Do Papai Noel à Metástase

Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. Essa semana é Tema Livre. Hoje quem escreve é Bruno Ricardo Barreto Pires, Biólogo e Pós-doutorando do Instituto Nacional de Câncer.

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Eu nasci e fui criado no interior de Goiás, em uma cidade de 25.000 habitantes chamada Posse. Tive uma infância sem shoppings ou cinemas, mas com muito contato com a natureza e com os meus 20 primos. No natal de 1994, nos reunimos na casa dos meus avós maternos para a ceia. Na época, eu tinha 5 anos e carregava uma enorme vontade de falar tudo o que pensava. O clímax daquela noite foi a aparição do Papai Noel durante o jantar. Eu estava empolgadíssimo com aquela presença, assim como os meus primos que tinham mais ou menos a mesma idade, até que percebi que a minha avó não estava mais no recinto. Comecei a observar bem aquele Papai Noel, sua barba branca, seu cabelo branco, gorro e roupas vermelhas… então, gritei “O Papai Noel é a vovó!”

Todos os adultos se espantaram. Meus pais desconversaram e depois de alguns minutos, o bom velhinho partiu. Eu insistia que era, mas parecia que eu havia falado um palavrão, pois todos me olhavam com um certo desprezo. No dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi questionar a minha mãe. Ela confirmou, “ele não é real”. Apesar de ela ter me explicado todo o motivo pelo qual ele foi criado, eu senti aquilo como uma facada nas minhas vísceras. Embora aquela verdade tenha sido difícil de administrar no auge dos meus 5 anos, eu quis mais: “então, o coelhinho da Páscoa também não existe?” Também não, respondeu a minha mãe com um olhar de velório. Naquele dia, eu dormi muito mal, mas decidi contar a verdade para as outras pessoas (que tinham a mesma idade). No final de semana subsequente, estávamos todos os primos reunidos na casa dos meus avós e aproveitei a ocasião para libertá-los daquela mentira. No entanto, para a minha maior decepção, eles disseram que era eu quem estava mentido e um deles completou: “meus pais falaram que existe e eles não mentem”. Eu fiquei arrasado. Percebi que meus pares preferiam viver em uma ilusão do que aceitar a “verdade nua e crua”.

Aquela história envolvendo o papai noel me deu uma enorme coragem para questionar qualquer coisa. Além disso, ela quebrou o paradigma de que eu deveria acreditar em tudo que “os mais experientes” afirmam. Só que eu me empolguei. Aos 6 anos, eu estava desenvolvendo uma noção sobre parentesco/hereditariedade, e cheguei a conclusão de que os meus pais não pareciam fisionomicamente comigo. Sem saber o que a genética mendeliana conta sobre os alelos raros, acusei os meus pais de terem me adotado. No começo, os meus pais riram, mas eu insisti tanto com o assunto que no mesmo dia, a minha mãe me levou ao hospital em que nasci para que todos dessem o depoimento que testemunhava a favor dela. “Eles estão todos comprados”, repeti a frase que ouvia ocasionalmente no Programa Livre – um clássico da década de 90.

Nesse dia, eu tinha passado da conta. Mesmo para uma criança de 6 anos, era perceptível a tristeza de uma mãe que se sentia rejeitada pelo próprio filho. “Você é sangue do meu sangue, meu filho. Por que está fazendo isso comigo?” Esse diálogo nunca mas saiu da minha cabeça…

Alguns anos depois, a minha avó materna falece com câncer de mama. Lembro de uma conversa entre os meus pais que contava, segundo o oncologista do Hospital de Base, que o câncer havia se espalhado e que não havia tratamento para isso. No dia após o velório, eu contei no ouvido da minha mãe, que eu iria estudar porque “aquilo” matou a minha avó. Naquele momento, eu descobri como utilizar a minha vontade de investigar/pesquisar sem machucar as pessoas. Muito pelo contrário, ajudando-as. Então, naquele dia eu aceitei a missão de ser um cientista.

Desde então, eu persigo a metástase do câncer de mama como aquele que busca vingança, mas ao mesmo tempo, como aquele que quer dar esperança a todas as famílias que sofrem com esta doença.

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Bruno Ricardo Barreto Pires, Biólogo e Pós-doutorando do Instituto Nacional de Câncer. Escreve no blog “Novais da Silveira” e é entusiasta da divulgação científica nas redes sociais.

Perguntas que não acabam

Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Fazer Ciência, minha vida de cientista. Hoje quem escreve é Gracielle Higino, doutoranda em Ecologia e Evolução na UFG.

Se você quiser participar saiba mais em: http://bit.ly/SBBr10anos

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Imagine como se sente uma criança que adora ciência ao ver na TV como os cientistas conseguiram fazer crescer algo com o formato de uma orelha humana nas costas de um rato. Talvez você tenha sido uma destas crianças, certo? Pois é, este foi o momento exato em que eu decidi que seria cientista. O engraçado é que eu não me interesso tanto assim por orelhas humanas, ou mesmo por ratos; eu sempre adorei Ecologia (lembro nitidamente da aula na primeira série em que aprendi sobre o ciclo da água e entendi por que chove). Só que esse episódio do rato não tinha a ver com minhas perguntas preferidas: foi ali que eu vi como a ciência pode alcançar feitos incríveis, e eu queria que todo mundo percebesse isso. Talvez isso as fizesse acreditar que qualquer pessoa pode conquistar coisas incríveis, com o método certo.

