Sobre Benjamin, Carlitos e brincadeiras

Carlitos é funcionário de uma loja de penhores. Em determinado momento, chega um cliente, levando um relógio para ser avaliado. Carlitos é o avaliador. Inicialmente, ele pega um estetoscópio e examina o objeto, como se esse fosse um paciente e o personagem, o doutor. A seguir, com uma broca, abre o relógio, como faria um carpinteiro. Tal como faria com uma lata de atum, ele abre o relógio, e o cheira para conferir se não está estragado. Retira o bocal de um telefone, objeto que é usado como os óculos de um joalheiro, e, como se fosse esse profissional, Carlitos examina o objeto. Depois, joga óleo sobre o conteúdo do relógio, como faria com algum motor de carro, e extrai as suas partes com um alicate, como um dentista extraindo os dentes de alguém. Tal como um alfaiate ou um decorador, que mede e corta pedaços de pano, Carlitos estica as bobinas do interior do relógio. Dispostas no balcão, as peças extraídas ainda começam a se mexer sozinhas, como se sob o efeito de algum feitiço. Ao fim, o avaliador deposita o relógio e o seu “conteúdo” dentro do chapéu do cliente, que o recebe de volta um tanto quanto surpreso, após ter a proposta negada por Carlitos.

Essa é a descrição de uma cena do filme Casa de Penhores (The Pawnshop), de Charles Chaplin, lançado em 1916. Chaplin, ator, diretor, produtor, montador, compositor… é um dos principais nomes da história do cinema, e a imagem do seu Carlitos é, ainda hoje, uma das mais associadas a esse meio. Ao longo de Casa de Penhores, mas principalmente dessa cena da avaliação do relógio, vemos um elemento fundamental do cinema de Chaplin, responsável por uma parcela substancial de seu humor: a relação do personagem Carlitos com os objetos. Essa relação envolve uma espécie de transformação dos objetos – eles ganham outros usos e outras funções, diferentes daquelas do cotidiano. 

 

Carlitos examina um relógio…

 

Essa é uma relação bastante documentada e comentada ao longo da história. Talvez o primeiro autor a abordar teoricamente o assunto tenha sido o francês André Bazin (1918-1958), um dos grandes teóricos e críticos do cinema e um dos mentores intelectuais da Nouvelle Vague, movimento do cinema francês. André Bazin abordou esse assunto no seu texto “Introdução a uma simbologia de Carlitos”. [1]

 

O teórico e crítico André Bazin tratou da relação do famoso personagem Carlitos com os objetos ao seu redor.

 

Se alguns autores, como Bazin, trataram dessa questão diretamente, outras reflexões, não necessariamente vinculadas a Carlitos, podem ser trazidas para a discussão, auxiliando a observar de novas maneiras essa relação entre Carlitos e os objetos. Foi justamente isso que busquei fazer no meu artigo “O caráter lúdico da relação entre Carlitos e os objetos” [2]. 

Nesse artigo, abordei essa questão em diálogo principalmente com algumas discussões de Walter Benjamin (1892-1940). Benjamin é um importante intelectual alemão, que discutiu questões relacionadas à literatura, à história, à filosofia e às artes. No caso do artigo, busquei algumas reflexões específicas do autor, ideias um pouco diferentes, mais brincalhonas. Tais reflexões, relacionadas às crianças, às brincadeiras e aos brinquedos, aparecem em alguns de seus textos que podemos até considerar menos conhecidos pelo “grande (pequeno) público” acadêmico. Nesses textos, o autor comenta, justamente, o caráter imaginativo, transformador, das brincadeiras infantis. Com elas, as crianças criam novos objetos, criam um novo mundo e transformam o seu próprio mundo, o mundo “real”.

Chaplin, de fato, é um artista muito importante para Walter Benjamin: ele é talvez o artista que recebe mais destaque no seu célebre ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [3], por exemplo. No entanto, nesses textos sobre as crianças e os brinquedos, Chaplin não aparece. Mesmo assim, as contribuições de Benjamin, a meu ver, parecem dizer muito respeito à atividade de Carlitos nos filmes. 

 

Walter Benjamin, à direita, jogando xadrez (brincando?) com outro importante intelectual alemão, Bertolt Brecht (1898-1956).

 

Benjamin, porém, não foi o primeiro a comentar esse caráter transformador das brincadeiras das crianças. Sigmund Freud, o conhecido psicanalista austríaco, por exemplo, já havia abordado o assunto, e de maneira razoavelmente semelhante à de Benjamin:

Não deveríamos procurar os primeiros indícios da atividade poética já nas crianças? A atividade que mais agrada e a mais intensa das crianças é o brincar. Talvez devêssemos dizer: toda criança brincando se comporta como um poeta, na medida em que ela cria seu próprio mundo, melhor dizendo, transpõe as coisas do seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada. Seria então injusto pensar que a criança não leva a sério esse mundo, ao contrário, ela leva muito a sério suas brincadeiras, mobilizando para isso grande quantidade de afeto. O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas a realidade [Wirklichkeit]. A criança diferencia enfaticamente seu mundo de brincadeira da realidade, apesar de toda a distribuição de afeto, e empresta, com prazer, seus objetos imaginários e relacionamentos às coisas concretas e visíveis do mundo real. Não é outra coisa do que este empréstimo que ainda diferencia o “brincar” da criança do “fantasiar”. [4]

Como vemos, a atividade do brincar envolve uma transformação. No entanto, curiosamente, essa transformação envolveria uma grande dose de seriedade. Benjamin, por outro lado, aborda essa questão não em um, mas em alguns textos. O autor comenta o modo curioso com o qual as crianças se relacionariam com os objetos. A relação das crianças com alguns resíduos, com “restos”, é a da transformação, da criação:

A Terra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atenção infantil. E objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um pequeno mundo inserido no grande. [5]

Haveria uma comunicação bem específica entre os objetos e as crianças. Através desse contato, as crianças criariam um mundo próprio, que se inseriria no universo mais amplo compartilhado por crianças e adultos. Quando nos aproximamos do tema dos brinquedos, essa relação mágica da criança com os objetos torna-se mais clara. O autor comenta a relação complexa das crianças com seus brinquedos, marcada, ao mesmo tempo, pelo respeito e pela inovação:

Se […] fizermos uma reflexão sobre a criança que brinca, poderemos falar então de uma relação antinômica. De um lado, o fato apresenta-se da seguinte forma: nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais casto em relação aos materiais do que crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras. [6]

Na visão do autor, qualquer objeto pode se tornar brinquedo para as crianças. Além disso, a relação das crianças com os brinquedos é ativa: é a criança que dá vida e de algum modo transforma o brinquedo. Podemos considerar que a criança, com a sua imaginação, praticamente cria o brinquedo, que também não será estagnado na criação infantil: pelo contrário, esse brinquedo sempre ficará disponível a novos olhares e a novas criações. Essa abertura às ressignificações se relaciona com uma ideia de liberdade presente no brincar das crianças. Essa liberdade pode inclusive provocar efeitos nos adultos, como o de um encantamento:

Conhecemos aquela cena da família reunida sob a árvore de Natal, o pai inteiramente absorto com o trenzinho de brinquedo que ele acabou de dar ao filho, enquanto este chora ao seu lado. Não se trata de uma regressão maciça à vida infantil quando o adulto se vê tomado por um tal ímpeto de brincar. Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio; mas o adulto, que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua reprodução miniaturizada. [7]

Por fim, gostaria de destacar um último aspecto apontado por Benjamin: a repetição, “grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos” [8]. No entanto, não se trata aqui de uma repetição do idêntico, do mesmo, na atividade da criança; trata-se, na verdade, de uma repetição criadora, em que a experiência é sempre nova, não perde em originalidade:

Para ela [a criança], porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorear-se de terríveis experiências primordiais mediantes o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e da maneira mais intensa, os triunfos e as vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início. […] A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito. [9]

 

A criança à direita é Walter Benjamin, em 1896. Ele está junto de seus pais e de seu irmão Georg.

 

Benjamin traz, portanto, algumas leituras bastante produtivas sobre as crianças, sobre as suas brincadeiras, sobre os seus brinquedos. Essa relação envolve também, assim como a relação de Chaplin com os objetos, uma intensa transformação: muitas vezes, objetos quaisquer viram brinquedos, e a brincadeira parece se relacionar de forma muito efetiva com essa quase “mudança de objetos”. 

Antes de finalizar este texto, trago dois exemplos de uma obra de Chaplin; exemplos famosos, talvez um pouco gastos, mas quem sabe até por isso mais claros. Trata-se de duas cenas do filme Em Busca do Ouro (The Gold Rush), lançado originalmente em 1925. 

Em dado momento, Carlitos, em uma situação de grande penúria e fome, cozinha uma das botas do par que estava usando e a serve em uma refeição. Nessa refeição exótica, as próprias partes da bota se transformam: a base do calçado é como uma carne; as pregas são como espinhos; os cadarços são como espaguetes. Essa cena, inclusive, é comentada por um autor mais ligado à literatura, o escritor brasileiro Carlos Heitor Cony. Ele relaciona a transformação dos objetos operada por Chaplin com aquela realizada por um grande personagem literário: Dom Quixote. Cony afirma que, apesar de, em ambos os heróis, haver uma espécie de transformação, Carlitos mantém sempre um conhecimento da natureza “real” dos objetos, ao contrário de Quixote. O autor comenta a cena: “seus olhos nunca duvidam do que realmente está vendo: vê uma bota […], sabe que é uma bota. […] aceita a realidade e a bota: palita os dentes, satisfeito, depois desaperta o colete para fazer a digestão, não a digestão do bife, mas a digestão da bota” [10]. Ao contrário de Quixote, Carlitos não foge da realidade, não a nega, não cria ilusões: “ele enfrenta o mundo real sem se evadir de sua aspereza, sem transferir culpas. Não se justifica por ter comido a bota”.

 

Carlitos se alimenta da bota.

 

Essa postura complexa de Carlitos indica uma consciência por parte do personagem de seu processo imaginativo: Carlitos sabe que está inventando. E Carlitos também possui a ciência do que faz na segunda sequência que comento, sequência um pouco menos trágica. Nela, em um momento de festa, Carlitos se utiliza de dois pãezinhos para realizar uma dança. Com dois garfos, prende os pães e começa a realizar o seu número, em que os alimentos se comportam como dois pezinhos. É interessante observar que, nessa sequência, a transformação não possui um objetivo claro, pragmático. Carlitos não quer nada com a sua dança, que possui um valor e uma expressão em si. Essa dança não quer nada além de encantar, de nos encantar.

 

Carlitos, em sua dança com os pãezinhos.

 

Por fim, gostaria de trazer uma breve citação de Benjamin. Em um texto de crítica do filme de 1928 O Circo (The Circus), de Chaplin, Benjamin traz uma frase bastante interessante, um tanto metafórica, e quase profética. Essa citação, mesmo que não tenha sido escrita com esse objetivo, pode dizer muito sobre Carlitos: “Chaplin acena com seu chapéu coco, e é como se a tampa de uma chaleira transbordante se levantasse” [11]. Benjamin já não estaria, ao menos metaforicamente, antevendo a importância da transformação dos objetos na obra de Chaplin? 

 

Chaplin levanta o seu chapéu e cumprimenta uma estátua em Luzes da Cidade (City Lights)

 

A própria indumentária do personagem, que o constitui, parece passar por processos de transformação, de mudança. O personagem, em suas brincadeiras, nos traz um turbilhão de imaginações e de ressignificações. E nós, um pouco crianças (ainda), brincamos com ele. 

 

(Essa discussão, em que enfatizei as ideias de Walter Benjamin, é apenas uma parte de meu artigo. Caso tenha se interessado, aconselho-o ludicamente e seriamente a ler a versão integral de meus questionamentos. Nela, trago algumas discussões adicionais, que não caberiam neste espaço, mas que são também bastante importantes, como a ideia do jogo e do lúdico. Além disso, desenvolvo mais a discussão sobre Chaplin, com o comentário de outras obras. Sinta-se à vontade para fazer parte dessa brincadeira!).

