Paulo, até quinta-feira (12/7), uma mostra dos filmes de Adrian Cowell, um britânico formado em história pela Universidade de Cambridge que pisou pela primeira vez na Amazônia em 1957 e produziu, ao longo dos 50 anos seguintes, mais de 30 documentários, a maioria deles para a TV britânica e ainda inéditos no Brasil.
A mostra Amazônia 50: meio século de cinema documental de Adrian Cowell homenageia este documentarista que morreu em outubro do ano passado, aos 77 anos, de ataque cardíaco, às vésperas de mais uma viagem ao Brasil para finalizar seu derradeiro filme. Cowell nos deixou um registro farto e sem precedentes da história da floresta amazônica, contido em cerca de 3.500 latas de filme de valor incalculável.
Imagino que quem assistiu a Xingu (2012), de Cao Hamburguer, terá gosto de rever, como eu tive, muitas situações vividas pelos irmãos Claudio e Orlando Villas Bôas – em ótima interpretação de João Miguel e Felipe Camargo, respectivamente – na pele real dos próprios.
Vi no sábado A tribo que se escondia do homem, de 1970 (passará de novo na quarta às 21h), que é uma espécie de Xingu 2, só que de verdade. O filme começa exatamente no ponto onde termina o longa de Hamburger, ou seja (isso não é spoiling), quando Claudio e Orlando partem numa missão de resgate dos arredios índios Kreen-akore, antes que uma estrada passe por cima deles.
Embora pouco conhecidos por aqui, os filmes de Cowell foram muito vistos no Reino Unido e na Europa, onde receberam alguns prêmios. Seu registro do trabalho dos irmãos Villas Bôas de salvamento dos povos indígenas do Brasil central contou muito para as duas indicações ao Nobel da Paz que eles tiveram na década de 1970. Prêmio que teria sido muito merecido.
Cowell conviveu também com Chico Mendes e ao lado dele, nos anos 1980, documentou o estado de violência da floresta, tão tristemente atual.
Toda sua obra está sob a guarda do Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia da PUC de Goiás, colaborador na produção de vários filmes, e que restaurou diversos títulos. No site deles é possível conferir todas as sinopses, mas não baixar os documentários, que, segundo anunciado, em breve serão vendidos em DVD. No Youtube se encontra vários trechos curtos e um ou outro filme na íntegra, raramente em português.
A mostra no CineSesc (rua Augusta, 2075) começou no dia 5 e, repetindo, vai até a próxima quinta (12). Entrada grátis. Por favor, ajudem a divulgar.
Memórias de um subversivo
Lenda viva no meio acadêmico e talentoso cronista, o médico Luiz Hildebrando narra os momentos mais críticos do século 20 por meio de histórias pessoais que ajudam a entender melhor o Brasil e sua ciência.
(Texto publicado na edição de junho/2012 da revista Unesp Ciência)
Aos 83 anos – dos quais 60 de carreira acadêmica –, o médico e parasitologista paulista Luiz Hildebrando Pereira da Silva é um dos mais importantes cientistas brasileiros vivos e em atividade, ainda que pouco conhecido fora desse meio. Mas, mais importante que conhecer suas credenciais científicas superlativas é saber que o narrador destas Crônicas subversivas de um cientista um dia foi um menino que cresceu na zona sul da cidade de São Paulo ouvindo pelo rádio as notícias da Segunda Guerra; foi um estudante que viveu de corpo e alma a efervescência política dos anos 1940 e 1950; e se fez homem num mundo coberto pelas nuvens da Guerra Fria.
Intelectual combativo, militante comunista e habilidoso articulador político, Hildebrando tornou-se uma das primeiras presas da ditadura militar. Expulso ainda em 1964 após uma investigação por “atividades subversivas” na Faculdade de Medicina da USP, da qual era professor, ele passou mais de 25 anos – somados os dois períodos de exílio – trabalhando no Instituto Pasteur em Paris, ao lado de figuras estelares da ciência. De volta ao país há 15 anos, como autoridade mundial em malária, assumiu a tarefa de criar um centro avançado de pesquisas na improvável Porto Velho (RO), onde também ajudou a criar e dirige uma unidade da Fundação Oswaldo Cruz.
