Gonçalves Dias na bibliotequinha antropofágica?

As rãs, a antropofagia e o índio de lata de bolacha

 

O que as rãs têm a ver com o Movimento Antropofágico?

 

Um grupo de amigos se reuniu para jantar em um restaurante especializado em rãs. Quando o prato chegou, um dos amigos se levantou e começou a brincar, fazendo um elogio das rãs. Citando autores imaginários, ele concluiu que esses animais faziam parte da linha da evolução biológica do ser humano. A companheira desse homem entrou na brincadeira e afirmou que, então, ao comerem as rãs, os amigos eram uns quase antropófagos. O homem que fez o elogio era Oswald de Andrade. A mulher que deu corda para a brincadeira era Tarsila do Amaral. E teria sido assim que, em 1928, começou o Movimento Antropofágico. [1]

Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade: o que começou como uma brincadeira em um restaurante se transformou no Movimento Antropofágico

 

Esse movimento, basicamente, propunha a combinação de estéticas estrangeiras, de modernização, com expressões brasileiras, nativas, para que, assim, fossem produzidas “coisas novas, coisas nossas”. [2] Os elementos estrangeiros deveriam ser assimilados de forma crítica, deveriam ser consumidos e “deglutidos”, sendo que partes deles seriam aproveitadas na formação da cultura nacional. Daí a relação com a antropofagia que era praticada por alguns indígenas brasileiros e que pode ser entendida como a ingestão de inimigos com a finalidade de se apropriar de suas qualidades, em um movimento de incorporação de características do outro, mas sem a perda da independência, da autonomia. Então, de forma metafórica, para esse movimento de vanguarda, nós deveríamos devorar as influências dos “inimigos” externos e absorver, de forma crítica, o que fosse positivo para a formação da nossa cultura.

O que começou como uma brincadeira em um restaurante ficou sério e rendeu, entre outras coisas, duas fases da Revista de Antropofagia. Oswald pretendia ainda organizar o Primeiro Congresso Mundial de Antropofagia e, durante a preparação das teses que seriam discutidas nesse congresso, fez um levantamento do que chamou de “os clássicos da antropofagia”, como André Thévet, Jean de Lèry, Hans Staden e, principalmente, Michel de Montaigne, autor do ensaio “Dos Canibais”. [3] Oswald queria formar uma “bibliotequinha antropofágica” com esses clássicos e outros textos, como o recém-publicado Macunaíma, de Mário de Andrade.

Página de uma edição da obra de Hans Staden, mostrando uma cena de canibalismo. Esse aventureiro alemão, em seu livro, relata as experiências que teve ao viajar para o Brasil em meados do século XVI. Ele conta, inclusive, que, por pouco, não foi devorado em um ritual antropofágico…

 

O congresso e a bibliotequinha ficaram apenas nas ideias: o grupo dos antropófagos se dissolveu por conflitos amorosos entre seus integrantes, havendo uma “debandada geral”. [4]

Apesar de esses planos não terem sido concretizados, Oswald, antes dessa dissolução, publicou o conhecido “Manifesto Antropófago”, no primeiro número da Revista de Antropofagia, em 1928. E um dos pontos questionados nesse manifesto era o “indianismo na sua feição ufanista e romântica”. [5] Pelo menos dois trechos do manifesto de Oswald deixam esse ponto evidente:

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A pesquisadora Ana Beatriz Sampaio Soares Azevedo [6] comenta que, neste primeiro aforismo mencionado, Oswald, em um golpe só, ataca tanto José de Alencar quanto o compositor Carlos Gomes (que escreveu a famosa ópera O Guarani). Segundo ela, os dois criticados, para Oswald, “seriam os responsáveis por colocar em cena o famigerado ‘índio vestido’, cheio de ‘bons sentimentos portugueses’, ou seja, um índio aculturado, domesticado, tornado bom selvagem”

Em relação ao segundo aforismo destacado, a pesquisadora também comenta que Oswald critica e ironiza o Indianismo do Romantismo brasileiro: esse “índio de tocheiro” seria um personagem construído de uma forma alienada, alinhada aos ideais do colonizador. 

Ana Beatriz Azevedo também comenta que Oswald “cita criticamente em seus textos O Guarani de José de Alencar e a poesia de Gonçalves Dias”. Além disso, ela nos lembra, inclusive, que Oswald fez uma paródia da “Canção do Exílio”, conhecido poema de Gonçalves Dias.

Um trecho do poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, e um trecho do poema “Canto de regresso à pátria”, de Oswald de Andrade.

 

Essa restrição de Oswald em relação aos românticos também foi explorada por Haroldo de Campos. [7] Ele comenta que, em “A Marcha das Utopias”, um texto teórico e mais maduro, Oswald retomou um trecho do “Manifesto Antropófago” (o segundo aforismo mencionado neste texto) para depois mostrar a diferença entre o “seu índio” e o dos românticos. Nas palavras de Haroldo de Campos, o indígena na visão de Oswald:

nada tinha a ver com “os índios conformados e bonzinhos de cartão-postal e de lata de bolacha”. O “índio” oswaldiano não era o “bom selvagem” de Rousseau, acalentado pelo Romantismo e, entre nós, “ninado pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias”. Tratava-se de um Indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des cannibales), de um “mau selvagem”, portanto, a exercer sua crítica (devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado.

Esse trecho de Haroldo de Campos é particularmente significativo por indicar que, de alguma maneira, a postura de Oswald em relação aos românticos se manteve constante, ainda que a relação desse escritor com a antropofagia tenha sido inconstante: depois da já comentada “debandada geral” do grupo dos antropófagos, Oswald se envolveu com a militância política marxista e renegou o que chamou de “sarampão antropofágico”, uma doença infantil, que atingiu indistintamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista. Por volta de 1945, Oswald rompeu com a orientação marxista e se dedicou ao estudo da Filosofia. Nesse período, ele retomou suas intuições apresentadas tanto no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de 1924, quanto no “Manifesto Antropófago”, de 1928, e as desenvolveu, elaborando a antropofagia como uma concepção filosófica de mundo. [8] 

Essa breve retomada da trajetória (inconstante) de Oswald em relação à antropofagia e da sua postura (aparentemente constante) em relação ao Indianismo romântico serve aqui como ponto de partida para uma provocação: será que o índio antropofágico de Oswald realmente não tem nada a ver com o índio do Romantismo? Ou, mais especificamente, não tem nada a ver com o índio antropofágico de Gonçalves Dias? Talvez valha a pena “experimentar” esse poeta romântico com um pouco mais de calma, antes de simplesmente o expulsar do banquete antropofágico…

Quem é Gonçalves Dias na fila do Indianismo?

 

Retrato de Gonçalves Dias (aproximadamente 1855)

 

O Indianismo foi um movimento de nacionalismo cultural mais nuançado e influente em seu contexto histórico e político do que normalmente tem sido considerado pela crítica. Isso é o que sugere David Treece. [9] Esse pesquisador britânico desenvolveu seu argumento a partir da identificação de um paradoxo: ao mesmo tempo em que os indígenas eram massacrados em proporções genocidas, eles ocupavam um local de destaque na tradição de pensamento nacionalista no Brasil, sendo celebrados por escritores, artistas e intelectuais.

No entanto, o pesquisador defende que esse paradoxo (ou ironia) não passou despercebido pelos escritores indianistas. Pelo contrário, esse ponto teria ocupado um lugar central nas reflexões que alguns desses autores faziam sobre a formação do Brasil como um Estado independente. Esses escritores, inclusive, levavam essa ironia em consideração quando discutiam questões relacionadas àquelas pessoas que ainda eram desprovidas de direitos de cidadania no Brasil, como os próprios indígenas, mas também os escravizados negros. Nesse sentido, David Treece chama a atenção para um fato que tem sido quase ignorado: o Indianismo foi um movimento artístico, mas foi também uma arena de debate sociopolítico. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), por exemplo, era não só um centro de pesquisa fundado por Dom Pedro II, mas também o principal fórum que articulava a relação entre a esfera política e o Indianismo. 

Para Treece, além de ser incorreto assumir que o Indianismo era desligado do debate sociopolítico, é ainda menos correto considerar que a comunidade literária era homogênea e simplesmente expressava a mentalidade da elite imperial. Na verdade, a escritura indianista exibia diversas (e muitas vezes até contraditórias) perspectivas.   

Partindo, então, desse ponto o autor propõe uma análise que ultrapassa uma literatura crítica que comumente assume que um único escritor, José de Alencar, poderia representar de forma suficiente um movimento que durou mais de um século. Treece destaca o caráter dinâmico e complexo do Indianismo, e afirma que, se por um lado, houve um romantismo complacente ou conservador em relação ao domínio da burguesia agrária após a Independência (representado pelo próprio Alencar), houve também, por outro lado, intelectuais e artistas que eram marginalizados dos centros políticos e econômicos da vida imperial, o que os levava a se identificarem com os setores mais oprimidos da sociedade, como os indígenas e os escravizados africanos. É justamente como membro desse segundo grupo que Treece enxerga Gonçalves Dias

O pesquisador afirma que as obras de Gonçalves Dias e de seu contemporâneo menos famoso, Teixeira e Souza, formariam uma tendência dissidente no interior do quadro predominantemente conservador do movimento romântico. Para Treece, dentro do limitado espaço político disponível na época, esses dois autores usaram o cenário indianista para fazer comparações implícitas – mas perturbadoras – entre as opressões sofridas por raças consideradas inferiores e a negação de liberdades sociais e políticas a uma grande parte dos brasileiros, que, embora fossem livres (no sentido de não serem escravizados), não eram proprietários de terras e dependiam de favores daqueles que as possuíam. As oportunidades de trabalho por aqui naquela época eram limitadas, já que o Brasil era um país essencialmente rural, e muitas das atividades eram exercidas pelos escravizados.