 

Referências:

 

[1] “Introdução a uma simbologia de Carlitos”, de André Bazin. Texto do livro Charlie Chaplin, publicado pela editora Jorge Zahar, em 2006. 

[2] “O caráter lúdico da relação entre Carlitos e os objetos”, de Diogo Rossi Ambiel Facini. Artigo publicado no volume 19 da revista Cadernos Walter Benjamin, em 2018.

[3] “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin. Texto disponível em várias edições brasileiras. No meu artigo, utilizei a publicação da editora Zouk, de 2012.

[4] “O poeta e o fantasiar”, de Sigmund Freud. O trecho citado está na página 54 do livro Arte, Literatura e os artistas,  publicado pela Autêntica Editora, em 2015.

[5] “Livros infantis velhos e esquecidos”, de Walter Benjamin. O trecho citado está nas páginas 57 e 58 da segunda edição do livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, publicado em conjunto pela editora Duas Cidades e Editora 34, em 2009.

[6] “História cultural do brinquedo”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 92 do mesmo livro mencionado na nota 5.

[7] “Velhos brinquedos: sobre a exposição de brinquedos no Märkisches Museum”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 85 do mesmo livro mencionado na nota 5.

[8] “Brinquedos e jogos: observações marginais sobre uma obra monumental”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 101 do mesmo livro mencionado na nota 5.

[9] O trecho citado está nas páginas 101 e 102 do mesmo texto mencionado na nota 8.

[10] “Chaplin”, de Carlos Heitor Cony. Os trechos citados estão na página 29 do livro Chaplin e outros ensaios, publicado pela editora Top Books, em 2012. 

[11] “Chaplin”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 170 do livro Chaplin, retrospectiva integral: catálogo. Obra organizada por Rafael Ciccarini e Mateus Araújo, publicada pela Fundação Clóvis Salgado, em 2012.

Leitura proibida

No episódio “Livros licenciosos = leitura proibida”, do podcast Oxigênio, a Márcia de Azevedo Abreu apresentou o universo dos livros licenciosos, contando também sobre a censura (e a circulação clandestina) deles aqui no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. Esse é um dos temas de pesquisa da Márcia, que é professora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Ela desenvolve pesquisas nas áreas de História do Livro e da Leitura e História da Literatura.

“Ter um livro licencioso em casa, ou vender um livro licencioso, naquela época, era tão perigoso como hoje seria vender droga pesada.” (Márcia Abreu)

 

Márcia Abreu. Foto do currículo Lattes.

 

Livro licencioquê?

 

Alguns sinônimos da palavra “licencioso” são “devasso, libertino, desregrado, impudico, libidinoso, lascivo e indecente”. Isso já dá uma ideia do teor desses livros, mas, para ficar mais preciso: o romance licencioso é um tipo de narrativa que mistura um enredo com cenas de sexo e discussões filosóficas sobre a religião ou sobre a natureza humana, como questões do funcionamento dos corpos, das diferenças entre as culturas ou das relações de poder. Um exemplo clássico de livro licencioso é o Teresa filósofa, um romance, provavelmente escrito pelo francês Jean-Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens, em 1748, mas que está disponível no Brasil em várias edições atuais.

 

Ilustração de François-Rolland Elluin (1745-1810) para o livro Teresa filósofa. Domínio público.

 

A censura de livros (licenciosos)

 

Se até hoje em dia a censura de livros gera discussões, imagina o que os letrados do século XVIII não pensavam sobre livros com cenas de sexo… Só que o problema dos romances licenciosos é até anterior a isso, ele já começa pelo fato de eles serem simplesmente romances. Hoje, a gente acha legal ler romance, mas, naquela época, ele era visto como um gênero literário (um tipo de texto) menor. E existiam três problemas principais relacionados aos romances:

  1. perder tempo: naquela época se acreditava que o nosso tempo na Terra tinha que ser usado para fazer coisas que nos levassem à salvação eterna. A Márcia Abreu até contou de um caso engraçado, em que uma pessoa dizia: “Se Jesus Cristo voltasse à Terra e batesse na porta de uma pessoa hoje em dia, ela não ia atender, porque ela estaria entretida lendo um romance”.
  2. corromper ou estragar o gosto: uma boa leitura, naquele tempo, era verificar quão bem um escritor colocou em prática os preceitos da retórica e da poética. O romance não está previsto em nenhuma retórica ou poética; então, ele era uma complicação. E, por isso, os letrados achavam que ele estragava o gosto das pessoas.  
  3. prejudicar a moral: muita gente – não só os letrados, como também os pais de família e os religiosos, por exemplo – achava que o romance mostrava a vida de pessoas que faziam coisas erradas. Mostrar essas coisas erradas já seria um problema, mas, pra eles, o romance, ainda por cima, mostrava isso de um jeito envolvente, fazendo com que os leitores se identificassem com essas personagens “erradas”, gostassem delas e até entendessem e desculpassem os erros que elas cometeram.

 

A Leitora, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Domínio público.

 

E se o romance tivesse cenas de sexo e falasse mal da religião e da monarquia, então, era uma combinação incendiária! Os letrados ficavam ainda mais alvoroçados. No caso dos romances licenciosos, uma quarta preocupação é a de que as pessoas passassem da leitura para ação. Os letrados achavam que os comportamentos e os corpos podiam se modificar com a leitura. Dá para imaginar o que acontecia com o corpo durante a leitura de um livro licencioso… O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, inclusive, brincava que um romance licencioso era um livro que se lia com uma mão só.

Nesse contexto, então, a censura tinha um papel muito importante na imprensa. Todos os livros, sem exceção, tinham que receber uma autorização de publicação. E os censores faziam a leitura dos livros, verificando se não tinha algum problema com a igreja, com a monarquia ou com a moral vigente. Na verdade, eles acabavam fazendo muito mais que isso. A atuação desses censores, que eram pessoas muito cultas, influenciava a qualidade literária das obras; eles corrigiam, por exemplo, problemas de verossimilhança ou de métrica. Além disso, os longos pareceres que eles faziam sobre os livros nos ajudam a entender a recepção dos textos em uma época em que não existia a crítica literária da forma como conhecemos hoje. Só que esses pareceres eram dados para todos os livros enviados para a censura analisar. E, no caso dos romances licenciosos, os autores nem ousavam pedir autorização para publicar. Então, a circulação desses livros era clandestina. E os documentos da censura que a gente tem hoje sobre esse tipo de livro são de quando alguma coisa dava errado, quando acontecia alguma apreensão ou algo do tipo.

Era superperigoso ter ou vender um livro licencioso naquela época. Se uma pessoa fosse pega com um livro desses, ela podia ser presa. Se fosse um livreiro, a loja dele podia ser fechada, e os bens dele confiscados. Apesar dessas complicações todas, pelos registros de apreensão, dá pra saber que os romances licenciosos circulavam bastante aqui no Brasil nos séculos XVIII e XIX. 

No podcast “Livros licenciosos = leitura proibida”, a Márcia falou sobre algumas formas clandestinas que o pessoal encontrava para fazer esses livros circularem. Ela também falou sobre um caso curioso e até meio misterioso. Um dos primeiros romances publicados no Brasil – pela tipografia oficial do rei – foi justamente um romance licencioso: História de dois amantes ou o templo de Jatab. A Márcia contou a história desse livro, e é difícil de entender como que ele passou na censura e foi publicado oficialmente. Se você quiser ouvir essa história, entra lá no podcast.

A série

 

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast Oxigênio que aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os livros licenciosos, foram abordados os seguintes temas: ensaios, silenciamento de personagens femininas da literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas”, vamos ter mais textos, apresentando também os temas desses outros episódios. 

Ah, todos os episódios da série são transcritos integralmente, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo dos programas.

Ler, por Cesare Pavese (tradução Cláudia Alves)

O artigo “Ler” (no original, “Leggere”) foi escrito por Cesare Pavese e publicado pela primeira vez em 20 junho de 1945, no L’Unità, jornal italiano  comunista fundado por Antonio Gramsci, em 1924. Posteriormente, foi recolhido na coletânea póstuma A literatura americana e outros ensaios, de 1951.

Vale lembrar, em brevíssima contextualização, que após o fim da segunda guerra mundial, assim como dos anos vividos sob o regime fascista, a reconstrução da Itália, em todos os sentidos, passará a ser um tema recorrente entre intelectuais e escritores . A reflexão de Pavese localiza-se, portanto, nesse momento em que as relações entre literatura e sociedade se encontram bastante afetadas pela perspectiva de um país que deverá encontrar maneiras de se reerguer culturalmente (e ideologicamente).

Trecho de manuscrito de Pavese (fonte: https://fondazionecesarepavese.it/)

Ler

É verdade que não devemos nos cansar de conclamar os escritores à clareza, à simplicidade, à solicitude para com as massas que não escrevem, mas às vezes se instaura a dúvida de que nem todos saibam ler. Ler é tão fácil, dizem aqueles cujo hábito de ler acabou com qualquer respeito pela palavra escrita. Mas quem, pelo contrário, trata de homens ou de coisas mais do que de livros, e sai pela manhã e volta à noite, endurecido, quando por acaso ele se recolhe a uma página, dá-se conta de ter sob os olhos algo difícil e bizarro, esmorecido e ao mesmo tempo forte, que o agride e o encoraja. Seria inútil dizer que este último está mais perto da verdadeira leitura do que o outro.

Acontece com os livros assim como com as pessoas. São levados a sério. Mas justamente por isso devemos nos precaver de torná-los ídolos, isto é, instrumentos de nossa preguiça. O homem que não vive entre livros, e que deve fazer um esforço para abri-los, tem um capital de humildade, de força inconsciente – a única que vale – que lhe permite se aproximar das palavras com o respeito e a ansiedade com que se aproxima de uma pessoa querida. E isso vale muito mais do que a “cultura”; isso é, na verdade, a verdadeira cultura. Necessidade de compreender os outros, caridade para com os outros, que é afinal o único modo de compreender e amar a nós mesmos: a cultura começa aqui. Os livros não são os homens, são meios para alcançá-los; quem os ama e não ama os homens é um presunçoso ou um condenado.

Existe um obstáculo ao ler – e é sempre o mesmo, em todos os campos da vida –, a excessiva segurança de si, a falta de humildade, a recusa a acolher o outro, o diferente. Sempre nos fere a inaudita descoberta de que alguém viu não mais longe do que nós, mas diferentemente de nós. Somos feitos de hábitos mesquinhos. Amamos nos maravilhar, como crianças, mas não tanto assim. Quando o estupor nos impele a sair de nós mesmos, a perder o equilíbrio para reencontrar talvez um outro mais destemido, então enrugamos a boca, batemos o pé, voltamos realmente a ser criança. Mas das crianças nos falta a virgindade, que é a inocência. Nós temos ideias, temos gostos, já lemos livros: possuímos alguma coisa e, como todo possuidor, estremecemos por esta alguma coisa.

Todos nós, infelizmente, já lemos. E como acontece frequentemente de os pequenos burgueses se importarem mais com o falso decoro e os preconceitos de classe do que os ágeis aventureiros do grande mundo, assim o ignorante que leu alguma coisa se prende cegamente ao gosto, à banalidade, ao preconceito que o tomou, e a partir de então, se ocorre de ele ainda ler, ele julga e condena tudo de acordo com tal medida. É muito fácil aceitar a perspectiva mais banal e se apegar a ela, seguros do consenso da maioria. É muito cômodo supor que todo esforço já acabou e que se conhece a beleza, a verdade, a justiça. É cômodo e vil. É como acreditar que se está absolvido do eterno e temente dever de ter caridade com os homens simplesmente porque de vez em quando dá uma moeda ao pedinte. Nada faremos, nem mesmo aqui, sem o respeito e a humildade: a humildade que entreabre frestas em nós através da nossa substância de orgulho e preguiça, o respeito que nos persuade à dignidade dos outros, do diferente, do próximo enquanto tal.