Estas memórias que saem agora pela Vieira & Lent são uma recompilação de dois livros – O fio da meada (Brasiliense, 1990) e Crônicas de nossa época (Paz e Terra, 2001). Nelas Hildebrando mostra que, além de ótima memória e muita história para contar, tem ainda uma bem lapidada veia literária. Não se trata de um livro de ciência nem de divulgação científica, porque não pretende ensinar nada a ninguém. Ele não pretende se ocupar da História com H maiúsculo, mas das pequenas narrativas do cotidiano, que por sua vez atravessam os momentos mais conturbados da política nacional e da geopolítica mundial do século 20. E que o leitor revive na pele de um cientista engajado, com ideais e convicções de sua geração, mas que sabe passar ao largo da tentação da autocongratulação.
As crônicas de Hildebrando estão cheias de pessoas e afetos. Assim, as lembranças da avó Chiquinha adquirem a mesma estatura das do amigo e físico Mário Schenberg, ou das do mestre François Jacob, Nobel de Medicina em 1965. Em muitas flagramos o autor rindo de si mesmo, como quando decidiu pegar em armas – aparentemente pela primeira e última vez – para matar mosquitos.
Corria o ano de 1968, Hildebrando acabara de voltar do primeiro exílio e ainda não sabia que logo depois o AI-5 o expulsaria de novo. Entediados com a vida pacata como professores na USP em Ribeirão Preto, ele o amigo Erney Camargo – dois seres urbanos – usaram coquetéis molotov para exterminar os criadouros dos mosquitos que infestavam o câmpus da Faculdade de Medicina (leia trecho abaixo).
Outras histórias revelam os bastidores do jogo de forças que permeava a política universitária paulista e descrevem lances que tiveram profundo impacto no desenvolvimento científico e tecnológico do Estado e do país nas décadas seguintes. É o caso da criação da Fapesp.
A lei orgânica do governo Carvalho Pinto que instituía a agência de fomento à pesquisa de São Paulo é de 1960, mas houve dificuldades para regulamentá-la, em grande medida por resistência da USP. A oportunidade de furar esse cerco veio quando o matemático italiano Jaurès Cecconi, que trabalhava no câmpus da universidade em São Carlos desde 1956, havia dado por concluída sua missão no Brasil e precisava retornar a Gênova, onde um novo contrato o aguardava. Ocorreu, porém, que a reitoria não cumpriu o prometido e negou custeio da viagem de retorno para ele e a família, algo que na época era mais comum fazer de navio.
A notícia se espalhou e foi bater no telefone de Hildebrando, que pensou, pensou e arriscou ligar para Plínio de Arruda Sampaio, então chefe de gabinete do governo estadual, que não era exatamente um companheiro, mas a quem respeitava. O governador Carvalho Pinto não gostou nada do constrangimento sofrido pelo professor Cecconi e pagou-lhe passagens de avião. Como a eleição na USP estava próxima, o incidente foi a gota d´água para o início de uma articulação de pesquisadores, apoiada pelo Palácio dos Bandeirantes, para colocar alguém da oposição na reitoria. Dos intensos debates sobre o tema, que acirraram os ânimos de Mario Schenberg e do arquiteto Vilanova Artigas e tiveram grande participação do casal Ruth e Fernando Henrique Cardoso, saiu a indicação de Antonio Barros de Ulhôa Cintra, que se elegeu em 1961 e botou a Fapesp em funcionamento no ano seguinte.
Quando Hildebrando é exilado pela segunda vez e retorna a Paris, em 1968, enfia a cara na genética de parasitas e dá passos científicos importantes, pelos quais o Instituto Pasteur investe nele. Aqui, o leitor que não vem das ciências biológicas pode não entender muito bem a descrição dos experimentos no laboratório, as hipóteses de trabalho ou resultados obtidos, mas isso não prejudica o fluxo da narrativa, porque importam menos as tecnicalidades que acompanham as perguntas da ciência do que o percurso, as convicções e os percalços que levam o pesquisador até elas.
“Milhares – milhões mesmo – de outros jovens que viveram os mesmos acontecimentos permaneceram indiferentes ou tomaram posições opostas”, reflete o médico na página 47. “Então, se nos interessa saber como e por que um adolescente insignificante, perdido num ponto do mapa-múndi, virou isso ou aquilo, ou não virou nada, é preciso se interessar pelo molho servido com o prato principal.”
Seu livro é, portanto, puro molho, temperado e maturado ao longo de várias décadas, de sabor ao mesmo tempo suave e intenso. Pois o prato principal, a História maiúscula, ele deixa humildemente para os historiadores.
Crônicas subversivas de um cientista
Luiz Hildebrando; Vieira & Lent; 480 págs.; R$ 68
Trecho
A ideia para sair do buraco veio num domingo, na hora do aperitivo, Erney e eu sentados na varanda, olhando as vacas ao longe. – A única solução que vejo é virar ecologista, disse. Erney engasgou com seu uísque e quase se afogou num acesso de tosse. Ele era alérgico à palavra. Tudo o que fazia lembrar a natureza o enchia de urticária.