Gonçalves Dias fazia parte desse grupo de pessoas livres, mas dependentes de favores da elite agrária. Conhecer alguns aspectos da vida do escritor talvez nos ajude a entender por que ele se identificava com os setores mais oprimidos da sociedade e como isso o diferenciava de outros escritores do Indianismo.

Mas quem foi Gonçalves Dias?

Antônio Gonçalves Dias [10] nasceu em 10 de agosto de 1823 em Caxias, no Maranhão. Seu pai, João Manuel Gonçalves Dias, era um pequeno lojista português que estava entre aqueles que haviam tentado evitar a Independência do Brasil em relação a Portugal. Sua mãe, Vicência Mendes Ferreira, provavelmente era “cafusa”, ou seja, mestiça de pais índio e africano. João Manuel, pouco tempo depois do nascimento do filho, exilou-se em Portugal, fugindo da perseguição dos nacionalistas brasileiros e ficou lá por cerca de dois anos, período em que Antônio e Vicência viveram sozinhos em uma pequena fazenda próxima a Caxias. 

Voltando ao Brasil, João Manuel se casou com outra mulher, Adelaide Ramos de Almeida, e assumiu a responsabilidade da criação de Antônio, impedindo-o, inclusive, de conviver com Vicência. Mesmo relutando, Adelaide pagou os estudos de Antônio, que foi mandado, aos quinze anos, em 1838, para a Universidade de Coimbra, em Portugal. No ano seguinte, sua madrasta sofreu perdas financeiras, e Antônio só conseguiu dar continuidade a seus estudos em Portugal com a ajuda de amigos que o hospedaram; um deles foi Alexandre Teófilo de Carvalho Leal. Com isso, Antônio se formou em direito, mas, por um incidente familiar, retornou ao Brasil em 1845 antes de obter seu doutorado. 

Instalou-se em Caxias e passou por um período de reclusão, sentindo-se humilhado pela condição de dependência econômica em que vivia. No ano seguinte, mudou-se para São Luís, onde foi hospedado, mais uma vez, por seu amigo Teófilo, que conseguiu lhe arranjar um cargo jurídico no Rio de Janeiro, cidade em que Gonçalves Dias publicou seu livro Primeiros cantos, em 1847. Depois, outros dois amigos conseguiram um cargo com fonte de renda regular para ele, como secretário e professor assistente de latim no Liceu de Niterói.

Em 1848, ele exerceu atividades para diversos jornais e, por algumas de suas reportagens, foi indicado como professor de latim e história no Colégio Imperial Dom Pedro II. Ainda nesse período, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde desenvolveu seu estudo etnográfico Brasil e Oceania, comparando os povos tribais das Ilhas do Pacífico e do Brasil. 

Em 1851, publicou os Últimos Cantos, e, por volta dessa época, fez uma proposta de casamento à prima de seu amigo Teófilo, Ana Amélia. Essa proposta foi recusada pela mãe da moça, provavelmente por motivos de preconceitos raciais. Durante sua vida, Antônio teve uma série de encontros amorosos insatisfatórios, mas acabou se casando com Olímpia da Costa, com quem teve um casamento infeliz e uma filha, a qual morreu aos dois anos de idade. 

A obra do escritor foi bem recebida na época, e várias edições de suas poesias foram lançadas. Em 1863, ele partiu para a Europa para tratar de problemas de saúde e, no final do ano seguinte, embarcou de volta para o Brasil, mesmo que sua saúde ainda estivesse bem debilitada. Em 3 de novembro de 1864, quase chegando à costa brasileira, seu navio sofreu um acidente e afundou. Toda a tripulação se salvou, mas, quando se lembraram de socorrer o poeta, seu camarote já estava submerso.

De acordo com David Treece, a vida pessoal e profissional desse escritor mestiço e de classe média baixa daria testemunho de “uma consciência aguda da desvantagem racial e econômica e uma aversão amarga às condições opressivas nas quais se baseava a prosperidade do Império”. [11] Porém, como o próprio pesquisador nos previne, essa consciência nunca foi tão longe a ponto de questionar o pensamento básico indianista de que os indígenas deveriam ser integrados na sociedade brasileira, abandonando suas identidades e práticas culturais. O poeta teria receio de que uma revolução dissolvesse violentamente a então jovem nação brasileira. Nesse sentido, o crítico inglês considera que, no Indianismo de Gonçalves Dias, haveria um jogo entre forças contraditórias, um estado de tensão. Isso daria à sua obra uma intensidade única, ausente nos trabalhos de outros colegas de sua geração.

Vejamos como essa intensidade aparece na leitura que Treece faz do poema “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias. Com isso, talvez o poeta se mostre digno de ser devorado pelos escritores modernistas do Movimento Antropofágico.

O que é digno de ser devorado
Capa de Últimos Cantos, de 1851, livro em que foi publicado o poema épico “I-Juca Pirama”

 

O poema épico “I-Juca Pirama” faz parte do livro Últimos cantos, publicado em 1851. O seu título, como adverte o próprio Gonçalves Dias em uma nota, se fosse traduzido do tupi para o português, seria equivalente a “o que há de ser morto, e que é digno de ser morto”

Esse poema, narrado por um velho da etnia timbira (como descobrimos apenas no décimo e último canto), conta a história de um jovem guerreiro tupi que é capturado por uma tribo timbira e que, seguindo o costume, deverá ser sacrificado em um ritual de canibalismo. Entretanto, ao contar sua história antes de ser morto, o índio chora e pede clemência, para poder cuidar de seu pai, velho e cego, já que eles dois são os únicos sobreviventes da sua tribo. Por ter chorado, o jovem é considerado fraco e, por isso, indigno de ser comido, e é libertado. Ele, então, reencontra seu pai, que percebe que o filho tinha sido preparado para um ritual de sacrifício que não foi concluído. Ao saber que o filho tinha sido poupado para cuidar dele, o velho decide que eles devem voltar à tribo timbira para terminar o ritual. Chegando lá, porém, ele descobre que o filho, na verdade, foi libertado porque chorou na presença da morte. O pai, por isso, amaldiçoa o filho. O jovem tupi, incitado pelo ódio do pai, ataca a tribo timbira e luta com bravura, mostrando-se, assim, digno de ser morto, o que faz o pai chorar, mas de alegria.

Primeira estrofe do canto X de “I-Juca Pirama” [12]

 

Podemos notar que a abordagem que Gonçalves Dias apresenta para o canibalismo em seu poema se distancia muito da concepção de que esse ato é uma prática de bárbaros que deve ser superada, uma abordagem presente em outros textos, como no poema Caramuru, de 1781, escrito por Santa Rita Durão, precursor do Indianismo. Além disso, em “I-juca Pirama”, por ser um tema central da narrativa, ainda que o ritual em si não seja descrito, o canibalismo não foi minimizado em prol de uma idealização da figura do indígena, o que aconteceria em obras de José de Alencar, como no romance Ubirajara, de 1874. [13]

Essa postura diferente de Gonçalves Dias com relação ao canibalismo não surpreende quando lembramos do que foi discutido na segunda parte deste texto: a posição que esse poeta ocupa dentro do Indianismo. Essa era uma posição dissidente de um homem livre, mas dependente, que vê a realidade dos índios e dos negros próxima da sua, sem direitos e lugar na sociedade dominada por uma burguesia agrária do Brasil de sua época. Tudo isso já ajuda a entender um pouco a forma como Gonçalves Dias retratou o canibalismo, que pode contrariar positivamente algumas expectativas, inclusive do leitor contemporâneo.

Ao acompanhar a leitura que David Treece fez desse poema, vemos que o crítico enxerga o canibalismo como o elemento central, que dá força ao poema. Para Treece, o ritual de canibalismo seria, em “I-Juca Pirama”, o meio de reintegração à comunidade, de recuperação do sentimento de pertencimento na integridade da cultura tribal.    