Fala-se sobre livros. E sabe-se que livros, quanto mais ingênua e plana é a sua voz, mais dor e tensão eles custaram a quem os escreveu. É inútil, portanto, ter esperança de tateá-los sem pagar um preço pessoal por isso. Ler não é fácil. E acontece, como se costuma dizer, que quem estudou, quem se move agilmente no mundo do conhecimento e do gosto, quem tem o tempo e os meios para ler, muito frequentemente acaba sem alma, sem amor pelo homem, acaba encrostado e endurecido pelo egoísmo de casta. Enquanto quem aspiraria, como aspira à vida, a este mundo da fantasia e do pensamento, quase sempre se encontra ainda privado dos elementos iniciais: lhes falta o alfabeto de alguma linguagem, não lhes sobram nem tempo, nem forças, ou, pior, estão corrompidos por uma falsa preparação, quase uma propaganda, que lhes barra e deturpa os valores. Quem encara um tratado de física, um texto de contabilidade, a gramática de uma língua, sabe que existe uma preparação específica, um conjunto mínimo de noções indispensáveis para tirar algum proveito da nova leitura. Quantos se dão conta de que uma bagagem técnica análoga é necessária para se aproximar de um romance, um poema, um ensaio, uma reflexão? E, ainda, que essas noções técnicas são incomensuravelmente mais complexas, sutis e fugidias do que as outras, e não podem ser encontradas em nenhum manual, em nenhuma bíblia? Todos acham que um conto, um poema, será naturalmente acessível à atenção humana comum, por falar não ao físico, ao contabilista ou ao especialista, mas sim ao homem que existe em todos eles. E é este o erro. Outro é o homem, outro, os homens. No final das contas, é tola a lenda de que poetas, narradores e filósofos se referem ao homem em absoluto, ao homem abstrato, ao Homem. Eles falam ao indivíduo de uma determinada época e situação, ao indivíduo que tem determinados problemas e procura resolvê-los à sua maneira, inclusive e sobretudo quando lê romances. Será preciso então, para entender os romances, situar-se em sua época e propor-se os seus problemas; o que quer dizer, nesse campo, aprender antes de mais nada as linguagens, a necessidade das linguagens. Convencer-se de que, se um escritor escolhe certas palavras, certos tons e ares insólitos, ele tem pelo menos o direito de não ser subitamente condenado em nome de uma leitura precedente, na qual os ares e as palavras estavam mais organizados, eram mais fáceis ou apenas diferentes. Esse feito da linguagem é o mais vistoso, mas não o mais urgente. Claro, tudo é linguagem em um escritor, mas basta ter compreendido isso para se ver em um mundo mais vivo e complexo, onde a questão de uma palavra, de uma inflexão, de uma cadência, torna-se de repente um problema de costume, de moralidade. Ou até mesmo de política.

Isso basta então. A arte, como dizem, é uma coisa séria. É tão séria quanto a moral e a política. Mas se temos o dever de nos aproximar dessas duas últimas com uma modéstia que mira a clareza – caridade com os outros e dureza conosco –, não é possível compreender com que direito, diante de uma página escrita, nos esquecemos de sermos homens e de que com um homem estamos falando.

Referência bibliográfica

PAVESE, Cesare. La letteratura americana e altri saggi. Livro digital. Turim: Einaudi, 2014, s/p.

Descobrindo o encoberto: conversas sobre tradução com Flora Thomson-DeVeaux

Nas últimas semanas, a pesquisadora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux tem estado presente em diversas páginas da imprensa nacional e internacional. A sua tradução do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicada recentemente pela editora Penguin, entrou na quarta tiragem logo no primeiro mês de publicação. Assim, desde seu lançamento, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020) tem chamado a atenção do público e rendido boas reflexões sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior.

Flora estudou Línguas e Culturas Espanholas e Portuguesas na Universidade de Princeton. Em 2019, concluiu o doutorado em Estudos Brasileiros e Portugueses na Universidade Brown. Atualmente, vive no Rio de Janeiro e, entre outras atividades, é diretora de pesquisa da Rádio Novelo, produtora de podcasts como Maria vai com as outras, Foro de Teresina e 451 MHz. O blog Marca Páginas convidou Flora para uma conversa sobre tradução, literatura, pesquisa acadêmica, projetos futuros, e o resultado da nossa entrevista vocês conferem aqui. Boa leitura!

Marca Páginas: Flora, você começou a traduzir o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas como parte de seu projeto de doutorado, defendido na Universidade Brown em 2019. Você poderia nos contar mais sobre a sua tese? De que maneira essa pesquisa acadêmica foi importante para a tradução de uma obra literária?

Flora Thomson-DeVeaux: A tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas foi só um dos capítulos da minha tese, na verdade. Nos outros capítulos, tentei acompanhar a trajetória do romance em inglês – a primeira publicação foi no começo dos anos 1950 nos Estados Unidos e teve mais duas traduções posteriores. Fui atrás de descobrir quais circunstâncias levaram cada tradutor a embarcar no projeto, como foi o processo de edição e publicação, e como cada tradução foi lida no seu tempo. Também dediquei alguns capítulos a aspectos mais teóricos de crítica machadiana e tradutória, e falo sobre minha metodologia. Por fim, proponho que ler a obra machadiana através das suas traduções pode ser uma experiência reveladora.

Uma obra como Memórias póstumas de Brás Cubas é em grande parte uma colaboração entre o texto e o leitor. Em Dom Casmurro, o narrador nos diz que este é um livro “falho”, com lacunas, que cabe ao leitor preencher. Essa é uma operação silenciosa que acontece na cabeça de quem lê Machado de Assis; mas o tradutor acaba imortalizando um pouco do processo na página. Por isso, ler várias traduções da mesma obra machadiana pode jogar uma luz sobre as complexidades do texto original.

Antes de começar a traduzir o livro, mergulhei nos estudos machadianos e da tradução para me situar melhor nos campos respectivos. Queria estar a par não só da grande gama de interpretações que se tem feito do romance, mas também dos debates e estratégias propostos por tradutores nos projetos mais diversos. Na verdade, alguns dos textos que mais me ajudaram tinham pouco ou nada a ver com Machado e Brás Cubas – entre eles, um estudo sobre as traduções de poesias de John Donne para o francês e espanhol e outro que examina vários escritores de língua inglesa em tradução para o italiano. Acredito que essa contextualização tenha sido importante para minha abordagem ao texto – me deixou antenada para perceber alusões e dinâmicas comentadas por outros leitores, e também entrei no processo com algumas ideias de estratégias possíveis debaixo do braço.

Capa da edição The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020)

Marca Páginas: Apesar de Machado de Assis ser bastante conhecido no Brasil, sabemos que sua circulação é ainda restrita em outros países. Você já tinha ouvido falar sobre Machado de Assis antes de decidir estudar literatura brasileira? Como você conheceu a obra de Machado e o que te motivou a traduzi-la?

Flora Thomson-DeVeaux: Não tinha ouvido falar em Machado de Assis antes de entrar na faculdade. Conheci justamente como aluna de literatura brasileira – na verdade, como aluna de língua portuguesa. Foi naquela época que me apaixonei pela prática da tradução, mas não pensei imediatamente em trabalhar com Machado – até porque quase todos os romances dele já tinham sido traduzidos para o inglês (o último foi Ressurreição, que foi traduzido em 2013). Só comecei a pensar nessa possibilidade quando fui traduzir um livro de João Cezar de Castro Rocha, chamado Machado de Assis: por uma poética da emulação. Sempre que João Cezar citava obras de Machado que já tinham sido traduzidas, procurei citar as traduções existentes – mas em muitos casos, as traduções não encaixavam com a análise minuciosa que estava sendo feita no livro de crítica. Com isso, me vi obrigada a retraduzir alguns trechos daqueles romances. Foi uma experiência instigante, bem na véspera de eu entrar no programa de doutorado, e que me ajudou a definir meu projeto em torno de uma nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Marca Páginas: Em ocasiões anteriores, quando foram publicadas outras traduções de Machado no exterior, havia uma grande expectativa de que o escritor seria reconhecido fora do Brasil. Sua tradução parece finalmente estar despertando essa atenção. A quais fatores você atribui esse reconhecimento? Por que agora e não antes?

Flora Thomson-DeVeaux: Infelizmente, suas perguntas provavelmente poderiam ter sido feitas no centenário da morte de Machado em 2008, ou na época das primeiras retraduções nos anos 1990, e elas ecoam questionamentos e esperanças da década de 1950. Quando estudei a recepção das traduções anteriores, vi sempre muita esperança em torno de cada lançamento, mas a repercussão acabava esvaindo sem que Machado de Assis se estabelecesse definitivamente nas prateleiras anglófonas. Torço muito para que desta vez seja diferente. Mas o primeiro tradutor de Memórias póstumas, William Grossman, chegou a dizer que Machado, com sua ironia delicada e fina, jamais seria um autor para as massas, e só seria descoberto e desfrutado por um público seleto.

Marca Páginas: Memórias Póstumas foi publicado no século XIX, em 1881, o que implica desafios tradutórios diferentes se compararmos a experiência à tradução de um texto contemporâneo. Quais foram os seus maiores desafios diante desse trabalho? E quais foram as estratégias e os instrumentos que você utilizou para lidar com esses desafios?

Flora Thomson-DeVeaux: A maior dificuldade não era só de tentar habitar o inglês do final do século XIX, mas sobretudo de medir o quanto que as escolhas linguísticas do autor se diferenciavam daquelas dos seus pares. Ou seja: quando Machado escrevia algo de um jeito que me parecia esquisito, tinha que descobrir se a esquisitice era temporal, cultural, ou machadiana mesmo – se era uma expressão muito usada naquela época que caiu em desuso, se era uma expressão brasileira de difícil interpretação no contexto anglófono, ou se era uma invenção dele, ou uma opção dele por uma palavra deliberadamente obscura. Nesses últimos casos, tentava chegar em alguma solução que fosse ao mesmo tempo compreensível e que também ficasse suficientemente esquisito aos olhos do leitor anglófono. Para identificar se Machado estava se diferenciando muito de seus pares, eu usei tanto bases de dados chamados corpus linguísticos, que medem a frequência de uso das palavras ao longo dos anos, quanto a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde usuários podem acessar milhares de publicações digitalizadas do século XIX e XX. Ah, e acabei acumulando uma coleção respeitável de dicionários antigos português-inglês (melhor: portuguez-inglez), que às vezes preservam definições e explicações de frases e termos que teriam sido correntes no século XIX, mas já não são tão compreensíveis.

Flora Thomson-DeVeaux (acervo pessoal)

Marca Páginas: Estudos sobre tradução já foram tema aqui no blog Marca Páginas[1], inclusive para falar sobre traduções de Machado de Assis para o espanhol[2]. Considerando as nuances que perpassam a experiência de tradução, seja como traição, seja como coautoria, de que maneira você definiria seu trabalho como tradutora?

Flora Thomson-DeVeaux: Jamais me definiria como traidora, mas também não me vejo muito como co-autora. Me identifico muito com uma descrição da última crônica do Machado: “eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.” Vejo o trabalho de tradução como essa missão de uma leitura minuciosa, obsessiva, que pode muitas vezes “descobrir o encoberto”.

Marca Páginas: Para terminar, você poderia nos contar quais são seus próximos projetos? Você pretende continuar traduzindo a obra de Machado de Assis?