(…) – Escuta, Astolfo você não pensa que a situação do Culex aqui é inadmissível? Uma faculdade de Medicina que se orgulha, com razão, de ser uma das melhores do país. Com um ensino de parasitologia de primeira qualidade e infestada de Culex! É vergonhoso!
(…) Astolfo não sabia o que era [coquetel molotov]. Não estava escrito nos seus livros. Sem fornecer a origem de minhas competências, explico o princípio. No laboratório preparamos sete “molotovs” (…) Abro caminho entre a vegetação. Um fogaréu, vinte metros à direita, me anuncia que Erney lançou o ataque.
(…) O cheiro de carne queimada de mosquito invade o ar – se é que mosquito queimado cheira a alguma coisa. Lanço meu segundo coquetel e espero. Depois me aproximo com o latão de óleo diesel. Chego mais perto… E o que vejo? Uma cabeça de cobra jararacuçu, assustada pelo fogo, emerge da superfície da água.
A culpa não é do capim
Matéria publicada na Unesp Ciência de março de 2012 (pdf).
O sol massacrante e o predomínio de gado holandês é que prejudicam a pecuária leiteira no semiárido cearense, aponta estudo da Unesp em Jaboticabal; técnicas de manejo poderiam amenizar o problema
Ninguém mais lembra quando nem como vacas holandesas chegaram pela primeira vez a Limoeiro do Norte, cidade cearense que fica a 200 km de Fortaleza, em pleno semiárido nordestino. Como a pecuária extensiva e a atividade leiteira são tradicionais na região, para os limoeirenses é normal ver esses animais, com seu pelo malhado em branco e preto, soltos nos pastos ou, o que é bastante comum, descansando na sombra das árvores, dentro de pequenas propriedades espalhadas pelo município onde vivem cerca de 56 mil pessoas e quase 7 mil vacas de leite, segundo o IBGE.
Ver essa raça de gado originada dos Países Baixos – onde o clima é classificado como temperado marítimo – sendo criada numa das regiões mais tórridas do Brasil pode ser normal para os limoeirenses, mas não para o zootecnista acreano Alex Sandro Campos Maia.
“Fiquei muito surpreso”, recorda o pesquisador da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal, que na época da visita ao local, anos atrás, estava ligado à Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa). “Quando conto para meus colegas do exterior, que também trabalham com gado holandês, ninguém acredita que isso é possível.” Segundo ele, existem raças de gado mais bem adaptadas ao calor intenso.
A contradição climática chamou a atenção do pesquisador, que conversando com produtores locais logo descobriu que a produtividade deles é muito baixa.
Enquanto no Sudeste uma vaca holandesa produz em média 33 quilos de leite por dia – em casos excepcionais podendo superar 40 quilos diários –, em Limoeiro do Norte cada animal rende diariamente entre 12 e 15 quilos de leite, compara Campos Maia. “Não que eles (os produtores) reclamem”, afirma. “O negócio parece estar indo bem. Mas podia estar muito melhor.”
O pesquisador constatou também que os produtores sabem que suas vacas podiam render mais leite e costumam justificar o infortúnio culpando o capim, que seria de má qualidade – hipótese que não convenceu o zootecnista. “Não há nada de errado com o pasto. A folhagem é boa”, afirma.
Desde o princípio, sua suspeita recaiu sobre o estresse térmico severo a que aquelas vacas estão expostas. Para comprová-lo, ele elaborou um projeto de pesquisa cujos resultados estão prestes a ser publicados na revista Applied Animal Behaviour Science. Os resultados permitem concluir que a culpa não é do capim, mas do sol e do calor acachapantes do lugar – não há holandês que aguente.
A vaca foi pra sombra
A pesquisa consistiu na observação de oito vacas holandesas, ao longo de uma semana em outubro de 2010, numa das propriedades do município cearense. Quem estava lá de prontidão, das 6 h da manhã às 6h da tarde, era Steffan Edward Octávio de Oliveira, na época aluno do último ano do curso de Zootecnia da Ufersa, que fez do projeto seu trabalho de conclusão de curso, sob orientação de Campos Maia. “Analisamos o efeito da radiação solar no comportamento das vacas”, explica ele.