O crítico considera que pode ser tentador enxergar que uma ideia ocidental, a devoção do filho pelo pai, triunfa sobre a cultura tribal marcial de coragem e de resistência. Porém, essa leitura ignoraria a estrutura dramática do texto em sua inteireza, já que, ainda que o laço de paternidade seja um tema importante, ele está subordinado ao clímax do poema, que é o momento de reconciliação e de reintegração na tribo. Além disso, a força máxima dessa reconciliação seria consequência do contexto histórico da narrativa, que é claramente estabelecido no texto: o momento posterior à Conquista dos europeus. O jovem e seu pai são os únicos sobreviventes de uma tribo vitimada pelo encontro com os colonizadores. Nas palavras de Treece:

eles têm caminhado errantes no exílio, parece, apenas para finalmente redescobrirem seu mundo perdido em outro lugar, entre os timbiras que mantêm prisioneiro o guerreiro. É-lhe dada a oportunidade de reafirmar os valores tradicionais de seu povo dentro do contexto honroso de seu cativeiro, através de algum ato de bravura. Assim ele faz, dando nova vida a seu velho e decrépito pai e à tribo que a Conquista parece ter destruído. [14] 

O ritual antropofágico, assim, representaria uma redescoberta da identidade tribal. Desse modo, o gesto de devoção filial não destrói a cultura militarista dominante do povo tupi: o gesto questiona essa cultura momentaneamente, mas depois a deixa mais forte e mais rica. Honrando o ritual e aceitando sua incorporação ao corpo da tribo, o protagonista estaria “cumprindo o papel a ele destinado dentro da ordem social e cósmica do mundo indígena: I-Juca Pirama – ‘o que há de ser morto, e que é digno de ser morto’”. [14]

A partir dessa análise, Treece destaca a importância do ritual de canibalismo para o poema, bem como a importância do próprio Gonçalves Dias dentro da literatura brasileira:

Ao oferecer uma leitura dessa prática que se aproxima do conhecimento antropológico moderno sobre o assunto, Gonçalves Dias rompeu com toda uma tradição literária indianista no Brasil, que, por três séculos, representou e caricaturou o canibalismo como prova da barbárie primitiva do índio […]. De fato, ele é único no Indianismo do século dezenove por essa interpretação, e, depois dele, teve-se que esperar pelo movimento modernista para que a significação ritual do canibalismo fosse novamente reafirmada. Tal revisão radical de uma das pedras fundamentais do discurso colonial fala alto pela notável contribuição deste poeta como uma das mais poderosas vozes dissidentes no seio da tradição romântica indianista. [15]

David Treece, com uma boa dose de contundência, aproxima a abordagem que Gonçalves Dias faz da antropofagia com a do conhecimento antropológico moderno e a do movimento modernista. No entanto, vale finalizar este texto com uma breve ressalva, que relativiza um pouco essa aproximação feita por Treece.

Para o antropólogo Carlos Fausto, embora essa ideia da absorção das qualidades pela devoração não seja totalmente incorreta, ela não é capaz de explicar completamente a prática da antropofagia. Na visão do antropólogo, diferentemente de Gonçalves Dias, Oswald de Andrade teria conseguido propor uma leitura de antropofagia mais parecida com as representações indígenas, pois o modernista compreendeu essa prática como um movimento que não busca apenas se identificar com o outro ou negá-lo, mas sim que busca exprimir a contradição existente entre um desejo pelo outro e a necessidade de se constituir como sujeito autônomo, independente. [16]

Essa compreensão mais profunda que Oswald propõe da prática da antropofagia também é defendida pela pesquisadora Lúcia Sá, quando a autora explica a postura do modernista diante de tal prática:

O que interessava a Oswald era desenvolver uma teoria da identidade cultural: as experiências intertextuais com fontes indígenas não eram importantes para ele. Como teórico, ele se voltou para as culturas indígenas em busca de conceitos, não de histórias. [17]

De todo modo, acredito que não precisamos considerar essa sutileza do conceito aparentemente capturada por Oswald para afirmar que Gonçalves Dias talvez merecesse, sim, um lugar na bibliotequinha antropofágica.

Notas

[1] Essa é a história contada por Raul Bopp – um dos amigos do jantar – no livro Vida e morte da Antropofagia, publicado pela editora José Olympio em 2006. O livro reúne textos do autor escritos entre 1965-1966, lançados esparsamente em jornais ou em livros de tiragens reduzidas.

[2] Como disse Oswald de Andrade, em entrevista a O Jornal do Rio de Janeiro em 18 de maio de 1928. Esse trecho da entrevista foi citado no artigo A fome antropofágica – utopias e contradições, de Fernada Oliveira Figueiras Santos e Mauro de Mello Leonel, publicado na Revista de Estudos Culturais, da USP. Esse artigo também embasou a breve apresentação do movimento, comentada neste parágrafo.

[3] Se quiser saber mais sobre os ensaios de Michel de Montaigne, confira o texto “Ensaio em cena”, publicado aqui no Marca Páginas.

[4] Nas palavras de Raul Bopp, no mesmo livro citado na nota 1.

[5] Como colocado pela pesquisadora Lúcia Helena em seu livro Modernismo brasileiro e vanguarda, publicado pela editora Ática, em 1996.

[6] Antropofagia – palimpsesto selvagem, dissertação defendida em 2012 na USP, na qual a pesquisadora analisa detidamente os 51 aforismos do “Manifesto Antropófago”.

[7] Em seu texto “Uma poética da radicalidade”, o qual tem uma seção intitulada “Indianismo às avessas”. Esse texto foi publicado nas Obras Completas VII – Poesias Reunidas, de Oswald de Andrade. Publicado pela editora Civilização Brasileira em 1971.

[8] Informações baseadas no texto de Benedito Nunes, “Antropofagia ao alcance de todos”. Publicado no livro Obras Completas VII – Do pau-brasil à antropofagia e às utopias (Manifestos, teses de concursos e ensaios), de Oswald de Andrade. O livro foi editado pela Civilização Brasileira e lançado em 1970.

[9] Em seu livro Exilados, aliados, rebeldes: o movimento Indianista, a política indigenista e o Estado-Nação imperial. Traduzido por Fábio Fonseca de Melo e publicado em 2008 em uma parceria das editoras Nankin e Edusp.

[10] As informações biográficas apresentadas nesta seção se baseiam, sobretudo, nas seguintes referências: o livro de Treece mencionado na nota anterior; o livro Gentis Guerreiros: o Indianismo de Gonçalves Dias, de Cláudia Neiva de Matos, publicado em 1988 pela editora Atual; e a “Cronologia da vida e da obra de Gonçalves Dias” (incluída na coletânea de poemas Ainda uma vez – Adeus, publicada pela J. Aguilar em 1974). Essa cronologia é ancorada, entre outras fontes, nas pesquisas da principal biógrafa do poeta, Lúcia Miguel Pereira.

[11] Citação da página 149, do livro de David Treece mencionado na nota 9.

[12] Trecho do poema retirado do livro Épicos (da coleção Multiclássicos), organizado por Ivan Teixeira e publicado em parceria pela Edusp e pela Imprensa Oficial, em 2008.

[13] As representações da antropofagia em Santa Rita Durão e em José de Alencar foram discutidas por Maria Cândida Ferreira de Almeida, em seu livro Tornar-se outro: o topos canibal na literatura brasileira, publicado pela Annablume, em 2002. Nesse livro, baseado na pesquisa de doutorado da autora, é proposta a ideia de que a antropofagia é um tema que se repetiu e que se fixou na tradição literária brasileira, sendo retratado de diferentes formas.

[14] Citação da página 187, do livro de David Treece mencionado na nota 9.

[15] Citação das páginas 190 e 191, do livro de David Treece mencionado na nota 9.

[16] Carlos Fausto apresenta essa ideia no artigo “Cinco séculos de carne de vaca: antropofagia literal e antropofagia literária”, publicado na revista Nuevo Texto Crítico, em 1999.

[17] Essa é uma leitura que Lúcia Sá fez em seu livro Literaturas da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, publicado em 2012 pela edUERJ.

 

Um rosto pelo outro: o espelho que falta em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga

Em diferentes épocas, em diferentes espaços geográficos, o espelho apareceu representado na literatura, funcionando ora mais, ora menos como símbolo ou metáfora. Pensemos no mito grego de Narciso, que acha feio o que não é espelho, eternizado nas Metamorfoses do poeta Ovídio; ou na carta aos Coríntios de São Paulo, passagem bíblica em que o enigma antecede a possibilidade de nos vermos face a face; ou até mesmo na história da Branca de Neve, fábula dos Irmãos Grimm ou filme da Disney, em que a madrasta se pergunta sobre a existência de algo mais belo do que si mesma. Na literatura brasileira, igualmente disseminado, o espelho aparece, por exemplo, tanto em Machado de Assis, quanto em Guimarães Rosa, quando ambos escolhem chamar seus contos de, justamente, “O espelho”. Não faltam, portanto, referências e análises sobre esse tema, que se tornou um prato cheio para os estudos literários. No entanto, hoje, lendo o romance A mulher de pés descalços, pude refletir (com todas as ambiguidades que essa palavra poderá ressoar aqui) de uma maneira diferente sobre ele.

Escrito por Scholastique Mukasonga e publicado em 2008, na França, e em 2017, no Brasil, em tradução de Marília Garcia pela editora Nós, A mulher de pés descalços é o que poderíamos chamar de testemunho da história, com h minúsculo, e da História, com h maiúsculo. A escritora, que nasceu em Ruanda em 1956 e se refugiou na França na década de 1990, homenageia nesse romance sua mãe, Stefania. As experiências narradas vão sendo encadeadas de forma que a história particular de sua família se costure à terrível guerra civil que marcou a História de seu país de origem. Entre exílios e genocídios, Mukasonga vai nos colocando em contato com as múltiplas violências relacionadas aos conflitos étnicos ocorridos em Ruanda nas últimas décadas do século XX, enquanto nos imerge em memórias familiares que tematizam seus hábitos e costumes.