Flora Thomson-DeVeaux: Não descarto voltar a Machado, mas não penso em emendar em outra obra dele. Ainda estou pesando algumas opções de projeto – gostaria de fazer uma tradução de uma obra que ainda não tenha versão em inglês. Meu próximo projeto não tem nada a ver com tradução: é um podcast narrativo sobre o caso da Ângela Diniz, que deve ser lançado nos próximos meses pela Rádio Novelo.

Sugestões de leitura:


[1] Para acessar os posts anteriores: <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/04/20/traducao-de-textos-literarios-parte-1/>, <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/10/01/a-traducao-de-textos-literarios-parte-2/> e <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/09/18/o-camelo-pelo-buraco-da-agulha-e-outras-historias-estranhas-de-traducao-por-stant-litore-traducao-jacqueline-placa/>.

[2] Para conferir o texto “Machado de Assis em espanhol”, por Juliana Gimenes:  <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/06/24/machado-de-assis-em-espanhol-por-juliana-gimenes/>.

A verdade escorregadia para Machado de Assis: ciência, literatura e jornalismo, por Laís Souza Toledo Pereira

Em 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, houve uma inédita e instantânea transformação no nosso país: ele passou de colônia à sede da Corte. Nesse contexto, algumas condições foram criadas aqui, mesmo que de modo artificial, para servir às necessidades da Corte portuguesa. Uma das primeiras transformações ocasionadas por essa mudança foi o surgimento da imprensa no Brasil, já que o governo agora precisava imprimir aqui seus documentos oficiais. Além disso, qualquer atividade relacionada à imprensa era proibida no nosso país até esse momento, como acontecia também em outras colônias de Portugal. É nesse contexto, evidentemente marcado por um enorme analfabetismo, que surgem os primeiros jornais brasileiros. [1]

O primeiro periódico impresso no Brasil, ainda em 1808, foi a Gazeta do Rio de Janeiro, que já realizava o papel de divulgar assuntos relacionados à ciência. Desse modo, a comunicação de ciência se inicia no Brasil no século XIX, nos seus recém-criados jornais cotidianos, não especializados e voltados ao grande público. Aliás, era assim que a comunicação de ciência ocorria na maioria dos países nessa época, quando os conhecimentos muito especializados não circulavam nos jornais, mas por meio de correspondências entre os cientistas. Depois, foram essas cartas que deram origem ao que conhecemos hoje como periódicos científicos, ou seja, publicações em assuntos de ciência voltadas a especialistas. [2]

Uma característica marcante desse início da comunicação científica no Brasil é que ela era feita, na maior parte das vezes, por “homens ligados à ciência”, como médicos e engenheiros, e havia um grande interesse pelas aplicações práticas da ciência, sobretudo no contexto específico do nosso país, como em temas relacionados à agricultura e à saúde, por exemplo. A ciência, assim, era frequentemente relacionada nessas publicações a termos como “progresso”, “luzes”, “desenvolvimento”, “interesse do Brasil” e “felicidade pública”. [3]

Esse tom ao tratar de assuntos sobre ciência continuou ao longo do século XIX, período em que os cientistas ganharam autonomia, prestígio e poder [4]. As últimas décadas desse século foram marcadas por uma grande euforia, que vinha da esperança na modernidade e na ciência. As novas teorias científicas – o maior exemplo talvez seja a Teoria da Evolução de Charles Darwin, apresentada em 1859 – geravam um sentimento de que todos os mistérios da natureza haviam sido desvendados. Nesse contexto, os “métodos científicos” passaram a fazer parte do cotidiano não só de médicos ou biólogos, por exemplo, como também de artistas e literatos. Para alguns desses literatos, havia o desejo de que o trabalho literário tivesse um engajamento social e reformador. E, assim, anunciando uma decadência dos românticos, surgiram os chamados Naturalistas, que defendiam uma objetividade, uma verdade impessoal na literatura, no lugar da imaginação ou do sentimento, por exemplo.

Foi nesse cenário que Machado de Assis (1839-1908) se inseriu em uma polêmica. O escritor, que dispensa maiores apresentações, tinha uma desconfiança da ideia de que a literatura devesse se unir completamente à ciência e apenas “fotografar” a realidade, revelando uma “verdade” da sociedade. Mais do que isso, Machado sugeria que a própria noção de que as ideias científicas eram objetivas e imparciais não era indiscutível. Para ele, o discurso cientificista, como qualquer outro, era construído de forma provisória, em meio a disputas e tensões, e tinha suas lacunas, contradições e, muitas vezes, até o intuito de atender a interesses particulares. Machado não afirmava que a realidade não existia, mas ele combatia a fragilidade de falas unânimes da ciência no século XIX e também o modo como muitos intelectuais brasileiros aceitavam sem grandes questionamentos essas “novas ideias”. Inclusive, tais ideias, normalmente importadas da Europa, muitas vezes se adaptavam mal ao contexto brasileiro ou até eram aplicadas de um modo que atendesse a certos propósitos das classes dominantes do nosso país, como para justificar desigualdades “naturais” entre os seres humanos e, portanto, legitimar a manutenção da escravidão por aqui.

Machado de Assis. Divulgação da campanha “Machado de Assis Real”, feita pela Faculdade Zumbi dos Palmares

Machado se envolveu nessa polêmica debatendo sobre o assunto com outros literatos de seu tempo (houve até quem o acusasse de não ter uma “educação científica”, já que Machado, de origem humilde, não estudou na Europa, como era costume na época). E o seu conhecido romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em folhetim, ou seja, publicado nos jornais, ao longo do ano de 1881, seria fruto também de suas reflexões sobre esse tema e uma forma de Machado, por meio da literatura, afirmar seu posicionamento. No entanto, além de abordar tais questões em seus textos mais puramente teóricos ou literários, o bruxo do Cosme Velho, como Machado é conhecido, também tratou desse assunto em suas crônicas.

O significado original da palavra “crônica” vem do grego “kronos”, tempo, e se refere ao relato de acontecimentos em ordem cronológica. Porém, hoje, no Brasil, quando falamos de crônica, não pensamos mais em crônica histórica, mas em um comentário despretensioso sobre um fato da atualidade presente no noticiário dos jornais ou até um fato corriqueiro do dia-a-dia. Talvez você conheça alguma crônica de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector ou Fernando Sabino, por exemplo.

De modo geral, a crônica é um tipo de texto simples (mas difícil de definir) que nasceu quando o jornal se tornou cotidiano e, além de ter um pé no jornalismo e outro na literatura, ela tem uma relação ainda com outro tipo de texto, os ensaios, por também encarar a escrita de forma leve e livre, como uma tentativa (um ensaio) que não tem o compromisso de chegar a uma conclusão. Mas não se engane. Ainda que tratando os temas de modo despretensioso e, muitas vezes, com graça, não são poucas as crônicas que abordam assuntos sérios e também não são poucos os cronistas que as enxergam como uma forma de comentar e ordenar eventos históricos, intervindo, assim, na realidade de seu tempo. Nesse sentido, podemos dizer que Machado de Assis foi um desses cronistas. [5]

A relação do bruxo do Cosme Velho com as crônicas começou em 1860, quando ele tinha cerca de 20 anos, e durou, passando por diversos jornais, quase até o fim de sua vida, dando um saldo de algumas centenas de crônicas [6]. Essa relação entre Machado de Assis e as crônicas foi mudando ao longo da trajetória do escritor, assim como ele foi definindo as características desse tipo de texto no Brasil, aproximando-o de uma elaboração literária e de um tom mais humorístico. Machado, como ele mesmo dizia em suas crônicas, foi unindo o útil e o fútil, o sério e o frívolo, foi metendo o nariz onde ninguém mais metia e apertando os olhos para ver as coisas miúdas que também importavam [7]. Desse modo, não é de se estranhar que Machado tenha comentado em suas crônicas a questão polêmica da relação entre literatura e ciência e dos limites de uma “verdade” objetiva e isenta nos discursos científicos de sua época. Machado escreveu crônicas abordando esse tema, por exemplo, na série coletiva “Balas de Estalo”, publicada na Gazeta de Notícias. De julho de 1883 a março de 1886, Machado publicou 125 textos nessa série, assinando com o pseudônimo de Lélio. Além dele, outros jornalistas e “homens de letras”, todos usando pseudônimos, se revezavam para escrever os mais de 900 textos que compõem as “Balas de Estalo”. Um desses autores foi Ferreira de Araújo, que era também médico e um dos donos da Gazeta. Resultado de um processo de modernização pelo qual a imprensa brasileira passou no final do século XIX, esse jornal foi fundado em 1875 com os objetivos de ser popular, barato e atingir os mais variados públicos. A Gazeta de Notícias defendia um compromisso com a leveza e com o humor e foi um dos primeiros jornais a ser vendido de forma avulsa nas ruas da cidade, ou seja, sem a necessidade de assinatura. Assim, já no fim da década de 1880, a Gazeta era um dos 3 maiores jornais do Rio de Janeiro. Alinhada aos princípios do jornal, a série “Bala de Estalos” também tinha um programa geral, uma ideia de unidade, que era zombar dos fatos inusitados do cotidiano e da política imperial, “ferindo docemente”, unindo a “artilharia e os confeitos” (lembrando aqui que “bala de estalo” é um tipo de doce). E, como Machado, já aos 44 anos e consagrado por Brás Cubas, entrou na série 3 meses após sua criação, ele teve que se adaptar ao que seus colegas já vinham desenvolvendo.

Página da Gazeta de Notícias

Essa série, então, foi um espaço onde Machado teceu seus comentários sobre a verdade, tanto na literatura, quanto na ciência ou ainda no próprio jornalismo, que, no momento também tentava afirmar um ideal de “modernidade”, pautando-se por uma neutralidade e ligando-se mais à notícia que à opinião. Esse espaço do jornal era oportuno, pois a “mentira” da crônica era publicada ao lado do fato “verdadeiro” da notícia, o que permitia ao leitor conhecer ao menos duas maneiras de se contar o mesmo acontecimento. Essa comparação evidenciava que quem narrava o fato fazia toda a diferença, ou seja, que a realidade não é objetiva e pode ser contada de diversas formas.

Lélio, o pseudônimo escolhido por Machado, mais do que proteger a identidade de seu autor (que, na época, era funcionário do Ministério da Agricultura), constituía uma voz ficcional muitas vezes distinta dos pensamentos de Machado e até pouco confiável, o que tornava os textos mais complexos. O “baleiro-filósofo”, como ficou conhecido Lélio entre os outros “baleiros”, via as ideias como nozes e as ia quebrando para desvendar seus conteúdos. Em várias de suas “Balas”, ele testava até os limites os argumentos das teorias científicas que se difundiam no Brasil daquele momento, procurando, assim, combater a atitude de aceitação sem crítica que a intelectualidade brasileira adotava. Ele também tentava mostrar que essas teorias tinham mais significado do que apenas explicar os fenômenos naturais que regem o mundo. Ao longo das “Balas de Estalo”, Lélio consultou um padre defunto sobre questões de latim, passeou pelo Rio de Janeiro com um grego do século VII a. C., reproduziu uma conversa de Deus com São Pedro sobre a sucessão de “remédios milagrosos”, conversou com os vermes de um cemitério e até tirou dúvidas científicas com o espírito de Newton. Esses poucos exemplos já dão pistas da inventividade de Machado e de como o absurdo pode revelar “verdades”, às vezes de modo mais eficaz que um discurso objetivamente sisudo, que pode deixar a “verdade” (com ou sem intenção) acabar escorregando.

Para dar um gostinho…

Um trecho da crônica de Lélio publicada em 25 de novembro de 1884:

O Sr. Dr. Castro Lopes escreveu um trabalho para provar que a atração não governa os astros, e o Sr. conselheiro Ângelo Amaral refutou-o com uma carta inserida, hoje, no jornal País.