As vacas tinham acesso ao pasto a partir das 6 h da manhã, depois da primeira ordenha do dia, em estábulo, que começava às 3 h. O problema é que às 7 h o sol já é “muito forte”, segundo Campos Maia. E há um incremento brutal nas horas seguintes. “Às 7 h, a intensidade da radiação solar está em torno de 500 Watts por metro quadrado (W/m2). Uma hora depois, esse valor chega a 900 W/m2”, acrescenta. O pico, entre 10 h e 11 h, ultrapassa 1.100 W/m2.
Os resultados mostraram que a partir das 8 h, quando a radiação solar superava 600 W/m2, os animais procuravam a sombra e lá ficavam, parados, a maior parte do tempo. O horário em que mais comeram foi das 6 h às 7 h, quando a radiação ainda estava abaixo dos 300 W/m2. Durante a tarde, não lhes restava muito tempo para pastar, pois quando o sol começava a amainar, ao redor das 15h, eles eram reconduzidos ao estábulo para nova ordenha e dali só saíam no dia seguinte.
É por comer pouco que as vacas não estão produzindo todo o leite de que são capazes. Segundo o pesquisador, o sol intenso as faz perder o apetite, tal como ocorre com humanos. “Metabolicamente falando, o animal faz uma conta interna, segundo a qual é melhor ficar sem comer, mas na sombra, do que buscar alimento no sol. É uma questão de sobrevivência.”
Algumas medidas deixam claro que a decisão das vacas é, de fato, a mais prudente. Enquanto a temperatura média do solo à sombra ficava por volta dos 30 oC, a do chão exposto ao sol superou os 60 oC. Já a temperatura superficial dos animais, medida com câmeras de infravermelho, foi pelo menos 5 oC menor à sombra em comparação a quando estavam debaixo do sol.
A segunda fase da pesquisa já começou. Desta vez, o horário da ordenha será alterado para que o rebanho possa pastar em momentos do dia com menor radiação solar. Se com isso ele ficar mais tempo no pasto, a produção de leite deve aumentar.
Esta é a hipótese que Oliveira vai testar ao longo do seu mestrado, iniciado no ano passado, na Unesp em Jaboticabal. “Existem sistemas de sombreamento, mas custam caro para o produtor. Estamos buscando soluções simples”, conta o aluno. “Queremos adiantar as ordenhas em uma hora e verificar se há resultado.” Seu orientador não descarta a ideia de interferir um pouco mais, permitindo que o rebanho possa pastar à noite, por exemplo.
Sem protetor
Mesmo que técnicas de manejo não aumentem a produtividade da pecuária leiteira de Limoeiro do Norte (o que é pouco provável), poupar o rebanho holandês do sol do semiárido deve pelo menos amenizar um problema de saúde bovina comum na região: o câncer de pele. “Cerca de 10% dos animais que vi lá tinham a doença, às vezes em estágio avançado. É um número muito alto”, diz Campos Maia.
Poluição após a morte
Matéria publicada na Unesp Ciência de novembro de 2011 (pdf).
Geólogo de Rio Claro adapta método de imageamento do solo para avaliar a contaminação ambiental gerada pelos cemitérios, um tema tabu até mesmo no meio científico
É bom avisar logo que o assunto é um tanto incômodo e justamente por isso tende a ser negligenciado. Para tratar objetivamente do impacto ambiental dos cemitérios é preciso antes passar por cima – ainda que momentaneamente – de nada menos que o tabu da morte. Seja lá qual for sua crença ou descrença em relação à existência pós-túmulo, o fato é que para todos nós é muito mais fácil lidar com a possibilidade, real ou fictícia, de uma alma sem corpo (alma no sentido básico, de anima) do que com a ideia concreta de um corpo sem alma. Mas espíritos ou fantasmas, ao que tudo indica, não poluem o solo ou a água, ao contrário do que pode ocorrer com o corpo humano depois que perde a vida.
O tema é ainda mais delicado para os cientistas que se dispõem a estudá-lo, que não por acaso são poucos em qualquer país. Bem o sabe o geólogo Walter Malagutti Filho, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp em Rio Claro, que está investigando o grau de contaminação do solo abaixo das sepulturas de um cemitério municipal na mesma cidade e já concluiu trabalho semelhante na vizinha Piracicaba.
A primeira dificuldade, explica ele, é convencer a administração do lugar a autorizar a pesquisa, algo que é bem mais difícil de se obter das necrópoles privadas, segundo Malagutti. O segundo desafio é a coleta de dados propriamente dita. “O cemitério é um espaço sagrado”, justifica. “Os geólogos costumam trabalhar no campo de um jeito muito descontraído. Já no cemitério temos de trabalhar de forma muito discreta, rápida e silenciosa. As pessoas olham feio.”