 

 

Foi então que ali pelo capítulo VII, “A beleza e os casamentos”, li a seguinte passagem:

          Mas como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho? Em Gitagata não havia espelhos, nem mesmo nas lojas; no maior comerciante de Nyamata, eles ficavam no alto da estante, atrás do balcão – e era impossível dar uma olhada, mesmo quando o vendedor se distraía atendendo outro cliente. O único espelho eram os outros: o olhar satisfeito ou os suspiros de desânimo da nossa própria mãe, as observações e comentários da irmã mais velha ou dos colegas e, depois, o rumor que corria pelo vilarejo que acabava chegando até nós: quem é bonita? E quem não é?

          Mas, sem espelho, como ter certeza de que ao menos alguns traços do próprio rosto correspondem aos critérios de beleza valorizados pelas casamenteiras e celebrados pelas canções, provérbios e histórias? Uma cabeleira abundante, mas que deixe a testa à mostra, um nariz reto (esse pequeno nariz tutsi que acabou decidindo a morte de tantos ruandeses), gengivas pretas como as de Stefania, sinais de boa linhagem, dentes afastados… Quando o Sol brilhava, a gente ia até uma poça tentar ver o reflexo. Mas o retrato fluido dançava debaixo de nossos olhos impotentes. O rosto de água se enrugava, se encrespava e se fragmentava em películas de luz. Nosso rosto nunca era nosso como quando é visto no espelho, ele era sempre de outro.[1]

A pergunta que abre o excerto, como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho?, me deixou desconcertada. A presença desse objeto sempre foi tão naturalizada e banal para mim – seja pela minha própria existência, seja pela literatura contemporânea que pude conhecer até aqui – que nunca tinha me passado pela cabeça a possibilidade de não ter acesso, em tempos tão recentes, à experiência de se encarar em um espelho. É curioso porque, acompanhando a leitura do livro até aquele momento, eu já havia passado com as personagens pela falta de leite (tão importante para a cultura dos tutsis, etnia da qual Mukasonga e sua família fazem parte), de pão, de água limpa, de segurança, de paz, mas foi com a falta de espelho que senti uma indignação não sentida até então com o livro – talvez por nunca ter pensado sobre isso, diferentemente das outras desigualdades, com as quais eu já havia me deparado simbolicamente em outros momentos.

“O único espelho eram os outros”. Sabemos o quanto a forma como as outras pessoas nos veem é constitutiva da forma como nós mesmas nos enxergamos, nos percebemos, nos projetamos. Porém, a situação em Gitagata, conforme descrita no romance, era a de que essa era a única forma de se ver fisicamente, o que levaria a personagem à pergunta sem resposta: será que sou bonita? Só seria possível satisfazer essa curiosidade pelas características apontadas pelos outros. Os olhares de fora seriam, então, a régua definidora de como ela mesma se perceberia de dentro.

Essa passagem está inserida em um capítulo em que o padrão de beleza (interna e externa) das mulheres tutsis é descrito de forma cuidadosa, afinal ele seria o critério segundo o qual as mulheres do vilarejo conseguiriam se casar ou não. Com certo incômodo, moldadas pela maneira como nossa própria cultura tem problematizado essa questão na contemporaneidade, acompanhamos a mãe de Mukasonga, “casamenteira de mão cheia”, tecendo considerações sobre as moças que ela analisava na tentativa de arranjar casamentos: questões de formação, como ser de família respeitável, ter boa educação, ser trabalhadora; mas também atributos físicos, como ter charme, graça e estrias (sim, era bom sinal ter cochas grossas e cobertas por uma rede de estrias). Por isso, poder dizer sobre si mesma se era uma mulher bonita ou não seria um critério tão importante para a cultura tutsi – afinal isso determinaria, em alguma medida, a oportunidade de se conseguir um casamento e, por consequência, um futuro.

A partir dessa passagem, carrego comigo a imagem do “rosto de água” que a personagem sugere. Para além de narrar as desigualdades e injustiças que acometeram seu povo, levando à dor de saber que a própria família, incluindo sua mãe, havia sido brutalmente assassinada em Ruanda, o romance de Mukasonga nos coloca diante desse não-espelho, ou desse espelho turvo, no qual ingenuamente acreditamos nos enxergar. Foi pela leitura de seu livro que pude sair de minha autoimagem confortável, acreditando que todos conhecem seu próprio rosto refletido em um espelho, e perceber que algo tão banal para mim não é exatamente vivido e percebido pelo outro dessa mesma maneira. Assim, no final das contas, é a imagem que tenho de mim que acabou ficando enrugada, encrespada, fragmentada, por poder pensar, através da literatura, sobre outra cultura, outra realidade, outra perspectiva de existência. Esse tema, ao lado das inúmeras simbologias que o elemento espelho suscita na tradição literária, pode certamente se desdobrar em associações, intertextualidades, bases teóricas diversas – e espero poder aprofundar tais análises posteriormente. Não deixa de ser fascinante, contudo, me dar conta de que nessa aproximação ao livro de Mukasonga mesmo a experiência de leitura mais dolorosa e mais desconcertante sobre mim mesma é ainda, e sempre será, uma experiência que vale a pena ser sentida.

[1] MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Editora Nós, 2020 [2017], p. 90-91.

Herdeiras de Capitu? Personagens femininas silenciadas

No episódio “Herdeiras de Capitu? Personagens femininas silenciadas”, do podcast Oxigênio, a Lúcia Granja falou sobre alguns livros da literatura brasileira em que um narrador homem tenta omitir a voz de uma personagem feminina da trama. As vozes dessas mulheres, porém, conseguem escapar e se inserir nas obras, de diferentes maneiras. A Lúcia centrou a sua análise no romance Dom Casmurro (1899/1900), do Machado de Assis, mas também falou sobre como esse modelo de narrativa reaparece em São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar e Hosana na sarjeta (2014), de Marcelo Mirisola. A Lúcia é professora e pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL da Unicamp. Ela pesquisa principalmente a obra do Machado de Assis; em especial, as crônicas desse escritor e as relações entre Literatura e Jornalismo na produção dele.

O modelo

 

Um homem e uma mulher formam um casal. Por algum motivo, acontece um conflito entre eles, e esse relacionamento acaba. O homem, depois, resolve contar esse conflito. Com isso, ele procura dar um novo significado para a própria vida e, ao mesmo tempo, silenciar, omitir, a voz da mulher em relação ao que aconteceu entre os dois. Mas, de alguma forma, a voz dessa mulher consegue escapar e aparecer na história…

Para a Lúcia Granja, esse seria um modelo de narrativa importante na literatura brasileira a partir do século XX. Ela identificou, em alguns dos nossos romances, narradores homens que, de formas diferentes, contaram suas histórias tentando silenciar as vozes femininas… E por que é o homem quem narra o conflito amoroso?

Uma coincidência?

 

Para sustentar sua análise, a Lúcia partiu de um dado empírico. Ela citou uma pesquisa, coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, na qual foi observado (a partir de um exame extensivo de romances publicados entre 1990 e 2004) que os escritores brasileiros são, na sua maioria, brancos (90%), homens (70%) e moram no Rio de Janeiro (50%) ou em São Paulo (20%). [1]

Apesar de esses dados se referirem à literatura contemporânea, a Lúcia acredita que eles não dizem respeito apenas a esse período ou apenas ao contexto brasileiro. Ela também acredita que a adoção do ponto de vista masculino (pelo narrador que conta seu conflito amoroso) tem por trás a própria autoria masculina. Então, a pesquisa de Dalcastagnè sustentaria a ideia de que há uma relação entre a autoria e a criação de um relato ficcional autobiográfico que projeta dados evidentes da nossa sociedade. E que dados são esses?

Na nossa sociedade, a organização privada da família foi estruturada de maneira paternalista: existe um chefe de família responsável por organizar tudo que acontece nessa família, com dominação. Ou seja, há uma dominação masculina que impera no seio da família e, de certa maneira, também impera nas relações entre homem e mulher, por mais que elas tenham mudado ao longo do tempo. Mas como isso aparece nos romances analisados pela Lúcia?

“Capitu que entra”

 

Imagem de capa do livro Dom Casmurro e Machado de Assis (Divulgação da campanha “Machado de Assis Real”, feita pela Faculdade Zumbi dos Palmares)

 

O enredo de Dom Casmurro é bastante conhecido, mas, só para lembrar rapidinho: a história é narrada por um homem, o Bento Santiago (também chamado de Bentinho ou Dom Casmurro), que, quando já está mais velho, resolve escrever sobre a própria vida. Ele fala das dificuldades que teve para se casar com a sua vizinha Capitolina, a Capitu. E, depois do casamento, ele acha o próprio filho muito parecido com seu melhor amigo e desconfia que a Capitu o tenha traído.

Sem entrar na discussão sobre a culpa da Capitu (ela traiu ou não o marido?), a Lúcia considera que os ciúmes crescentes do Bentinho o levam a tomar decisões unilaterais. O Bentinho decide que o casal irá se separar, decide também exilar a Capitu na Suíça, enquanto ele finge para os seus contemporâneos que vai à Europa todos os anos para ver a família. E ele quer resolver tudo isso em silêncio. A Capitu pede explicações, que não vêm. Quando o Bentinho se nega a conversar com a Capitu sobre a suposta traição dela e já decide como vai ser a separação dos dois, como se dissesse “esse caso não é da sua conta”, ele estava silenciando a Capitu; ou seja, o silêncio dele impediu que ela se manifestasse naquela situação de crise no relacionamento deles.