Tratando-se de uma teoria de Newton, e não entendendo eu nada de astronomia, pareceu-me que o melhor de tudo era consultar o próprio Newton, por meio do espiritismo. Acabo de fazê-lo; e eis aqui o que me respondeu a alma do grande sábio:

– Estou acabrunhado. Imaginava ter deixado a minha ideia tão solidamente estabelecida, que não admitisse refutações do Castro Lopes, nem precisasse a defesa do Ângelo Amaral; enganei-me. Homem morto, é o diabo. […] A mim refutam-me: e (o que é pior) defendem-me. Palavra; isto tira toda a vontade de ser gênio…

Para saber mais

[1] Em entrevista de 2011, Márcia Abreu, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), falou sobre esse assunto ao apresentar o livro Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros, que ela ajudou a organizar (e com o qual ganhou o prêmio Jabuti) a respeito da história da imprensa no Brasil. Entrevista está disponível em:  https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2011/ju514_pag67.php

[2] Mais informações sobre essa questão podem ser conferidas no artigo de Maria Helena de Almeida Freitas, “Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros”. O artigo foi publicado na revista Ciência da Informação, em 2006. Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/1113/1244

[3] Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani, no artigo “Aspectos históricos da divulgação científica no Brasil”, abordam esse assunto. O texto foi publicado no livro Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil, em 2002.

[4] A partir desse momento, exceto quando indico outras referências nas 3 notas seguintes, este texto de divulgação se baseia nas ideias discutidas por Ana Flávia Cernic Ramos, em seu livro As máscaras de Lélio: política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886), publicado em 2016. Esse livro é resultado da pesquisa de doutorado em História Social da Ana Flávia, realizada na Unicamp.

[5] Para apresentar brevemente a crônica, utilizei alguns textos como base. Para quem quiser se aprofundar no assunto, aqui vão as referências: “Fragmentos sobre a crônica” de Davi Arrigucci Júnior, publicado em 1987 no livro Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência; “A vida ao rés-do-chão”, de Antonio Candido, publicado em 1992 no livro A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, e “Ensaio e crônica” de Afrânio Coutinho, publicado em 1986 no livro A Literatura no Brasil.

[6] Recentemente, foram descobertas crônicas ainda inéditas de Machado. A fascinante descoberta é fruto de anos de pesquisa de Sílvia Maria Azevedo, que conseguiu atribuir a autoria desses textos, de fato, a Machado e acabou de publicá-los no livro Badaladas do Dr. Semana, de Machado de Assis, de 2019. Para quem se interessar, há este texto apresentando o livro de Sílvia Maria: https://jornal.usp.br/artigos/novas-badaladas-de-machado/ .

[7] Trecho baseado em “O folhetinista”, uma das primeiras crônicas de Machado, de 1859, e em outra crônica sua, “O nascimento da crônica”, de 1877. 

Lançamento do e-book “Oficinas de imaginação e escrita para a educação em Direitos Humanos”

O grupo de pesquisa Nós-Outros: linguagem, memória e direitos humanos acaba de publicar, coordenado pela professora Daniela Palma, do IEL/UNICAMP, um material didático que visa orientar a abordagem de Direitos Humanos em aulas de Língua Portuguesa dos Ensinos Médio e Fundamental II. Trata-se do e-book Oficinas de imaginação e escrita para a educação em Direitos Humanos, disponível para download gratuitamente no site institucional do projeto (link no final do texto).

Esse material está dividido em 5 oficinas de escrita, organizadas ao redor de 5 eixos temáticos principais que tratam de uma série de direitos: o direito à moradia; o direito à liberdade de expressão e à identidade cultural; o direito à migração; o direito à água e à natureza; e o direito ao luto. Por meio de um processo de imersão em cada um desses temas, a ideia é mobilizar a leitura de uma grande variedade de textos e a apreciação de outras produções culturais, como músicas, documentários e filmes, de forma a estimular, em momentos apropriados, os alunos e as alunas a escrever suas principais impressões em sua “Caderneta de escritor(a)”. O objetivo é que essas anotações constituam progressivamente um importante acervo de referências e reflexões para que, ao final de cada unidade, os/as estudantes estejam preparados para se dedicar a uma proposta de produção de texto mais extensa.

Assim está estruturada a Oficina 2, “Dos fios que trançam uma história: liberdade de expressão, identidade cultural e autoestima”, por exemplo, que irá se centrar na importância dos cabelos para discutir a liberdade de expressão e de identidade cultural à que cada pessoa tem direito. Os alunos e as alunas serão então expostos a uma série de leituras de aproximação ao tema que irão percorrer, ao longo de épocas e territórios diversos, a relação de cada povo com os seus cabelos. Dessa forma descobriremos que, no Antigo Egito, por exemplo, os cortes de cabelo estavam relacionados à hierarquia e ao gênero de quem os portava; ou ainda que as tranças nagô, ou de raiz, presentes até hoje na cultura brasileira, remetem à maneira como homens e mulheres iorubás arrumavam seus cabelos há muitos séculos.

Orna Wachman/Pixabay

Essa contextualização culminará em uma densa reflexão sobre como uma simples parte do nosso corpo representa, na verdade, uma série de possibilidades (ou impossibilidades) de manifestarmos social, política e religiosamente nossa própria identidade. A parte escrita, ao final dessa unidade, se dedicará então à produção de textos que reflitam sobre essas questões por meio de duas possibilidades: a escrita de um roteiro ou a escrita de uma canção. Caberá ao professor ou à professora a escolha de abordar apenas uma ou as duas propostas em sala de aula.

Vale notar que todas as oficinas possuem orientações para guiar os professores e as professoras durante a utilização do material, mas há também um grande apelo à autonomia dos alunos e das alunas para que eles/elas possam construir o conhecimento de forma crítica ao longo de todas as leituras e produções escritas. Além disso, as unidades contam ainda com glossários para palavras mais específicas ou complicadas, além de diversas sugestões para aprofundamento sobre cada tema, o que garante um maior suporte para compreensão dos pontos abordados.

Também é fundamental dizer que todo o material se volta à importância de imaginar e narrar. Você já parou para pensar que um dos motivos que nos fazem gostar de ler ou assistir filmes é justamente o fato de essas produções nos permitirem ter contato com experiências que, vivendo nossas próprias vidas, não seríamos capazes de ter? E será que, estabelecendo esse contato com as experiências de vida de outras pessoas, poderíamos ter mais consciência e respeito pelas diferenças? É nesse caminho que o livro aposta. Tanto pelo contato com narrativas produzidas por outras pessoas, quanto pelo estímulo de narrar as próprias experiências por meio das propostas de escrita, há ao longo de todas as unidades um reforço da ideia de que “pensar pela imaginação da experiência do outro é fundamentalmente a possibilidade de construir inversões de perspectiva”, segundo trecho da introdução “Direitos Humanos em aulas de escrita: apontamentos e orientações”. Aliás, uma dica preciosa: as páginas iniciais que antecedem as oficinas são um conteúdo excelente para nos aprofundarmos em questões que envolvem conceitualmente os temas abordados; vale a pena demorar-se na apresentação e introdução do material, bem como na rica bibliografia sugerida! Esse momento anterior à utilização do material em sala de aula é também uma oportunidade de os professores e as professoras terem um panorama mais completo e geral de como as oficinas se organizam, além de compreenderem em quais pilares teóricos se sustentam as unidades.

Em linhas gerais, podemos dizer que é pelo contato com a experiência narrada por outra pessoa que alunos e alunas serão educados a observar o mundo à sua volta e a olhar para si mesmos e mesmas enquanto sujeitos de experiências que também são ressignificadas quando colocadas em perspectiva. E assim, de forma intuitiva e sensível, mas também orientada por atividades pensadas para tal fim, é possível trabalhar conteúdos referentes aos Direitos Humanos a partir da conscientização de que esses direitos dizem respeito aos próprios alunos e alunas e aos demais seres humanos com quem compartilhamos o mundo. Aprimorar a percepção do outro é um excelente caminho para entendermos nós mesmos/as e, em uma espécie de ciclo de reações, todo mundo ganha quando estamos mais conscientes de quem somos, do lugar que ocupamos e com quem dividimos nossas vivências. Parece que nos últimos tempos uma parte de nós anda se esquecendo disso, mas sempre vale a pena lembrar: é em contato com o que sou, com o que somos, e com o que os outros são que nos tornamos, finalmente, um pouco mais humanos.

Então vamos lá, ao trabalho! E não se esqueça de compartilhar esse e-book com mais educadores, para que ele possa viajar cada vez mais longe. Obrigada!

* Para download gratuito do e-book Oficinas de imaginação e escrita para a educação em Direitos Humanos e demais publicações do grupo Nós-Outros: http://www2.iel.unicamp.br/nosoutros/publicacoes/

* Para mais informações sobre o grupo de pesquisa Nós-Outros: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/527218

Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos, por Matheus Bueno

Matheus Bueno se formou em Letras, na Unicamp, com a monografia “Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos”, sob a orientação da Profa. Roxane Rojo. O texto a seguir é uma síntese de sua pesquisa, na qual ele abordou as relações entre multiletramentos e minicontos, impressos e digitais. Muito obrigada, Matheus, por sua colaboração ao blog Marca Páginas. E boa leitura!

Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos, por Matheus Bueno

PRA COMEÇO DE CONVERSA

Uma coisa é certa: nos dias de hoje vivemos em um mundo cada vez mais urbanizado, globalizado e altamente tecnologizado. As novas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – ou TDIC, como costumamos nomear – são, com efeito, uma presença inevitável em nosso cotidiano e vêm transformando nossas maneiras de ser e estar no mundo, nossas maneiras de comunicação e, principalmente, nossas maneiras de ler e escrever. Mas por que ocorrem tantas mudanças importantes no campo da leitura e da escrita? Isso se deve ao fato de que, na contemporaneidade, as novas tecnologias e as novas possibilidades digitais disponíveis não só facilitam a circulação e a produção de textos, como também fazem surgir novos tipos de textos – ou novos modos dos textos –; textos que não são apenas verbais, estáticos e impressos, mas que agora são digitais, colaborativos, interativos, hipertextuais e, sobretudo, multissemióticos, ou seja, compostos por uma multiplicidade de semioses (linguagens) para além do verbal escrito ou oral, como a linguagem imagética (imagens estáticas ou em movimento), sonora (música, efeitos sonoros etc.), digital (como objetos 3D, por exemplo) e muitas outras. A grande questão é: para que possamos compreender, interpretar e produzir esses novos textos digitais multissemióticos, precisamos desenvolver novas habilidades/competências de leitura e escrita, ou melhor, precisamos desenvolver novas práticas de letramento que, na atualidade, tornam-se multiletramentos. Se o conceito de letramento refere-se às variadas práticas sociais em que a língua escrita e o ler e o escrever estão envolvidos – tomar um ônibus ou solicitar uma carona por aplicativos de transporte, assistir ao noticiário pela TV ou acessar as notícias pelos sites de redes sociais, escrever um bilhete ou mandar uma mensagem instantânea pelo Whatsapp, todas essas são práticas em que a leitura e a escrita se fazem presentes, por exemplo –, poderemos perceber que as novas tecnologias contemporâneas fazem emergir novos tipos de texto que nos demandam novos letramentos, letramentos que, hoje, não são somente o letramento da letra (do verbal, das palavras), mas também o letramento das múltiplas linguagens (ou multiletramentos).

E A ESCOLA?