O geólogo utiliza um método elétrico para detectar abaixo da superfície as chamadas plumas de contaminação, que são como línguas por onde se infiltra o fluido viscoso que tem origem nas sepulturas e é resultado natural da decomposição. Nesse processo, no qual atua um grande número de bactérias, um corpo de 70 kg pode gerar até 40 litros do chamado necrochorume, ao longo de um período que varia de três a cinco anos após o sepultamento.
Onde há plumas de contaminação, o solo fica menos resistente à passagem de corrente elétrica. Usando quatro eletrodos fincados no chão, Malagutti faz as medidas que, uma vez processadas no computador, formam uma imagem indireta dos subterrâneos do cemitério. O imageamento elétrico é um método diagnóstico relativamente simples e pouco invasivo, mas tem suas limitações, segundo o pesquisador.
A medida direta ideal, esclarece, exigiria grandes perfurações em meio às sepulturas, o que obviamente está fora de cogitação. “O imageamento elétrico já é usado para avaliar a contaminação subterrânea causada por aterros sanitários. Estamos adaptando-o para os cemitérios”, diz Malagutti com muito cuidado, reconhecendo que, do ponto de vista sentimental, a comparação parece aviltante.
O fato é que, do ponto de vista técnico, o impacto ambiental de um cemitério é comparável ao de um aterro de lixo – mais precisamente de lixo hospitalar, já que muitos defuntos passaram antes por internações e estão impregnados de medicamentos e materiais médicos e cirúrgicos. Há duas diferenças importantes, entretanto, no que se refere à escala de tempo, lembra o geólogo: os aterros têm vida útil, ao término da qual são fechados. Já a população das necrópoles, por assim dizer, se renova continuamente.
Efeito cumulativo
Em Rio Claro, o pesquisador tem verificado que as plumas de contaminação parecem mais intensas justamente nas áreas mais antigas do cemitério (que tem 130 anos), sugerindo um impacto maior por efeito cumulativo. O ideal, segundo ele, seria não fazer mais sepultamentos ali.
Ainda não se sabe se essas possíveis plumas alcançam o lençol freático que passa 20 m abaixo da superfície. Tal profundidade impõe a dificuldade técnica de chegar até lá para coletar amostras da água, mas, em compensação, atua como fator de proteção. Em Piracicaba, porém, os resultados obtidos por Malagutti foram confirmados por testes que detectaram contaminação do lençol, bem mais raso nesse caso.
Se a água contaminada pelo necrochorume passar por uma estação de tratamento antes de chegar às nossas torneiras, menos mal. Lá ela será desinfectada (a um custo que é pago pela sociedade, sempre é bom lembrar). “Agora imagine quantos poços artesianos existem por aí, onde não é feito controle de qualidade”, aponta o pesquisador. Muitos deles podem ser usados para irrigar lavouras.
Nos cemitérios construídos mais recentemente, o risco de contaminação é bem menor. Desde 2003, a legislação estipula, entre outros itens, que eles não podem ocupar áreas de preservação ambiental, nem terrenos sob os quais o lençol freático passa a menos de 5 m de profundidade, além de dispor sobre normas para construção dos jazigos a fim de evitar a infiltração do necrochorume no solo.
O problema, portanto, concentra-se nas necrópoles antigas – a esmagadora maioria. O ideal seria que elas não recebessem mais corpos e que novas áreas, fora da cidade, fossem abertas para esse fim e seguindo a legislação ambiental, defende o geólogo da USP Alberto Pacheco, o pioneiro nessa área no Brasil.
São dele os trabalhos que já mostraram sérios problemas de contaminação do solo e do lençol freático em dois grandes cemitérios da cidade de São Paulo: na Vila Nova Cachoeirinha (zona norte) e na Vila Formosa (zona leste).
Aposentado, Pacheco está escrevendo um livro de divulgação científica sobre o tema para chamar a atenção da população e do poder público. “Precisamos entender que, vivo ou morto, o ser humano polui o ambiente”, diz ele. “Usando o conhecimento da geologia e técnicas de gerenciamento, nós podemos tornar os cemitérios mais sustentáveis e evitar que um risco potencial de contaminação se torne um risco efetivo”, resume.
Uma história de amor e angústia
(Este texto foi originalmente publicado em 7/10/2011 no blog da revista Unesp Ciência.)
Teresa e Joaquim formam um casal de meia-idade que vive em Botucatu, no interior de São Paulo, e na realidade não tem esses nomes que acabei de inventar. Não querem ser identificados porque guardam um segredo. Ninguém sabe que há cerca de três anos eles se descobriram portadores do vírus da Aids.