Foi assim que me tornei ecóloga teórica com uma grande paixão por divulgação científica. Hoje estou fazendo doutorado em Ecologia e Evolução e sempre me metendo em projetos paralelos de comunicação científica e ciência aberta. Eu me dedico bastante a estes projetos porque eu acredito que a ciência pode empoderar todos nós, e estou sempre tentando convencer meus colegas a embarcarem comigo nessas aventuras. Então eu vou contar aqui como é essa minha vida de cientista um pouco menos tradicional. Vamos lá?

Bom, pra começar, desde 2014 sou pós-graduanda (com um intervalo aí no meio de pesquisa independente). Isso quer dizer que eu faço parte de uma categoria de trabalhadores que quase ninguém entende muito bem como funciona. Nossos direitos, deveres e verbas passeiam entre o Ministério da Educação e o da Ciência e Tecnologia. A gente assiste a aulas, apresenta trabalhos, faz matrícula, paga meia entrada no cinema. A gente também dá aulas, tem contrato de dedicação exclusiva, produz a maior parte do conhecimento e desenvolvimento tecnológico do país. Porém, não temos férias, aposentadoria, adicional de insalubridade, e só recentemente conseguimos licença maternidade.

Isso também significa que eu estou naquela janela da vida em que eu tenho que explorar todo o meu potencial, tentar botar pra funcionar todos os meus planos A, B e C pra ter como me sustentar depois do doutorado sem depender de concurso ou bolsas de pós-doc (cada vez mais raras). E também é nesta fase que eu tenho que desenvolver a cientista que eu quero ser nos próximos anos, e isso, definitivamente, não inclui somente a minha tese.

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Por isso a minha rotina inclui, por exemplo, um clube de revisão de preprints, porque quero exercitar a capacidade de analisar criticamente os artigos, sabendo identificar o que eles têm de bom e no que podem melhorar. Sem contar o benefício ENORME pra ciência que é a revisão de preprints, né, mores? Os preprints são artigos científicos completos que seus autores consideram prontos, mas que precisam de discussão e maturação antes da submissão à publicação em uma revista. Às vezes a revisão pela qual esse artigo passa enquanto é um preprint já adianta bastante o processo de publicação, fazendo toda a pesquisa andar mais rápido.

Minha rotina também tem uma parte significativa dedicada à divulgação científica de alguma forma. Ano passado, toda sexta-feira à tarde eu escrevia algum texto, lia artigos sobre o assunto, atualizava a página do LEQ ou do TheMetaLand (meus labs ❤) no Facebook, ou ajudava algum colega com suas tarefas relacionadas à DC. Este ano eu mudei esse dia da DC para as quartas, que eram os dias em que me reunia com o pessoal do Mozilla Open Leaders e trabalho no meu projeto aberto, o IGNITE. O Mozilla Open Leaders é um programa de treinamento de líderes de projetos abertos, aqueles em que tudo é transparente e a liderança é descentralizada, do jeitinho que eu gostaria que funcionasse o meu futuro laboratório. O MOL me ajudou a pensar de um jeito diferente na divulgação científica, na minha carreira e na minha pesquisa. Também foi durante o MOL que eu aprendi ferramentas de gerenciamento de projetos que eu estou aplicando na minha tese com um plano de auto-mentoria.

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No meio disso tudo eu estudo como as espécies se organizam no espaço, do ponto de vista continental, e por quê. Quero entender o que tem nos locais em que as espécies estão que fazem elas estarem lá, ou o que tem nos locais onde elas não estão que fazem elas não estarem lá. Outro dia eu encontrei um texto (que infelizmente eu não sei quem escreveu) que descreve exatamente o que eu faço no meu dia-a-dia:

“[…] eu faço mundos que não são reais em computadores. Nestes mundos não-reais, eu faço muitos, muitos animais não-reais e faço eles brigarem muitas, e muitas, e muitas vezes. Então eu vejo quais animais brigaram mais. É muito legal.”

Esta é parte da minha pesquisa. Só que nos meus mundos não-reais, estas brigas geram agrupamentos de espécies ou buracos sem espécies. Uma espécie empurra a outra mais pro cantinho, ou uma faz a outra sumir, todo esse tipo de coisa.

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Quando eu era criança, lá naquela época em que eu vi o ratinho com a orelha nas costas, eu queria crescer e ter um emprego em que eu pudesse responder perguntas, e sabia que este seria um trabalho infinito, porque as respostas de vez em quando acabam, mas as perguntas não. E esta é a minha vida de cientista hoje: respondendo perguntas que nunca acabam.

gracielleGracielle Higino, doutoranda em Ecologia e Evolução na UFG, escreve no blog Hipótese Nula e toca o projeto IGNITE de treinamento em divulgação científica.