Se as escolas são por excelência as mais importantes agências de letramento – como afirma a pesquisadora Angela Kleiman (2007)[1] –, ou seja, se as escolas são as instituições que deveriam promover os letramentos a fim de formar alunos letrados que se apoderem criticamente dos usos sociais da língua escrita, como então os colégios contemporâneos poderiam se apropriar dos novos textos multissemióticos em circulação dentro e fora do ciberespaço com o intuito de desenvolver os (multi)letramentos dos estudantes, tornando-os cidadãos críticos capazes de participar efetivamente das práticas sociais exigidas pelo mundo tecnológico contemporâneo? Em aulas de língua portuguesa – disciplina responsável por discutir língua(gem) e literatura –,  como exercitar os letramentos e multiletramentos utilizando gêneros verbais impressos e gêneros digitais? Em verdade, quais são as potencialidades pedagógicas desses textos digitais? Com o objetivo de responder tais questões, elencamos em nossa pesquisa o miniconto verbal impresso e o miniconto digital multissemiótico como objetos principais de análise: acreditamos que os minicontos – estritamente verbais e também os digitais, frutos dos tempos hipermodernos –, por mobilizarem conteúdo verbal e não verbal e constituírem-se como gêneros literários, são ótimos exemplares desses novos textos que podem colaborar para o desenvolvimento dos letramentos, letramentos literários e multiletramentos dos aprendizes, permitindo que os estudantes exercitem principalmente capacidades e habilidades de fruição, compreensão e leitura crítica e que, de certo modo, possam ainda experimentar também outras esferas sociais de circulação dos textos, das ideias e das práticas letradas; no caso em questão, a esfera artístico-literária e a esfera de práticas de letramento literário.

MINICONTOS E MINICONTOS DIGITAIS: BREVES, MAS PODEROSOS

Os minicontos começam a surgir no século XX e são o resultado de um processo de miniaturização do conto, como defende o estudioso Marcelo Spalding (2008)[2]. A partir dos anos 1960, depois que o escritor guatemalteco Augusto Monterroso (1921–2003) publicou O dinossauro – considerado por muitos como o miniconto mais famoso do mundo, possuindo apenas sete palavras! –, o gênero em questão começa a ganhar notoriedade, popularizando-se ainda mais na passagem do século XX para o XXI.

Miniconto “O dinossauro”, de Augusto Monterroso

Poderíamos caracterizar o miniconto como um texto contemporâneo extremamente curto e conciso. Mesmo que não exista consenso entre os especialistas sobre o tamanho máximo ou mínimo que uma microficção deveria ter, é fato que os minicontos unifrásicos, de apenas uma frase, são de longe os mais interessantes de serem lidos, pois, apesar de breves, tais textos ainda possuem grandes cargas de narratividade e significação, impactando os leitores intensamente. São textos que podem tematizar múltiplos assuntos e contar diferentes tipos de histórias, mas que são majoritariamente conhecidos por sua natureza mais “ácida”, irreverente, inusitada, ambígua e provocadora. Segundo a Pequena Poética do Miniconto, publicada também por Spalding em 2007[3], a concisão – a representação de um momento-chave da trama –, a narratividade – a capacidade de o miniconto contar uma história –, a exatidão – a utilização minuciosa das palavras –, a abertura – a grande quantidade de implícitos, espaços em branco e lacunas narrativas que devem ser preenchidas pelos leitores conforme seus conhecimentos de mundo e suas experiências (as aberturas são os elementos que convidam o leitor à ação e por isso poderiam ser consideradas a qualidade mais instigante das microficções), e o efeito – a possibilidade de o miniconto provocar fortes reflexões e sentimentos em quem os lê – seriam as características fundamentais do gênero.

Com relação aos minicontos digitais, o interessante é observar como o gênero miniconto, antes estritamente verbal, estático e impresso, adentra o ciberespaço e, na atualidade, valendo-se das possibilidades tecnológicas e digitais contemporâneas, torna-se agora um gênero digital, colaborativo, interativo e principalmente multissemiótico, compondo projetos de literatura digital. Ao se manifestarem como literatura digital, ou seja, ao serem elaborados segundo as potencialidades oferecidas pelas TDIC, os minicontos digitais passam a nos oferecer novas estéticas textuais (novos textos com novas aparências) e também novas e diferentes experiências de leitura e fruição, reivindicando assim novos leitores/autores que saibam explorar as ferramentas de navegação e interação da web (PAGNAN, 2017)[4] e estejam aptos a compreender textos multissemióticos.

A título de exemplo, poderíamos citar o projeto de literatura digital intitulado Minicontos Coloridos. Organizado por Marcelo Spalding, o site convida o leitor-internauta a pintar seus próprios minicontos a partir da combinação de três diferentes cores (vermelho, verde e azul). Após misturar as tonalidades conforme critérios pessoais, o leitor é levado a uma nova página que revela não só a cor resultante de sua combinação, mas também um miniconto verbal escrito que se relaciona de algum modo à cor gerada. O projeto em questão é atrativo por dois motivos: além de nos proporcionar uma nova experiência de leitura – uma experiência interativa realmente marcante que permite que os visitantes “brinquem” de pintar enquanto leem –, o site também nos oferece novas experiências estéticas e de fruição na medida em que conecta e aproxima textos e cores, promovendo o exercício de uma leitura “sinestésica” em que os leitores devem analisar a maneira como as cores podem adicionar, reforçar ou alterar os sentidos das microficções. Em outras palavras, ao visitar o site idealizado por Spalding, os leitores devem analisar como o conteúdo verbal (os minicontos escritos) e o conteúdo não verbal (as cores) se relacionam, pois só através desta análise poderão interpretar as histórias dos microtextos, acessar as informações implícitas e completar as lacunas narrativas deixadas pelos minicontistas. Você consegue perceber como os multiletramentos – a leitura das múltiplas linguagens – são importantes para que o leitor experimente e mergulhe de fato na proposta digital dos Minicontos Coloridos?

Exemplo de miniconto colorido, de Marcos de Andrade

POTENCIALIDADES PEDAGÓGICAS

Sinteticamente, poderíamos concluir dizendo que trabalhar com minicontos (verbais impressos e digitais multissemióticos) em sala de aula é uma empreitada interessante porque as microficções proporcionam o desenvolvimento de nossas competências leitoras. No que diz respeito ao amadurecimento dos (multi)letramentos dos estudantes, o miniconto seria um relevante instrumento educacional uma vez que exige do leitor sofisticadas habilidades de leitura e clama por uma participação ativo-responsiva, ou seja, solicita um posicionamento ativo/crítico do aluno e permite que ele exercite muitas capacidades de leitura, como a ativação de conhecimento de mundo – capacidade essencial para o entendimento dos minicontos, pois só através desse resgate de saberes o leitor poderá completar as aberturas da história –; a análise dos elementos linguísticos (palavras, sinais de pontuação, figuras de linguagens etc.) que compõem o texto e funcionam ao mesmo tempo como itens estéticos e também como micropistas textuais que guiam o leitor até as interpretações mais coerentes; a formulação de hipóteses e de inferências (deduções e entendimentos sobre a trama); a elaboração de apreciações estéticas e de posicionamentos críticos como uma forma de responder ao texto – o leitor gosta (ou não gosta) da história? Por quê? Ele percebe as críticas e provocações realizadas pelos minicontistas? Concorda com elas? –; e, claro, a interpretação das múltiplas linguagens, no caso dos minicontos digitais.

Com relação aos letramentos literários, cremos que os minicontos (impressos e digitais) são cativantes textos contemporâneos que poderiam introduzir a literatura nas salas de aula de maneira divertida e atrativa, ampliando o repertório e as práticas literárias dos estudantes e fazendo com que se sintam motivados a ler mais dentro e também fora das telas. Por serem tão provocativos e retratarem temas tão diversos, levar os minicontos até as aulas de língua portuguesa também seria uma forma de os alunos descobrirem mais sobre o mundo e sobre si mesmos, desenvolvendo assim suas subjetividades. Sendo o miniconto um gênero extremamente breve, acreditamos ainda que introduzi-lo na escola e garantir sua leitura em sala de aula – ou seja, garantir que os alunos “degustem” diretamente as obras – seriam tarefas que poderiam ser facilmente realizadas pelas instituições, sem o pretexto de que os textos literários são muito longos para que possam ser lidos pelos alunos dentro do espaço e tempo escolares.

DICAS DE LEITURA

  1. Minicontos Impressos
  • Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004, organizado por Marcelino Freire
  • Ah, é? (Editora Record, 1994), de Dalton Trevisan.
  • Adeus conto de fadas (Editora 7 Letras, 2006), de Leonardo Brasiliense
  1. Minicontos Digitais

REFERÊNCIAS

[1] KLEIMAN, Angela B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p. 1-25, Dezembro, 2007. Disponível em: <http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/viewFile/242/196>.

[2] SPALDING, Marcelo. Os cem menores contos brasileiros do século e a reinvenção do miniconto na literatura brasileira contemporânea. 2008. 81p. Dissertação de mestrado – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2008.

[3] SPALDING, Marcelo. Pequena poética do miniconto. Digestivo Cultural. 2007. Disponível em :<https://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2196&titulo=Pequena_poetica_do_miniconto>.

[4] PAGNAN, Celso Leopoldo. Literatura digital: análise de ciberpoemas. Travessias, Cascavel, PR, Campus de Cascavel/Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, v. 11, n. 3, p. 308-325, Setembro/Dezembro, 2017.

As mulheres dos estudos literários: uma conversa com Vera Lúcia de Oliveira

atravessar cada corpo
tocar o espesso do osso
que é nosso e do outro
estar onde se padece
com fúria de paciência
estar onde se lavra uma horta
onde se lava uma roupa
onde se reza e se cura uma dor
estar onde se nasce e onde se fenece
e ser nesse morar e estar nesse morrer

Vera Lúcia de Oliveira, em Minha língua roça o mundo

Há um ano conheci pessoalmente Vera Lúcia de Oliveira, durante o encontro do Mulherio das Letras Europa. Ali conheci seu comprometimento com o Mulherio das Letras, mas também sua poesia, sua atuação como professora e pesquisadora, seu empenho político. Essa conversa surge então a partir desse encontro e da admiração que tenho por seu trabalho. Ela é uma das mulheres dos Estudos Literários que nos inspiram força e coragem.

Vera Lúcia é poeta e publicou, entre diversas obras em português e em italiano, o livro A chuva nos ruídos (vencedor do Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras de 2005) e seu livro mais recente, Minha língua roça o mundo, de 2018. Também é docente e pesquisadora da Universidade de Perugia (UNIPG), na Itália, e publicou ensaios acadêmicos, entre eles sua tese de doutorado, que deu origem ao livro Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, de 2002. É ainda organizadora de diversas antologias publicadas no Brasil e na Itália e tradutora de poesia brasileira para a língua italiana.

Vera Lúcia de Oliveira durante Encontro do Mulherio das Letras Europa 2018 [fonte: acervo].
Marca Páginas: Vera, nós nos conhecemos em um encontro do Mulherio das Letras na Europa, em 2018. Nessa ocasião, você fez uma apresentação muito interessante sobre o surgimento do Mulherio, refletindo sobre quais eram as intenções do projeto e como ele foi se organizando desde o início. Você poderia explicar para o Marca Páginas o que é o Mulherio das Letras e contar um pouco da história de como ele foi criado no Brasil?

Vera Lúcia: Essa pergunta requer um ensaio para respondê-la e tenho um texto publicado com o título “O Mulherio das Letras”[1], onde tento traçar os elementos de novidade desse movimento, que é um dos fenômenos culturais mais singulares e interessantes da atualidade brasileira. Nasceu quase espontaneamente, a partir de uma consideração informal feita pela escritora Maria Valéria Rezende, de que as mulheres que atuam no mundo das letras no país deveriam se unir mais e trabalhar em conjunto, já que continuam a ser discriminadas em amplos setores da sociedade. De fato, a maior parte das obras literárias publicadas pelas grandes editoras, são de escritores e os prêmios literários são quase sempre atribuídos aos mesmos, e raramente as colegas mulheres conseguem os mesmos espaços e a mesma visibilidade, não obstante a qualidade das obras de autoria feminina. Foi, portanto, a partir dessa constatação que nasceu a ideia de organizar um evento em João Pessoa, cidade em que vive Maria Valéria Rezende, evento que pudesse congregar as escritoras e as mulheres em geral que atuam no mundo das letras. Ele foi um grande sucesso e isso fez com que rapidamente essa rede de mulheres intelectuais, professoras, editoras, ilustradoras, jornalistas, artistas plásticas, compositoras, etc., encontrassem, no grupo “Mulherio das Letras”, um canal de comunicação, de troca de ideias e experiências, de publicações. Hoje há muitos grupos, também regionais, como o Mulherio das Letras de São Paulo, de Brasília, do Paraná, e assim por diante, onde as mulheres se unem para promover eventos de interesse e importância, como o que realizamos em Perugia, em outubro de 2018.