Ninguém exceto a filha, uma comadre muito amiga de Teresa e os profissionais de saúde que os acompanham no Hospital Dia Domingos Alves Meira, um centro especializado no tratamento de HIV e hepatites virais da mesma cidade, ligado à Faculdade de Medicina da Unesp.
O filho deles, com mais de 30 anos, nem sonha com o drama dos pais, que querem poupá-lo do sofrimento. O mesmo sofrimento com o qual teve de lidar a filha, de quem foi inútil ocultar a situação. Ela desconfiou de tantas idas e vindas ao médico, do abatimento emocional deles e dos segredos sussurrados pelos cantos da casa. Um dia botou a mãe contra parede, pediu uma explicação sincera e a conseguiu.
Entrevistei Teresa e Joaquim na manhã gelada de 1º de setembro deste ano. O infectologista que os acompanha, com quem passei quase o dia inteiro apurando a reportagem de capa desta edição, já havia me dito como o casal contraíra o HIV. Ela foi infectada por ele, que por sua vez adquiriu o vírus numa relação extraconjugal desprotegida.
Não sei o quanto o casamento dos dois foi abalado por essa traição de consequência trágica, não tive coragem de perguntar. Seja lá o que tenha acontecido com a relação deles diante desta revelação, o fato é que, mesmo os tendo visto uma única vez, para mim era evidente que o vínculo do casal estava mais sólido do que nunca.
Mais tarde o médico me diria que normalmente é assim, quando os dois estão infectados, a união geralmente se fortalece. Quando apenas um deles contrai o vírus, a separação é a regra. Também é comum entre os soropositivos de qualquer idade, casados, solteiros ou separados, manterem sua condição em segredo. O temor do estigma e da discriminação ainda fala mais alto.
Teresa estava muito abalada naquele dia. Ao contrário do marido, ela nunca tinha tomado os medicamentos anti-HIV porque sua contagem de linfócitos CD4 não havia atingido o nível abaixo do qual o tratamento é iniciado. Mas o último exame mostrava que a malfadado dia estava próximo, apesar de todas as suas preces. Dizia isso com um fiapo de voz e os olhos marejados. Joaquim segurava sua mão.
Há três anos ele quase morreu por causa de repetidas pneumonias, de cuja verdadeira causa os médicos tardaram a suspeitar. Foi só quando Joaquim desenvolveu herpes, infecção oportunista típica da Aids, que o exame de HIV foi pedido. O atraso no diagnóstico lhe custou a visão de um dos olhos, motivo pelo qual hoje ele está aposentado.
Apesar de tudo, Teresa e Joaquim se consideram pessoas de sorte pela qualidade do atendimento que recebem no Hospital Dia Domingos Alves Meira. Criado em 2004, o centro leva o nome de seu fundador e coordenador, um veterano e obstinado infectologista que batalhou muito para colocar em prática uma unidade multidisciplinar cujo pilar principal é a medicina humanizada. Além do tratamento padrão, os pacientes recebem assistência odontológica, psicológica, fisioterápica, sempre de graça pelo SUS. Brasil afora, nem todo lugar tem essa estrutura e não por acaso vem gente de longe para se tratar em Botucatu.
***
Nada do que Teresa e Joaquim me contaram naquele dia foi usado por mim na reportagem, que trata de uma nova faceta da Aids, ainda pouco conhecida pela população, mas que já preocupa os especialistas. A longevidade conquistada pelo tratamento com o potente coquetel de medicamentos gerou um novo problema. A convivência prolongada com o vírus leva o organismo a envelhecer precocemente. Doenças típicas da senescência, como infarto, derrame, demências, osteoporose, câncer, entre outras, são mais comuns nos soropositivos e, além disso, costumam se manifestar mais cedo.
Minha conversa com o casal passou muito longe desses problemas, que eram o foco principal da reportagem. Percebi que eles nem desconfiavam disso, que suas preocupações eram mais imediatas: o início do tratamento dela, o horário dos remédios dele, a manutenção do segredo no círculo familiar e social, ficar bem física e emocionalmente, na medida do possível.
Teresa e Joaquim não entraram explicitamente na reportagem, mas não me saíram da cabeça ao longo dos dias que levei para escrevê-la. Sentia-me a portadora de muitas más notícias e imaginava qual seria a reação deles e de tantas outras pessoas na mesma condição quando lessem o que eu estava escrevendo. Fiquei angustiada. Pela primeira vez eu escrevia uma matéria sobre uma doença desejando fortemente que os portadores dessa doença nunca a lessem.