No podcast, a Lúcia mostrou com mais detalhes como esse silenciamento acontece em um dos capítulos do livro, o 138, chamado “Capitu que entra”. No entanto, apesar do silenciamento imposto com sucesso nessa cena do capítulo 138, a voz da Capitu, ao longo do livro, aparece (de forma inclusive poderosa) nas dúvidas que o Bentinho narrador deixa escapar, quando se lembra do seu passado e conta a sua história. Ele – que decidiu, sozinho, exilar a Capitu – parece querer convencer o leitor de que foi traído, mas, ao mesmo tempo, parece que ele quer convencer a si próprio de que tomou a decisão correta. Através dessas dúvidas de um velho deprimido, casmurro, é como se a voz, a versão da Capitu, aparecesse no romance.

Madalena, Diadorim(na), a jornalista e Paulinha Denise

 

A Lúcia percebeu que esse modelo de Dom Casmurro, romance que ela escolheu como ponto de partida para sua análise, reaparece na literatura brasileira de diferentes formas. Por exemplo, no livro São Bernardo, escrito por Graciliano Ramos e publicado pela primeira vez em 1934, o narrador, Paulo Honório (assim como o Bentinho), quando está mais velho, decide escrever sobre a sua história. Ele conta as dificuldades que passou na vida e os meios (até ilegais e violentos) que usou para comprar a sua fazenda, chamada justamente São Bernardo. O Paulo Honório conta também sobre o seu casamento com a Madalena, que seria a mulher silenciada nessa narrativa. Os ciúmes e o machismo do personagem foram o tornando agressivo com a esposa, e a saída que Madalena encontrou ao silenciamento que progressivamente lhe era imposto foi o suicídio. A Lúcia considera que a Madalena respondeu com um silenciamento sobre o qual não se pode calar, já que, depois que uma pessoa se suicida, é preciso falar sobre isso, principalmente quando a opressão de um sujeito está no centro dessa decisão.

Fotografia de Graciliano Ramos em 1940 (Arquivo Nacional) e imagem de capa do livro São Bernardo

 

Em Grande Serão: Veredas, publicado em 1956 e escrito por João Guimarães Rosa, o silenciamento é mais complexo. Nesse livro, o ex-jagunço Riobaldo conta a história da sua vida para um senhor e fala bastante sobre o amor que sentia por outro jagunço, chamado Diadorim. Mas, perto do fim da narrativa, o Riobaldo revela para esse senhor que o Diadorim era, na verdade, uma mulher. O Riobaldo só descobre isso depois da morte do Diadorim, e o leitor só vai ficar sabendo disso no final do livro. Em primeiro lugar, o silenciamento aparece no amor entre Riobaldo e Diadorim, que não foi expresso, não foi realizado, ficou silenciado. Em segundo lugar, acontece um silenciamento da mulher, por vontade do pai de Diadorina e por obediência ou pela própria vontade da filha, que adota uma identidade de gênero masculina e passa sua vida toda como jagunço.

Imagem de capa do livro Grande Sertão: Veredas e Guimarães Rosa durante suas viagens pelo sertão em 1952 (Fotografia de Eugênio Silva, veiculada na revista O cruzeiro)

 

Mais de trinta anos depois, em 1978, o modelo do silenciamento feminino reaparece em Um copo de cólera, de Raduan Nassar, novela que é centrada no relato de um encontro e de uma briga de um casal; ele, o dono de uma chácara (onde vive mais isolado da sociedade), e ela, uma jornalista. Nos primeiros seis capítulos desse livro, tudo é contado pela voz masculina, mas, no sétimo e último capítulo, a história começa a ser recontada, aparentemente, pela voz feminina. E é possível notar muitas diferenças entre as duas versões. Por exemplo: o homem diz que o sol estava se pondo. A mulher fala que a tarde já estava escura. Ele conta que, quando chegou em casa, era aguardado pela mulher. Já ela diz que ele que estava à espera dela.

Versão masculina: E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?”…

Versão feminina: E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao descer do carro, uma atmosfera precoce se instalando entre os arbustos, me impressionando um pouco a gravidade negra e erecta dos ciprestes, e ali ao pé da escada notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera, embora o expediente servisse antes pra me lembrar que eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as recompensas da visita, e eu de fato, pensativa, subi até o patamar no alto… [2]

Imagem de capa do livro Um copo de Cólera e Raduan Nassar em ato de apoio à presidenta Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto (Fotografia de Antonio Cruz, Agência Brasil)

 

Por fim, em Hosana na sarjeta, um livro de Marcelo Mirisola publicado em 2014, também uma relação amorosa com um sujeito muito complicado leva uma mulher ao suicídio. O narrador, que é um escritor, conta – de uma forma bastante preconceituosa e cheia de julgamentos – o seu envolvimento amoroso com Paulinha Denise, uma menina da periferia de São Paulo, que, para ele, era brega, não instruída… No entanto, segundo o que ele tenta narrar, a relação entre os dois foi verdadeira. E a voz de Paulinha entra na narrativa por meio de um bilhete de suicídio, que passa a ser um núcleo muito importante no romance, um núcleo, inclusive, de transformação e de mudança do teor de reflexão desse sujeito.

Imagem de capa do livro Hosana na sarjeta e Marcelo Mirisola (fotografia de João Marcondes)

 

Enfim, essas narrativas têm uma “moldura” parecida, são todas histórias em que um narrador homem conta o seu conflito amoroso, tentando silenciar a voz feminina. Porém, as vozes das mulheres conseguem escapar e se infiltrar na narrativa, cada uma de uma forma diferente: seja nas dúvidas de Bentinho, seja nos tormentos que Paulo Honório e Riobaldo passam pelo resto da vida, seja por meio de um bilhete suicida ou até retomando a história.

Se você quiser ouvir essas reflexões com mais detalhes, em vozes femininas (a da Lúcia e a minha), confira o episódio “Herdeiras de Capitu? Personagens femininas silenciadas”, do podcast Oxigênio.

A série

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre o silenciamento de personagens femininas na literatura brasileira, foram abordados os seguintes temas: livros licenciosos, ensaios e utopias. Aqui no “Marca Páginas”, já tem um post sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante por aqui nessa época. Temos também um post sobre os ensaios, um tipo de texto que dá liberdade para o seu autor se mostrar, com suas dúvidas e imperfeições. Em breve, também vamos ter mais um texto, apresentando o episódio sobre utopias (e distopias).

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores como Google Podcasts e Spotify.

Notas

[1] Se quiser saber mais sobre essa pesquisa de Regina Dalcastagnè, acesse a entrevista que a pesquisadora deu em 2018 para a Revista Cult, chamada “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”.

[2] Trechos dos capítulos 1 e 7, ambos intiulados “A chegada”, do livro Um copo de cólera, na edição da Companhia das Letras.

 

Ensaio em cena

No episódio “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, do Podcast Oxigênio, o Alexandre Soares Carneiro falou sobre o ensaio, um tipo de texto muito livre, que pode ter várias formas e tratar de diferentes assuntos. O ensaio também dá espaço para quem o escreve mostrar suas dúvidas e seus pensamentos, mostrar a si mesmo sem enfeite nem edição. O Alexandre pesquisa assuntos como Literatura Medieval, Renascimento e, há mais de dez anos, ele estuda o nascimento e as transformações do gênero ensaístico. Ele é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp.

Ensaiando uma definição
Algumas capas de livros de ensaios…

Michel de Montaigne, George Orwell, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, Antonio Candido, Robert Louis Stevenson, Pier Paolo Pasolini, Emil Cioran… Escritores muito diferentes, como os dessa pequena lista, escreveram ensaios igualmente muito diferentes. E toda essa diferença já mostra que definir “ensaios”, de forma geral, não é uma tarefa simples. O Alexandre Carneiro, porém, ensaiou uma definição.

Para o pesquisador, apesar de poder assumir variados aspectos, o ensaio tende a incorporar as dúvidas do processo de reflexão, o que se relaciona à característica dialógica do ensaio, ou seja, à sua aproximação a um tom de conversa. Normalmente, as conversas não são sistemáticas e elas dão a liberdade para a gente ir testando ideias, até mesmo aquelas insólitas, estranhas…     

“Podemos identificar a tal liberdade do ensaio no fato de o ensaísta expressar não apenas o resultado final, mas um pouco do processo irregular do pensamento, desde a formulação de um problema, uma dúvida, um paradoxo que ele observou, passando pelas hipóteses iniciais, as hesitações, desvios, correções.” (Alexandre Soares Carneiro)

Então, apesar de não ser fácil definir um ensaio, muitas vezes encontramos nesses textos algumas características em comum: pessoalidade, liberdade e um esforço de descrever um problema, de uma forma necessariamente não sistemática e em um tom parecido com o de uma conversa.

Um livro de boa-fé

Mais fácil do que definir um ensaio é dizer quando essa palavra passou a ser usada para se referir a esse tipo de texto. O francês Michel de Montaigne (1533-1592) teria inaugurado o uso dessa palavra para tal fim ao dar o título Ensaios para uma série de 3 livros que ele foi escrevendo e reescrevendo desde 1571 até a sua morte. A palavra “ensaios” – que nos remete a tentativas, esboços – revelava a modéstia do escritor, que começou com reflexões breves a partir de leituras que fazia e depois foi se sentindo mais à vontade para falar sobre si mesmo, sobre a própria escrita, sobre acontecimentos de sua época… Apenas para dar uma ideia da diversidade de temas abordados por Montaigne, estes são alguns dos títulos de seus ensaios:

Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes; De como filosofar é aprender a morrer; Da amizade; Dos canibais; Como uma mesma coisa nos faz rir e chorar; Da solidão; Dos odores; Da incoerência de nossas ações; Da embriaguez; Dos polegares; A covardia é mãe da crueldade; Dos correios; Da inconveniência de se fingir de doente.