Marca Páginas: Hoje, vemos de fato que o Mulherio das Letras cresceu muito e ganhou novos espaços para além do Brasil. Seus desdobramentos estão presentes na Europa, nos Estados Unidos, entre outros lugares. Como você entende essa expansão do projeto?

Vera Lúcia: Entendo essa rápida expansão por uma exigência que as mulheres tinham de formar uma rede de contatos e intercâmbios. Nós aqui na Europa, por exemplo, estamos de certa forma isoladas. Inseridas, sim, nos vários países, mas distantes do Brasil. Somos estrangeiras aqui e todas nós vivemos experiências similares, de inicial dificuldade de inserção nas respectivas realidades culturais, de estranhamento, às vezes de nostalgia e solidão, às vezes simplesmente de vontade de falar com alguém na própria língua. Então, esse segundo encontro (o primeiro se realizou em 2017, em Paris) deu muito certo, para mim foi intenso e bonito e conheci mulheres batalhadoras, que estão fazendo e acontecendo onde quer que estejam. Escrevem, publicam, organizam feiras literárias, fundam editoras, são realmente ativas.

Marca Páginas: Você é poeta e também docente na Universidade de Perugia, ou seja, duas atuações bastante relacionadas à exposição pública em ambientes literários e acadêmicos. Enquanto mulher, de que maneira você acha que seu gênero impactou e impacta nas suas relações profissionais?

Vera Lúcia: No meu caso, até hoje nunca me senti discriminada como mulher no ambiente de trabalho aqui na Itália. Mas, com certeza, em outros contextos, sim, muitas vezes até no dia a dia, com certas piadinhas sobre o gênero feminino que todas conhecemos.

No Brasil, no entanto, sinto que há mais misoginia e machismo e que a falta de respeito é sentida até andando na rua, com homens que se sentem no direito de fazer comentários sobre como nos vestimos. Quando era adolescente, e tímida, tinha horror desses comentários e um dia dei com a bolsa na cabeça de um jovem que, além do comentário, me tocou o seio. Voltei-me na hora e bati a bolsa com tanta força na cabeça que ele saiu até meio zonzo. Desde aquele dia, aprendi a me defender nessas situações.

No âmbito da escrita, sinto que para uma mulher é mais difícil, porque o mundo das letras ainda é predominantemente masculino. É difícil ver uma mulher reitora, por exemplo, ou diretora de jornal.

Vera Lúcia de Oliveira [Fonte: acervo].
Marca Páginas: A experiência de dar aulas sobre literatura brasileira e portuguesa em uma universidade estrangeira certamente também é um tema muito interessante. Como docente e pesquisadora, o que você teria a dizer sobre a recepção da literatura brasileira no exterior atualmente?

Vera Lúcia: Gosto muito do meu trabalho, gosto da pesquisa e da relação com os alunos. Na verdade, desde pequena queria ser escritora e comecei a escrever cedo. Mas entendi que é muito difícil viver de literatura e ainda mais se o gênero que se escolhe é o poético. Então, pensei que a forma mais inteligente de ficar no mundo da escrita, de ser escritora, era escolher um tipo de trabalho que me deixasse próxima à literatura. Optei pelo ensino universitário, onde aprendi e aprendo muito todos os dias. Além disso, vivendo longe do Brasil, ensinar cultura e literatura brasileira é como estar próxima ao meu universo, onde reúno dois mundos, aliás três, porque ensino também literatura portuguesa. Estou dentro e fora, ao mesmo tempo, desses países, e tenho por isso uma dupla perspectiva.

Quanto à recepção, não se pode pensar que na Itália todos conheçam nossos escritores. Sabem pouco e, sobretudo nos últimos anos, depois do chocante impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Brasil perdeu prestígio. Durante os governos Lula e Dilma o Brasil era notícia nos jornais, porque o país cresceu, a economia se expandiu, havia a presença do governo em encontros internacionais, a projeção era enorme. Isso fez com que aumentasse o interesse pela língua portuguesa e pela literatura do nosso país, o número de alunos cresceu, as universidades italianas passaram a oferecer mais bolsas para os estudantes daqui, porque, de fato, o mercado começou a pedir profissionais na área luso-brasileira. Agora, perdemos tudo isso, infelizmente. Às vezes percebo que quem vive no Brasil não tem a percepção do que perdemos em termos de interesse e prestígio no exterior. Claramente isso teve um impacto, porque os alunos diminuíram em praticamente todos os países europeus e começaram a cortar cadeiras de ensino de literatura brasileira.

Marca Páginas: Minha última pergunta é, na verdade, uma pergunta que tenho feito a mim mesma e, por isso, gostaria de criar aqui uma troca de pontos de vista. São tempos difíceis no mundo e, sobretudo, no Brasil. A ascensão de um governo conservador e despreparado politicamente para assumir essa responsabilidade nos deixa bastante preocupadas com o rumo do nosso país. Além disso, vemos na Itália e em outros países exemplos dessa mesma onda de conservadorismo retrógrado. Na sua opinião, enquanto poeta e professora, o que é possível se fazer em um momento como esse? Você acredita no poder de esclarecimento e transformação que a educação e a literatura possuem?

Vera Lúcia: Como disse acima e você mesma confirma, a situação é complexa e no momento o nosso trabalho é ainda mais difícil. Os universitários são alunos que se informam mais e é necessário falar de forma aberta e crítica sobre o que acontece em nosso país. Por outro lado, entendo que a literatura tem um fundamental papel humanizador e ler os nossos escritores contemporâneos é ler o Brasil. Faço o meu trabalho com responsabilidade e sei que podemos fazer muito no sentido de incentivar os alunos a desenvolver o senso crítico, a ver mais, a se interessar mais pelo mundo, a se dedicar e a estudar os fenômenos que nos envolvem, porque o mundo hoje é de fato um corpo em que tudo está interligado. O que acontece no Brasil tem reflexo aqui na Itália, o que acontece na África tem reflexo no Brasil, e assim por diante, não se pode mais falar de fenômenos isolados. A onda conservadora retrógrada, como você bem define, é contagiosa. Claramente, ela é fruto de um poder econômico e político, que cerceia e censura, nos faz perder direitos adquiridos, discrimina, simplifica a visão de mundo das pessoas, tenta anular as diferenças ou vê-las como algo que deve ser extirpado. Um intelectual tem que estar presente, destrinçar esses mecanismos de exclusão e repressão.

* Para mais informações sobre Vera Lúcia de Oliveira: <http://www.veraluciadeoliveira.it>.

[1] “O Mulherio das Letras”. Em Revista de Letras Norte@mentos, Universidade Federal de Mato Grosso, Sinop, vol. 11, 2018, pp. 47-61. Disponível em: <http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/norteamentos/article/view/3252>.

Votem em branco e vencerá a cultura, por Pier Paolo Pasolini (tradução Cláudia Alves)

Votem em branco e vencerá a cultura*

Pier Paolo Pasolini

Tradução: Cláudia Alves

Caros amigos,

Hoje vocês votam o Prêmio Strega. Admito que não é algo de grande importância, embora eu também não ache que tenha algo de “cômico”, como diz incompreensivelmente certo jornal romano da tarde.

Se não é importante, é indicativo. Pelas seguintes razões:

  1. Os literatos italianos têm, junto à opinião pública, uma péssima fama: são sempre vistos inevitavelmente em uma chave humorística, como personagens sedentários, fofoqueiros, mundanos, preguiçosos, aquiescentes, vaidosos, esnobes, medíocres e também mesquinhos. Em resumo, um tipo de peso morto na sociedade italiana, um tipo de setor do zoológico ou do folclore, ainda que não sejam da pior espécie (por serem inofensivos).
  2. Objetivamente, os literatos italianos traíram certas ilusões, nascidas na década passada, quando, em determinado momento, parece que substituíram os padres como guias espirituais. Com a queda da potencial hegemonia comunista – à qual se devia até então o sucesso literário -, trata-se na realidade de um novo retorno à ordem. E não se pode dizer que o espírito de humor, pelo qual todo jornalista médio é tomado ao falar dos literatos em geral, seja totalmente sem fundamento.
  3. Sobre esse ambiente familiar (provinciano) da literatura italiana, começa a se formar um novo momento histórico, relacionado à relação entre literatura e opinião pública, quando – após um breve e confuso intervalo de tempo – vai se substituindo a tendência cultural hegemônica do PCI (ou seja, a política do engajamento, já abandonada pelo próprio PCI) por uma nova hegemonia, a da indústria cultural. Alguns manager tomaram o lugar de Togliatti ou de Alicata. Mas Togliatti e Alicata, mesmo que cínicos, diplomáticos, pragmáticos, eram ainda homens de cultura. Foram os últimos representantes daquele tipo de intelectual (ao qual, afinal, toda a minha geração pertence) que fora descrito por Tchekhov e que Lenin conhecera e analisara. O intelectual humanista, de nascimento ou de origem provinciana e camponesa – pré-industrial.

Em geral, os manager da indústria cultural não são, por sua vez, homens de cultura. E justamente por isso – mesmo que não sejam mais jovens do que nós – pertencem a uma nova espécie de intelectual: o intelectual que nem Tchekhov, nem Lenin conheceram. O intelectual não mais humanista, não mais humano, eu diria. Típico fenômeno de uma civilização técnica, que está mercantilizando a cultura. Ou seja, a indústria cultural só pode ser dirigida por quem está fora daquilo que historicamente ainda é, para nós, a cultura.

Por tais razões, digo a vocês, caros colegas literatos, que chegou o momento de se fazer um exame de consciência não novecentista.

A hegemonia cultural de esquerda acabou, com seus mitos e seus valores? Pois bem. Está nascendo daí uma outra hegemonia, aquela da indústria cultural, com seus mitos (totalmente cínicos e materiais) e seus valores (inevitavelmente falsos)? Pois bem. Isso quer dizer que devemos agir fora de qualquer forma hegemônica. Aqui me vem espontaneamente uma palavra que odeio, porque se tornou senhal: autogestão. O literato italiano deve finalmente se politizar por meio de sua própria decisão. Com isso não quero dizer que ele deva fazer política, mas sim que deve se inventar e levar adiante uma política cultural que reivindique sua autonomia e sua liberdade.

O que hoje ameaça essa autonomia e essa liberdade das esquerdas, não de maneira indireta e no final das contas civil (a discussão e o debate aconteciam em um nível humanístico comum), é a fúria produtiva e consumista de uma cultura de outra natureza, que acabará por desfigurar completamente as características literárias, mesmo que modestas, da nossa Nação provinciana, e distorcer todos os seus valores, determinando-lhes novas hierarquias.

Como tal ameaça é grave e iminente – e não distante, a ponto de observá-la com o mesmo ceticismo de costume, considerado tão cômico pela opinião pública -, basta observar alguns dos casos literários-humanos criados recentemente durante a campanha eleitoral do Prêmio Strega, feita justamente sob a brutal sede de sucesso de uma editora. (Penso de maneira explícita em alguns críticos de revistas, amigos meus, que ainda assim quero amar.) 

Em resumo, a brutalidade da indústria cultural não deforma apenas os valores literários, mas chega a deformar também as consciências e a degenerar a humanidade. Nada além de guias espirituais. Fomos reduzidos, mais uma vez, a bobos: não a bobos da corte (onde pelo menos existia a alternativa do outro, quer dizer, da pobreza e da realidade), mas a bobos do neocapitalismo (onde o outro é formado pelo consumidor e pela irrealidade).