Mas espero que a reportagem sirva para reforçar o alerta incansável dos médicos, para o qual a sociedade em geral parece já um pouco dessensibilizada, infelizmente. O sucesso do tratamento tem feito muita gente baixar a guarda, expondo-se ao risco da infecção, como se bastasse um punhado de comprimidos fornecidos pelo governo para remediar o problema e ter uma vida normal. Grande engano.
A Aids pode não ser mais a sentença de morte que era nos anos 1980, mas é importante ressaltar que o tratamento resolve apenas uma parte dos problemas: as infecções oportunistas que se instalam no organismo debilitado pelo vírus. Isso não permite supor, entretanto, que a doença esteja controlada. Os especialistas ainda não sabem muito bem como prevenir e contornar o envelhecimento precoce causado pela persistência do HIV em regiões do corpo que os medicamentos não alcançam, por exemplo, o cérebro. As pesquisas nessa área estão só começo.
Leia a reportagem aqui, em pdf. Desde já agradeço a todos que puderem ajudar a divulgá-la.
Aids 3.0
Matéria publicada na Unesp Ciência de outubro de 2011.
Depois de três décadas de luta contra o HIV,o tratamento garantiu vida longa aos pacientes; mas agora a medicina se depara com outro problema: envelhecer com a doença é envelhecer mais cedo
Nos 30 anos que se passaram desde que os primeiros casos de Aids foram confirmados nos Estados Unidos, o papel da medicina em relação à doença evoluiu de “expectadora da catástrofe” a controladora muito eficiente da replicação viral, permitindo aos soropositivos viverem livres das infecções oportunistas e por muito mais tempo. Mas se a conquista da longevidade foi umas das principais vitórias na luta contra a Aids, hoje a ciência se vê mais uma vez diante de um desafio. Justamente por causa dessa convivência prolongada com o vírus da imunodeficiência humana, o HIV, a doença está revelando uma nova face.
O avanço promovido, a partir de 1996, pelo uso combinado de drogas potentes, o chamado coquetel, possibilitou que muitos já convivam com o HIV há mais de dez anos, passando a sensação de que os pacientes regularmente medicados teriam toda a vida pela frente como qualquer pessoa. Tal percepção mudou, porém – pelo menos entre os especialistas.
Um número crescente de estudos mostra que “a terapia anti-HIV previne as complicações associadas à Aids e prolonga a vida, mas não restabelece completamente a saúde”, como frisaram os editores da revista Annals of Internal Medicine em outubro do ano passado, numa edição dedicada ao tema do envelhecimento precoce ou acelerado – o mais novo verbete no léxico de pesquisas em torno da Aids.
O acompanhamento dessas pessoas ao longo dos últimos anos vem demonstrando que envelhecer na companhia do HIV é, infelizmente, envelhecer mais rápido. Uma série de problemas típicos da senescência, como infarto, derrame, osteoporose, demência e câncer, não são apenas mais comuns numa parcela significativa desta população, como tendem a aparecer mais cedo. Também é fato que, embora alguns destes males sejam causados pelo uso continuado da medicação, vários outros estão relacionados à persistência prolongada do vírus no organismo.
“Com o tratamento, nós resolvemos o pior dos problemas, que eram as infecções oportunistas”, diz o infectologista Alexandre Naime Barbosa, pesquisador da Faculdade de Medicina da Unesp em Botucatu. O paciente que faz o uso correto da medicação, explica ele, consegue manter a carga viral no sangue em níveis baixos ou até mesmo indetectáveis por muitos anos. Assim, os linfócitos CD4, que são o alvo do HIV, são poupados, e as defesas imunológicas do organismo seguem funcionando.
“O problema é que existem outros sítios de replicação do vírus, onde a maioria dos medicamentos não consegue chegar”, diz o médico. São eles o sistema linfático e o sistema nervoso central.
Floresta de fósseis
Matéria publicada na Unesp Ciência de setembro de 2011.
No meio do Cerrado nordestino, restos petrificados de plantas que viveram há mais de 250 milhões de anos contam a história da região em uma época em que os continentes estavam unidos e o mar chegava até ali
Era um domingo como outro qualquer em Nova Iorque. Por volta das 10 h da manhã o sol já impunha respeito e várias famílias curtiam a praia. Crianças brincavam na areia ou na água, e adultos batiam papo e bebericavam em torno de mesas de plástico sob a sombra das árvores. Não parava de chegar gente. Trilha sonora: o típico brega nordestino.