Retrato de Michel de Montaigne (pintor desconhecido). Esse escritor francês, autor dos livros Ensaios, é a grande referência para o gênero ensaístico.

 

A nota “Ao leitor”, que Montaigne escreveu como abertura de seus ensaios, mesmo que com um quê de dissimulação (para conquistar a generosidade dos leitores), mostra as motivações despretensiosas do escritor, que aproximam os seus textos a uma conversa entre amigos.

Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.

Adverte-o ele de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Voltei-o em particular a meus parentes e amigos, e isso a fim de que, quando eu não for mais deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto o permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, assegure-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu. [1]

Folha de rosto do terceiro livro dos Ensaios (1588).

 

Essa aproximação entre os ensaios e uma conversa mais íntima, entre amigos, pode ser relacionada a um acontecimento da vida do ensaísta francês…

Porque era ele, porque era eu

Montaigne foi muito amigo do Étienne de La Boétie, que ficou conhecido por ter escrito, ainda na adolescência, o Discurso da servidão voluntária. Só que, com 33 anos, o La Boétie ficou doente e morreu. Isso abalou muito o Montaigne. E o crítico literário suíço Jean Starobinski fala que, na falta de La Boétie, os Ensaios seriam uma tentativa do Montaigne de estender esse diálogo que ele tinha com o amigo.

Inclusive, em um trecho do documentário Chico Buarque – Cinema, de 2006, dirigido por Roberto de Oliveira, o músico e escritor brasileiro, ao comentar sua música “Porque era ela, porque era eu”, fala dessa história famosa da amizade entre os dois franceses:

Desde criança, todo mundo lá [na França] sabe quem é o Montaigne, e essa frase dele [“porque era ele, porque era eu”] se refere à amizade dele com o La Boétie, que era um outro escritor, foi um grande amigo dele de juventude. E o Montaigne […] escrevia ensaios e, ao longo da vida, ele foi reescrevendo alguns ensaios; eles eram publicados e republicados e tal. E uma vez ele falou isso. Perguntavam a razão dessa grande amizade que ele tinha tido com esse outro escritor, o La Boétie, que morreu jovem. E ele falava que não sabia explicar. […] Eu gostava dele e não sabia justificar porque gostava dele e ponto. Depois, mais adiante, quinze anos depois, ele, revendo esse ensaio dele, escreveu ao lado da página assim “eu gostava dele, porque era ele”, ponto. Aí foi impresso na nova edição dos ensaios, “eu gostava dele, porque era ele” e ponto. Quinze anos depois, ele olhou essa frase e anotou de novo, num canto da página, “eu gostava dele, porque era ele e porque era eu” e ponto.

O documentário está disponível no canal da produtora do filme, RWR. O trecho citado acima pode ser assistido por meio deste link.

Documentário Chico Buarque – Cinema, 2006.

 

No episódio de podcast “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, não falamos sobre esse trechinho da fala do Chico. Porém, a conversa com o professor Alexandre não parou nesse ponto da amizade entre Montaigne e La Boétie.

A conversa continua…

Mas não aqui no blog. Se você está gostando desse assunto, ouça o que mais rolou nessa conversa. Só para dar um gostinho: lá, o Alexandre falou sobre o ensaio “Do pedantismo”, no qual o Montaigne discute a ideia de que a educação pode ajudar, mas pode também atrapalhar o nosso julgamento. Além disso, para o ensaísta, às vezes é mais importante como a gente sabe do que quanto a gente sabe…

[Alguns] Sabem dizer “como observa Cícero”, “eis o que fazia Platão”, “são palavras de Aristóteles”, mas que dizemos nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos. […] E conheço um [sujeito] que ao ser indagado acerca do que lhe cumpre saber, vai logo buscar um livro para mostrar e jamais ousaria dizer que tem o traseiro sarnento sem previamente procurar em dicionário a significação de sarna e de traseiro. (Do pedantismo, Michel de Montaigne) [2]

A gente ainda conversou sobre o ensaísmo brasileiro (que é mais importante do que parece) e sobre a relação entre o ensaísmo e a crítica literária brasileira. Por fim, o Alexandre deu algumas dicas de ensaístas de várias épocas e lugares para quem se animou para ler esse tipo de texto.

A série

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os ensaios, foram abordados os seguintes temas: livros licenciosos, silenciamento de personagens femininas na literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas” já temos um post sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante nessa época. Em breve, também vamos ter mais textos, apresentando os temas dos outros dois episódios.

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores, como Google Podcasts e Spotify.

Referências

[1] Tanto os títulos dos ensaios quanto essa nota “Ao leitor” foram retirados da edição dos Ensaios publicada no Brasil pela Editora 34, em 2016. A tradução é do escritor Sérgio Milliet.

[2] Esse trecho está nas páginas 174 e 175 da edição citada na nota anterior.

Descobrindo o encoberto: conversas sobre tradução com Flora Thomson-DeVeaux

Nas últimas semanas, a pesquisadora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux tem estado presente em diversas páginas da imprensa nacional e internacional. A sua tradução do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicada recentemente pela editora Penguin, entrou na quarta tiragem logo no primeiro mês de publicação. Assim, desde seu lançamento, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020) tem chamado a atenção do público e rendido boas reflexões sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior.

Flora estudou Línguas e Culturas Espanholas e Portuguesas na Universidade de Princeton. Em 2019, concluiu o doutorado em Estudos Brasileiros e Portugueses na Universidade Brown. Atualmente, vive no Rio de Janeiro e, entre outras atividades, é diretora de pesquisa da Rádio Novelo, produtora de podcasts como Maria vai com as outras, Foro de Teresina e 451 MHz. O blog Marca Páginas convidou Flora para uma conversa sobre tradução, literatura, pesquisa acadêmica, projetos futuros, e o resultado da nossa entrevista vocês conferem aqui. Boa leitura!

Marca Páginas: Flora, você começou a traduzir o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas como parte de seu projeto de doutorado, defendido na Universidade Brown em 2019. Você poderia nos contar mais sobre a sua tese? De que maneira essa pesquisa acadêmica foi importante para a tradução de uma obra literária?

Flora Thomson-DeVeaux: A tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas foi só um dos capítulos da minha tese, na verdade. Nos outros capítulos, tentei acompanhar a trajetória do romance em inglês – a primeira publicação foi no começo dos anos 1950 nos Estados Unidos e teve mais duas traduções posteriores. Fui atrás de descobrir quais circunstâncias levaram cada tradutor a embarcar no projeto, como foi o processo de edição e publicação, e como cada tradução foi lida no seu tempo. Também dediquei alguns capítulos a aspectos mais teóricos de crítica machadiana e tradutória, e falo sobre minha metodologia. Por fim, proponho que ler a obra machadiana através das suas traduções pode ser uma experiência reveladora.

Uma obra como Memórias póstumas de Brás Cubas é em grande parte uma colaboração entre o texto e o leitor. Em Dom Casmurro, o narrador nos diz que este é um livro “falho”, com lacunas, que cabe ao leitor preencher. Essa é uma operação silenciosa que acontece na cabeça de quem lê Machado de Assis; mas o tradutor acaba imortalizando um pouco do processo na página. Por isso, ler várias traduções da mesma obra machadiana pode jogar uma luz sobre as complexidades do texto original.

Antes de começar a traduzir o livro, mergulhei nos estudos machadianos e da tradução para me situar melhor nos campos respectivos. Queria estar a par não só da grande gama de interpretações que se tem feito do romance, mas também dos debates e estratégias propostos por tradutores nos projetos mais diversos. Na verdade, alguns dos textos que mais me ajudaram tinham pouco ou nada a ver com Machado e Brás Cubas – entre eles, um estudo sobre as traduções de poesias de John Donne para o francês e espanhol e outro que examina vários escritores de língua inglesa em tradução para o italiano. Acredito que essa contextualização tenha sido importante para minha abordagem ao texto – me deixou antenada para perceber alusões e dinâmicas comentadas por outros leitores, e também entrei no processo com algumas ideias de estratégias possíveis debaixo do braço.

Capa da edição The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020)

Marca Páginas: Apesar de Machado de Assis ser bastante conhecido no Brasil, sabemos que sua circulação é ainda restrita em outros países. Você já tinha ouvido falar sobre Machado de Assis antes de decidir estudar literatura brasileira? Como você conheceu a obra de Machado e o que te motivou a traduzi-la?