Votação do Prêmio Strega, em 1968. L’occhio del gatto, de Alberto Bevilacqua, foi o livro vencedor.  

Tudo isso me faz pensar, em conclusão, que o Prêmio Strega não é aquela besteira sem importância – assembleia de pura vaidade – que a indiferença política (franja podre do humanismo) quer nos fazer acreditar através da imprensa conservadora. Não: o caso do Prêmio Strega é um caso de consciência e diz respeito não apenas ao futuro pessoal de um único literato enquanto literato, mas também ao seu futuro enquanto homem e à sua função pública de cidadão.

A batalha perdida com o Prêmio Strega (e não posso ser otimista aqui) será uma batalha perdida não digo pela literatura italiana, mas pela cultura italiana. Significa que de agora em diante os livros serão escritos por certos editores; significa que tudo aquilo que uma cultura literária poderia oferecer a uma nação será totalmente negativo, pois irá se constituir de produtos medianos de consumo. Tudo aquilo que faz parte da real função de um poeta, mesmo que menor (protesto, contestação, invenção, inovação, não reconhecimento, problemática, escândalo, religiosidade, dúvida, maldição, vitalidade), irá desaparecer.

Portanto, caros amigos jurados, deixem que as pessoas que não têm nada a ver com literatura, com cultura e com qualquer moral inclinada à verdade votem a favor do livro que o editor e os organizadores do prêmio, já evidentemente do seu lado, querem que vença. Mas vocês, homens de cultura, votem em branco. Este seria o primeiro protesto coletivo da sociedade literária italiana, seria o seu primeiro título de mérito coletivo.

Na verdade, seriam suficientes os 50% mais 1 dos votos brancos para que a literatura italiana – representada, infelizmente, em parte e arbitrariamente pelo júri do Strega – conseguisse sua primeira vitória, manifestasse pela primeira vez a sua decisão de ser dona de si mesma e a sua escolha de lutar por uma causa que é evidentemente, ainda, a causa correta.

* Publicado no jornal Il Giorno, em 4 de julho de 1968. Integra também a coletânea Saggi sulla politica e sulla società, na coleção I Meridiani (Milão: Arnaldo Mondadori Editore, 1999), pp. 159-162. Para mais informações sobre a participação de Pasolini no Prêmio Strega de 1968, confira o post: https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/10/08/em-nome-da-cultura-me-retiro-do-premio-strega-por-pier-paolo-pasolini-traducao-claudia-alves/     

   

Beyoncé: uma aproximação ao feminismo e à literatura negra, por Cláudia Alves e Danielle Lima

Está disponível desde o mês passado, na Netflix, o documentário Homecoming (2019), dirigido e estrelado por Beyoncé Knowles-Carter. O filme, que intercala cenas de dois momentos diversos do mesmo evento, é registro de como foi a concepção e a execução do show que a cantora realizou no festival norte-americano Coachella, em 2018. Beyoncé foi a primeira mulher negra a se apresentar como atração principal do festival, um dos mais prestigiados do mundo.

Diante da oportunidade, ela soube aproveitar muito bem a ocasião para conjugar sua música e as pautas identitárias com as quais ela está envolvida. Durante todo o show, ela é acompanhada por uma banda de estudantes universitários, isto é, um tipo de banda bastante tradicional nas universidades dos Estados Unidos em que os estudantes tocam e dançam em festivais e competições. Mas a banda universitária concebida por Beyoncé para lhe acompanhar possuía uma particularidade: todos os integrantes eram estudantes negros.

Cena de Homecoming (2019)

Nos trechos do documentário em que a cantora conta como chegou a tal ideia e como foram as seleções para a montagem do espetáculo, Beyoncé explica que sua intenção era dar destaque ao fato de que jovens negros também podem ocupar esses lugares, tanto o palco de um show monumental em um grande festival de música, quanto universidades – e, obviamente, quaisquer outros espaços que eles quiserem. Ela declara, em determinado momento do filme: “Eu queria que todas as pessoas que já foram rejeitadas por causa da sua aparência se sentissem naquele palco”.

Apesar de essas questões serem centrais em Homecoming, não é novidade o envolvimento da cantora com pautas identitárias. Em 2016, por exemplo, seu álbum Lemonade tornou-se um hino da música pop. Partindo de experiências pessoais recentemente vividas por ela, Beyoncé compôs e cantou canções que exaltavam a liberdade e a força das mulheres. Sua mensagem chegou de fato a esse público, gerando uma onda de admiração por seu trabalho e reforçando a ideia de que Beyoncé é um fenômeno. Em 2017, ao participar de outro grande evento americano, o Super Bowl, a cantora levantou polêmicas por causa da performance do single Formation. Durante o show, denunciou a truculência policial contra as vidas negras, fazendo referência inclusive ao famoso partido militante americano The Black Panthers[1]. Outro momento marcante de sua recente carreira foi o lançamento da canção “Apes**t”, cujo clipe, divulgado nas redes digitais em 2018, mostra a cantora com o seu marido, o cantor e compositor Jay-Z, e bailarinas e bailarinos negros, no Museu do Louvre, na França. A crítica que perpassa todo o vídeo é em relação a esse local, expoente máximo das artes plásticas no mundo, onde se vê muito pouco da arte que representa ou é feita por negras e negros, escancarando assim para o mundo inteiro (o vídeo teve milhares de visualizações em pouquíssimo tempo) mais uma das desigualdades que existe entre pessoas brancas e negras.

Cena de “Apes**t” (2018), gravado no Museu do Louvre

Ou seja, com o passar dos anos fica cada vez mais explícito como existe um aspecto político e empoderador de pessoas negras que norteia os trabalhos que Beyoncé vem desenvolvendo. Além de compor vídeos e músicas que criticam diretamente a desigualdade de gênero e raça, ela está empenhada em mostrar ainda como é possível que pessoas negras cheguem a posições nas quais estamos acostumadas a ver somente pessoas brancas. O próprio fato de Beyoncé ser uma mulher negra e ter chegado aonde chegou já é algo que estimula e mostra, de alguma forma, que é possível que outras mulheres negras também cheguem aonde elas quiserem chegar; afinal, até pouco tempo atrás, elas nunca tinham sequer visto uma mulher negra ocupando esses lugares.

É preciso, entretanto, fazer a ressalva de que Beyoncé é parte de uma engrenagem cultural em que bilhões de dólares circulam diariamente. Isto é, a cantora é também uma grande marca que gera lucros, o que estimula o consumo de mercadorias, a exploração de mão de obra e o aumento das desigualdades sociais. Nesse sentido, critica-se a capitalização que ela acaba operando em cima das pautas identitárias que ela abraça. A teórica feminista bell hooks, em seu texto “Moving beyond the pain”[2], de 2016, já alertava para esse aspecto da obra de Beyoncé quando da explosão do álbum Lemonade. Para ela, “ganhar dinheiro não tem cor” e o que a cantora estaria fazendo seria tratar corpos negros como mercadorias, o que, historicamente, não é nem um pouco revolucionário. Além disso, a intelectual critica o feminismo de Beyoncé quando ela apenas defende direitos iguais para homens e mulheres ao invés de lutar pelo fim da dominação patriarcal e capitalista. Em outras palavras, a autora defende que é preciso problematizar a luta de gênero e raça que Beyoncé pratica se essa luta não quiser alterar o verdadeiro poder do patriarcado, o qual sustenta e perpetua as desigualdades.

A discussão proposta por bell hooks parte de questões que estão sendo debatidas pelo feminismo há algum tempo, sobretudo pelo feminismo negro. Seguindo tal viés teórico, o trabalho de Beyoncé acabaria por representar, em geral, um empoderamento da mulher negra que é vazio diante da dominação patriarcal e capitalista. Nesse sentido, hooks chama atenção para o fato de que gênero, cor, classe social e sexualidade são particularidades que precisam ser interseccionadas quando falarmos em feminismo. Essa questão extremamente importante tem sido pensada por diversas autoras negras e feministas, como Angela Davis e Audre Lorde. Elas também defendem, em linhas gerais, que só a partir do reconhecimento dessas particularidades é que será possível dizer que o feminismo é uma luta pela igualdade de todas as mulheres.

A intenção desse post é, por sua vez, além de contextualizar minimamente todas essas questões, iniciar uma série de posts sobre feminismo negro e sugerir leituras para quem quiser se aprofundar no tema. E é a própria Beyoncé que nos dá inspiração para começar essa lista de sugestões, a partir de algumas citações[3] de escritoras negras e feministas que aparecem ao longo de seu documentário. Apesar das inúmeras críticas que podem ser feitas à cantora, é preciso reconhecer que seu trabalho de representatividade e de divulgação da cultura negra tem uma potencialidade imensa. Que tal aproveitar esse incentivo para lermos mais escritoras negras?

Toni Morrison, prêmio Nobel de literatura

1) A citação que abre o documentário, “If you surrender to the air, you can ride it” / “Se você se render ao ar, você pode voar”, é da escritora estadunidense Toni Morrison, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura, em 1993. No Brasil, vários de seus livros já estão traduzidos, inclusive o mais conhecido, o romance Amada.

2) Alice Walker é uma escritora de prosa, poesia e ensaios, também nascida nos Estados Unidos. Com sua obra mais famosa, A cor púrpura, de 1982, ela ganhou prêmios importantes, como o National Book Award e o Pulitzer. Esse livro está traduzido para o português.

3) Apesar de Danai Gurira ser mais conhecida por sua personagem Michonne, da série The Walking Dead, a atriz estadunidense também escreve peças de teatro; entre elas, Eclipsed, que foi encenada na Broadway.

4) “Without  community there is no liberation” / “Sem comunidade, não há libertação”. A frase da poeta e ensaísta Audre Lorde é um importante lembrete de que precisamos pensar e agir sempre coletivamente, pois individualmente não seremos jamais livres. Em breve, faremos um post especial sobre ela, mas já deixamos a dica de que seu livro de ensaios, Irmã outsider, está prestes a ser lançado no Brasil.

5) Outra gigante literária que aparece em Homecoming é Maya Angelou. Apesar de sua poesia ainda não estar traduzida no Brasil, sua obra-prima, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, assim como Mamãe & Eu & Mamãe, são alguns de seus livros em prosa publicados em português. Além disso, se você quiser conhecer um pouco mais sobre sua vida e produção artística, também está disponível na Netflix o documentário Maya Angelou: And Still, I Rise.

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie

6) Fechamos essa lista com uma indicação de ouro: Chimamanda Ngozi Adichie. A escritora nigeriana está presente tanto no álbum Lemonade, quanto em Homecoming. Em ambos, há trechos da palestra “Sejamos todos feministas”[4], de 2012, que se tornou um texto-guia para a introdução ao feminismo no mundo todo. No Brasil, a escritora é um fenômeno e seus livros podem ser encontrados facilmente. Americanah, Hibisco roxo, Meio sol amarelo e No seu pescoço, além do livro introdutório Para educar crianças feministas, são alguns dos títulos já publicados em português.

[1]  Beyoncé, dançarinas e dançarinos vestiram figurino semelhante ao que os militantes usavam nos anos 1960. Além disso, a cantora mencionou o movimento Black Lives Matter.

[2] O texto completo pode ser lido em: http://www.bellhooksinstitute.com/blog/2016/5/9/moving-beyond-pain. Uma tradução para português está disponível em: https://www.geledes.org.br/mover-se-alem-da-dor-bell-hooks/

[3] Todas as citações que aparecem no filme, não apenas as literárias, estão elencadas nessa publicação, em inglês: https://www.bustle.com/p/all-the-quotes-in-homecoming-show-beyonces-commitment-to-recognizing-great-black-thinkers-17044727

[4]  A palestra está disponível online e é possível assisti-la com legendas em português: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_feminists