À beira do lago da Hidrelétrica de Boa Esperança, no rio Parnaíba, esta pequena cidade do interior do Maranhão fica a mais de 500 km de distância de São Luís, na fronteira com o Piauí. É uma espécie de oásis no Cerrado, que oferece diversão e umidade aos nova-iorquenses e moradores de municípios vizinhos que passam por ali nos finais de semana.
No penúltimo domingo de julho passado, porém, estes descontraídos cidadãos interromperam por um instante o que faziam para observar a chegada de um grupo de oito forasteiros que não pareciam ter vindo para pegar praia. Não mesmo. Eles estavam atrás de fósseis. Procuravam os restos de uma floresta fossilizada.
O grupo “alienígena” era formado por cinco homens e três mulheres, todos usando chapéu, blusa de manga comprida, calça e botina. A maioria tinha pele muito clara. O mais alto carregava na mão um martelo e o mais magro, de cabelos longos e sotaque estrangeiro, andava na frente perguntando sobre um tal barqueiro, que sabia onde ficavam “as pedras que parecem madeira”.
Mas o rapaz não veio e o jeito foi esperar por uma embarcação maior, que só poderia sair à tarde. Um mau presságio rondava os pensamentos daquele que segurava o martelo. “O nível do rio está muito alto. Acho que vai estar tudo debaixo d’água”, comentou.
Enquanto esperavam, os forasteiros se aboletaram no quiosque de seu Alzair, um pescador cearense, nova-iorquense de coração e que – como se descobriria depois – gosta muito de ler. Ao saber das intenções deles, seu Alzair aproveitou para tirar uma dúvida antiga que deixou o grupo embasbacado.
Nanotecnologia em tamanho real
Matéria publicada na Unesp Ciência de agosto de 2011.
Alardeada em suas origens como uma nova revolução industrial, a nanotecnologia passa por momento de revisão de seu potencial e de redução das expectativas, ao mesmo tempo em que cresce a preocupação com seus impactos à saúde e ao ambiente
Nos últimos 20 anos, a nanotecnologia conquistou um lugar de vanguarda na ciência – esse posto avançado de onde se vislumbram as fronteiras do conhecimento e que naturalmente irradia tanto fascínio quanto expectativa. Ao conseguir ver como a matéria se organiza em escala molecular e atômica, deparamo-nos com paisagens inusitadas, como as que ilustram esta reportagem. Mais importante que ver, porém, é manipular o novo mundo que se mede em nanômetros (as bilionésimas partes do metro) para tirar proveito dele.
Esses avanços costumam ser ostensivamente descritos como o germe de uma nova revolução industrial, com potencial de trazer benefícios ilimitados para a sociedade, dos tecidos que não mancham à cura do câncer por drogas inteligentes, passando por transformações radicais no campo eletrônico e energético. Tal discurso, entretanto, aparenta sinais de exaustão. Se de um lado várias aplicações nanotecnológicas já podem ser compradas, de outro, suas vantagens ainda estão muito aquém das que foram alardeadas, o que vem abrindo uma lacuna na qual se acumulam questionamentos.
Dentro da comunidade científica surgem perguntas como: As inovações nanotecnológicas (veja infográfico no pdf) são mesmo revolucionárias ou somente o aperfeiçoamento de tecnologias já existentes? Quantas aplicações desse tipo estão de fato no mercado? Os nanomateriais não poderiam trazer riscos à saúde humana? E ao ambiente? Se houver riscos, a sociedade não deveria ser informada? O discurso eufórico sobre o potencial dessa área não estaria impregnado de elementos típicos das narrativas de ficção científica?
Todas essas dúvidas encaminham a nanotecnologia para a berlinda, onde, sem desqualificar os méritos científicos que lhe correspondem, seus futuros passos tendem a ser reavaliados daqui para a frente. E as questões mais prioritárias estão relacionadas à sustentabilidade. A problemática foi resumida no editorial da revista Nature Nanotechnology de junho deste ano, em edição dedicada a uma subdivisão emergente desta ciência – a nanotoxicologia:
“Peixes, vermes, roedores, algas, bactérias e células. Nanotubos de carbono, óxidos metálicos e pontos quânticos. Escolha um modelo animal da primeira lista e um nanomaterial da segunda, e haverá chances de você encontrar dois ou mais estudos toxicológicos com resultados ligeiramente diferentes sobre o impacto dos últimos sobre os primeiros. Vinte anos de pesquisas confirmam que os nanomateriais podem apresentar toxicidade incomum e inesperada, mas o quanto nós aprendemos sobre as interações desses materiais com humanos, animais e o ambiente?”. A conclusão dos editores é: a nanotoxicologia mal engatinha.