Flora Thomson-DeVeaux: Não tinha ouvido falar em Machado de Assis antes de entrar na faculdade. Conheci justamente como aluna de literatura brasileira – na verdade, como aluna de língua portuguesa. Foi naquela época que me apaixonei pela prática da tradução, mas não pensei imediatamente em trabalhar com Machado – até porque quase todos os romances dele já tinham sido traduzidos para o inglês (o último foi Ressurreição, que foi traduzido em 2013). Só comecei a pensar nessa possibilidade quando fui traduzir um livro de João Cezar de Castro Rocha, chamado Machado de Assis: por uma poética da emulação. Sempre que João Cezar citava obras de Machado que já tinham sido traduzidas, procurei citar as traduções existentes – mas em muitos casos, as traduções não encaixavam com a análise minuciosa que estava sendo feita no livro de crítica. Com isso, me vi obrigada a retraduzir alguns trechos daqueles romances. Foi uma experiência instigante, bem na véspera de eu entrar no programa de doutorado, e que me ajudou a definir meu projeto em torno de uma nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Marca Páginas: Em ocasiões anteriores, quando foram publicadas outras traduções de Machado no exterior, havia uma grande expectativa de que o escritor seria reconhecido fora do Brasil. Sua tradução parece finalmente estar despertando essa atenção. A quais fatores você atribui esse reconhecimento? Por que agora e não antes?

Flora Thomson-DeVeaux: Infelizmente, suas perguntas provavelmente poderiam ter sido feitas no centenário da morte de Machado em 2008, ou na época das primeiras retraduções nos anos 1990, e elas ecoam questionamentos e esperanças da década de 1950. Quando estudei a recepção das traduções anteriores, vi sempre muita esperança em torno de cada lançamento, mas a repercussão acabava esvaindo sem que Machado de Assis se estabelecesse definitivamente nas prateleiras anglófonas. Torço muito para que desta vez seja diferente. Mas o primeiro tradutor de Memórias póstumas, William Grossman, chegou a dizer que Machado, com sua ironia delicada e fina, jamais seria um autor para as massas, e só seria descoberto e desfrutado por um público seleto.

Marca Páginas: Memórias Póstumas foi publicado no século XIX, em 1881, o que implica desafios tradutórios diferentes se compararmos a experiência à tradução de um texto contemporâneo. Quais foram os seus maiores desafios diante desse trabalho? E quais foram as estratégias e os instrumentos que você utilizou para lidar com esses desafios?

Flora Thomson-DeVeaux: A maior dificuldade não era só de tentar habitar o inglês do final do século XIX, mas sobretudo de medir o quanto que as escolhas linguísticas do autor se diferenciavam daquelas dos seus pares. Ou seja: quando Machado escrevia algo de um jeito que me parecia esquisito, tinha que descobrir se a esquisitice era temporal, cultural, ou machadiana mesmo – se era uma expressão muito usada naquela época que caiu em desuso, se era uma expressão brasileira de difícil interpretação no contexto anglófono, ou se era uma invenção dele, ou uma opção dele por uma palavra deliberadamente obscura. Nesses últimos casos, tentava chegar em alguma solução que fosse ao mesmo tempo compreensível e que também ficasse suficientemente esquisito aos olhos do leitor anglófono. Para identificar se Machado estava se diferenciando muito de seus pares, eu usei tanto bases de dados chamados corpus linguísticos, que medem a frequência de uso das palavras ao longo dos anos, quanto a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde usuários podem acessar milhares de publicações digitalizadas do século XIX e XX. Ah, e acabei acumulando uma coleção respeitável de dicionários antigos português-inglês (melhor: portuguez-inglez), que às vezes preservam definições e explicações de frases e termos que teriam sido correntes no século XIX, mas já não são tão compreensíveis.

Flora Thomson-DeVeaux (acervo pessoal)

Marca Páginas: Estudos sobre tradução já foram tema aqui no blog Marca Páginas[1], inclusive para falar sobre traduções de Machado de Assis para o espanhol[2]. Considerando as nuances que perpassam a experiência de tradução, seja como traição, seja como coautoria, de que maneira você definiria seu trabalho como tradutora?

Flora Thomson-DeVeaux: Jamais me definiria como traidora, mas também não me vejo muito como co-autora. Me identifico muito com uma descrição da última crônica do Machado: “eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.” Vejo o trabalho de tradução como essa missão de uma leitura minuciosa, obsessiva, que pode muitas vezes “descobrir o encoberto”.

Marca Páginas: Para terminar, você poderia nos contar quais são seus próximos projetos? Você pretende continuar traduzindo a obra de Machado de Assis?

Flora Thomson-DeVeaux: Não descarto voltar a Machado, mas não penso em emendar em outra obra dele. Ainda estou pesando algumas opções de projeto – gostaria de fazer uma tradução de uma obra que ainda não tenha versão em inglês. Meu próximo projeto não tem nada a ver com tradução: é um podcast narrativo sobre o caso da Ângela Diniz, que deve ser lançado nos próximos meses pela Rádio Novelo.

Sugestões de leitura:


[1] Para acessar os posts anteriores: <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/04/20/traducao-de-textos-literarios-parte-1/>, <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/10/01/a-traducao-de-textos-literarios-parte-2/> e <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/09/18/o-camelo-pelo-buraco-da-agulha-e-outras-historias-estranhas-de-traducao-por-stant-litore-traducao-jacqueline-placa/>.

[2] Para conferir o texto “Machado de Assis em espanhol”, por Juliana Gimenes:  <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/06/24/machado-de-assis-em-espanhol-por-juliana-gimenes/>.

A verdade escorregadia para Machado de Assis: ciência, literatura e jornalismo, por Laís Souza Toledo Pereira

Em 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, houve uma inédita e instantânea transformação no nosso país: ele passou de colônia à sede da Corte. Nesse contexto, algumas condições foram criadas aqui, mesmo que de modo artificial, para servir às necessidades da Corte portuguesa. Uma das primeiras transformações ocasionadas por essa mudança foi o surgimento da imprensa no Brasil, já que o governo agora precisava imprimir aqui seus documentos oficiais. Além disso, qualquer atividade relacionada à imprensa era proibida no nosso país até esse momento, como acontecia também em outras colônias de Portugal. É nesse contexto, evidentemente marcado por um enorme analfabetismo, que surgem os primeiros jornais brasileiros. [1]

O primeiro periódico impresso no Brasil, ainda em 1808, foi a Gazeta do Rio de Janeiro, que já realizava o papel de divulgar assuntos relacionados à ciência. Desse modo, a comunicação de ciência se inicia no Brasil no século XIX, nos seus recém-criados jornais cotidianos, não especializados e voltados ao grande público. Aliás, era assim que a comunicação de ciência ocorria na maioria dos países nessa época, quando os conhecimentos muito especializados não circulavam nos jornais, mas por meio de correspondências entre os cientistas. Depois, foram essas cartas que deram origem ao que conhecemos hoje como periódicos científicos, ou seja, publicações em assuntos de ciência voltadas a especialistas. [2]

Uma característica marcante desse início da comunicação científica no Brasil é que ela era feita, na maior parte das vezes, por “homens ligados à ciência”, como médicos e engenheiros, e havia um grande interesse pelas aplicações práticas da ciência, sobretudo no contexto específico do nosso país, como em temas relacionados à agricultura e à saúde, por exemplo. A ciência, assim, era frequentemente relacionada nessas publicações a termos como “progresso”, “luzes”, “desenvolvimento”, “interesse do Brasil” e “felicidade pública”. [3]

Esse tom ao tratar de assuntos sobre ciência continuou ao longo do século XIX, período em que os cientistas ganharam autonomia, prestígio e poder [4]. As últimas décadas desse século foram marcadas por uma grande euforia, que vinha da esperança na modernidade e na ciência. As novas teorias científicas – o maior exemplo talvez seja a Teoria da Evolução de Charles Darwin, apresentada em 1859 – geravam um sentimento de que todos os mistérios da natureza haviam sido desvendados. Nesse contexto, os “métodos científicos” passaram a fazer parte do cotidiano não só de médicos ou biólogos, por exemplo, como também de artistas e literatos. Para alguns desses literatos, havia o desejo de que o trabalho literário tivesse um engajamento social e reformador. E, assim, anunciando uma decadência dos românticos, surgiram os chamados Naturalistas, que defendiam uma objetividade, uma verdade impessoal na literatura, no lugar da imaginação ou do sentimento, por exemplo.

Foi nesse cenário que Machado de Assis (1839-1908) se inseriu em uma polêmica. O escritor, que dispensa maiores apresentações, tinha uma desconfiança da ideia de que a literatura devesse se unir completamente à ciência e apenas “fotografar” a realidade, revelando uma “verdade” da sociedade. Mais do que isso, Machado sugeria que a própria noção de que as ideias científicas eram objetivas e imparciais não era indiscutível. Para ele, o discurso cientificista, como qualquer outro, era construído de forma provisória, em meio a disputas e tensões, e tinha suas lacunas, contradições e, muitas vezes, até o intuito de atender a interesses particulares. Machado não afirmava que a realidade não existia, mas ele combatia a fragilidade de falas unânimes da ciência no século XIX e também o modo como muitos intelectuais brasileiros aceitavam sem grandes questionamentos essas “novas ideias”. Inclusive, tais ideias, normalmente importadas da Europa, muitas vezes se adaptavam mal ao contexto brasileiro ou até eram aplicadas de um modo que atendesse a certos propósitos das classes dominantes do nosso país, como para justificar desigualdades “naturais” entre os seres humanos e, portanto, legitimar a manutenção da escravidão por aqui.

Machado de Assis. Divulgação da campanha “Machado de Assis Real”, feita pela Faculdade Zumbi dos Palmares

Machado se envolveu nessa polêmica debatendo sobre o assunto com outros literatos de seu tempo (houve até quem o acusasse de não ter uma “educação científica”, já que Machado, de origem humilde, não estudou na Europa, como era costume na época). E o seu conhecido romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em folhetim, ou seja, publicado nos jornais, ao longo do ano de 1881, seria fruto também de suas reflexões sobre esse tema e uma forma de Machado, por meio da literatura, afirmar seu posicionamento. No entanto, além de abordar tais questões em seus textos mais puramente teóricos ou literários, o bruxo do Cosme Velho, como Machado é conhecido, também tratou desse assunto em suas crônicas.

O significado original da palavra “crônica” vem do grego “kronos”, tempo, e se refere ao relato de acontecimentos em ordem cronológica. Porém, hoje, no Brasil, quando falamos de crônica, não pensamos mais em crônica histórica, mas em um comentário despretensioso sobre um fato da atualidade presente no noticiário dos jornais ou até um fato corriqueiro do dia-a-dia. Talvez você conheça alguma crônica de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector ou Fernando Sabino, por exemplo.

De modo geral, a crônica é um tipo de texto simples (mas difícil de definir) que nasceu quando o jornal se tornou cotidiano e, além de ter um pé no jornalismo e outro na literatura, ela tem uma relação ainda com outro tipo de texto, os ensaios, por também encarar a escrita de forma leve e livre, como uma tentativa (um ensaio) que não tem o compromisso de chegar a uma conclusão. Mas não se engane. Ainda que tratando os temas de modo despretensioso e, muitas vezes, com graça, não são poucas as crônicas que abordam assuntos sérios e também não são poucos os cronistas que as enxergam como uma forma de comentar e ordenar eventos históricos, intervindo, assim, na realidade de seu tempo. Nesse sentido, podemos dizer que Machado de Assis foi um desses cronistas. [5]

A relação do bruxo do Cosme Velho com as crônicas começou em 1860, quando ele tinha cerca de 20 anos, e durou, passando por diversos jornais, quase até o fim de sua vida, dando um saldo de algumas centenas de crônicas [6]. Essa relação entre Machado de Assis e as crônicas foi mudando ao longo da trajetória do escritor, assim como ele foi definindo as características desse tipo de texto no Brasil, aproximando-o de uma elaboração literária e de um tom mais humorístico. Machado, como ele mesmo dizia em suas crônicas, foi unindo o útil e o fútil, o sério e o frívolo, foi metendo o nariz onde ninguém mais metia e apertando os olhos para ver as coisas miúdas que também importavam [7]. Desse modo, não é de se estranhar que Machado tenha comentado em suas crônicas a questão polêmica da relação entre literatura e ciência e dos limites de uma “verdade” objetiva e isenta nos discursos científicos de sua época. Machado escreveu crônicas abordando esse tema, por exemplo, na série coletiva “Balas de Estalo”, publicada na Gazeta de Notícias. De julho de 1883 a março de 1886, Machado publicou 125 textos nessa série, assinando com o pseudônimo de Lélio. Além dele, outros jornalistas e “homens de letras”, todos usando pseudônimos, se revezavam para escrever os mais de 900 textos que compõem as “Balas de Estalo”. Um desses autores foi Ferreira de Araújo, que era também médico e um dos donos da Gazeta. Resultado de um processo de modernização pelo qual a imprensa brasileira passou no final do século XIX, esse jornal foi fundado em 1875 com os objetivos de ser popular, barato e atingir os mais variados públicos. A Gazeta de Notícias defendia um compromisso com a leveza e com o humor e foi um dos primeiros jornais a ser vendido de forma avulsa nas ruas da cidade, ou seja, sem a necessidade de assinatura. Assim, já no fim da década de 1880, a Gazeta era um dos 3 maiores jornais do Rio de Janeiro. Alinhada aos princípios do jornal, a série “Bala de Estalos” também tinha um programa geral, uma ideia de unidade, que era zombar dos fatos inusitados do cotidiano e da política imperial, “ferindo docemente”, unindo a “artilharia e os confeitos” (lembrando aqui que “bala de estalo” é um tipo de doce). E, como Machado, já aos 44 anos e consagrado por Brás Cubas, entrou na série 3 meses após sua criação, ele teve que se adaptar ao que seus colegas já vinham desenvolvendo.

Página da Gazeta de Notícias

Essa série, então, foi um espaço onde Machado teceu seus comentários sobre a verdade, tanto na literatura, quanto na ciência ou ainda no próprio jornalismo, que, no momento também tentava afirmar um ideal de “modernidade”, pautando-se por uma neutralidade e ligando-se mais à notícia que à opinião. Esse espaço do jornal era oportuno, pois a “mentira” da crônica era publicada ao lado do fato “verdadeiro” da notícia, o que permitia ao leitor conhecer ao menos duas maneiras de se contar o mesmo acontecimento. Essa comparação evidenciava que quem narrava o fato fazia toda a diferença, ou seja, que a realidade não é objetiva e pode ser contada de diversas formas.

Lélio, o pseudônimo escolhido por Machado, mais do que proteger a identidade de seu autor (que, na época, era funcionário do Ministério da Agricultura), constituía uma voz ficcional muitas vezes distinta dos pensamentos de Machado e até pouco confiável, o que tornava os textos mais complexos. O “baleiro-filósofo”, como ficou conhecido Lélio entre os outros “baleiros”, via as ideias como nozes e as ia quebrando para desvendar seus conteúdos. Em várias de suas “Balas”, ele testava até os limites os argumentos das teorias científicas que se difundiam no Brasil daquele momento, procurando, assim, combater a atitude de aceitação sem crítica que a intelectualidade brasileira adotava. Ele também tentava mostrar que essas teorias tinham mais significado do que apenas explicar os fenômenos naturais que regem o mundo. Ao longo das “Balas de Estalo”, Lélio consultou um padre defunto sobre questões de latim, passeou pelo Rio de Janeiro com um grego do século VII a. C., reproduziu uma conversa de Deus com São Pedro sobre a sucessão de “remédios milagrosos”, conversou com os vermes de um cemitério e até tirou dúvidas científicas com o espírito de Newton. Esses poucos exemplos já dão pistas da inventividade de Machado e de como o absurdo pode revelar “verdades”, às vezes de modo mais eficaz que um discurso objetivamente sisudo, que pode deixar a “verdade” (com ou sem intenção) acabar escorregando.

Para dar um gostinho…

Um trecho da crônica de Lélio publicada em 25 de novembro de 1884:

O Sr. Dr. Castro Lopes escreveu um trabalho para provar que a atração não governa os astros, e o Sr. conselheiro Ângelo Amaral refutou-o com uma carta inserida, hoje, no jornal País.

Tratando-se de uma teoria de Newton, e não entendendo eu nada de astronomia, pareceu-me que o melhor de tudo era consultar o próprio Newton, por meio do espiritismo. Acabo de fazê-lo; e eis aqui o que me respondeu a alma do grande sábio:

– Estou acabrunhado. Imaginava ter deixado a minha ideia tão solidamente estabelecida, que não admitisse refutações do Castro Lopes, nem precisasse a defesa do Ângelo Amaral; enganei-me. Homem morto, é o diabo. […] A mim refutam-me: e (o que é pior) defendem-me. Palavra; isto tira toda a vontade de ser gênio…

Para saber mais

[1] Em entrevista de 2011, Márcia Abreu, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), falou sobre esse assunto ao apresentar o livro Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros, que ela ajudou a organizar (e com o qual ganhou o prêmio Jabuti) a respeito da história da imprensa no Brasil. Entrevista está disponível em:  https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2011/ju514_pag67.php

[2] Mais informações sobre essa questão podem ser conferidas no artigo de Maria Helena de Almeida Freitas, “Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros”. O artigo foi publicado na revista Ciência da Informação, em 2006. Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/1113/1244

[3] Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani, no artigo “Aspectos históricos da divulgação científica no Brasil”, abordam esse assunto. O texto foi publicado no livro Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil, em 2002.

[4] A partir desse momento, exceto quando indico outras referências nas 3 notas seguintes, este texto de divulgação se baseia nas ideias discutidas por Ana Flávia Cernic Ramos, em seu livro As máscaras de Lélio: política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886), publicado em 2016. Esse livro é resultado da pesquisa de doutorado em História Social da Ana Flávia, realizada na Unicamp.

[5] Para apresentar brevemente a crônica, utilizei alguns textos como base. Para quem quiser se aprofundar no assunto, aqui vão as referências: “Fragmentos sobre a crônica” de Davi Arrigucci Júnior, publicado em 1987 no livro Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência; “A vida ao rés-do-chão”, de Antonio Candido, publicado em 1992 no livro A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, e “Ensaio e crônica” de Afrânio Coutinho, publicado em 1986 no livro A Literatura no Brasil.

[6] Recentemente, foram descobertas crônicas ainda inéditas de Machado. A fascinante descoberta é fruto de anos de pesquisa de Sílvia Maria Azevedo, que conseguiu atribuir a autoria desses textos, de fato, a Machado e acabou de publicá-los no livro Badaladas do Dr. Semana, de Machado de Assis, de 2019. Para quem se interessar, há este texto apresentando o livro de Sílvia Maria: https://jornal.usp.br/artigos/novas-badaladas-de-machado/ .

[7] Trecho baseado em “O folhetinista”, uma das primeiras crônicas de Machado, de 1859, e em outra crônica sua, “O nascimento da crônica”, de 1877. 

As mulheres dos estudos literários: uma conversa com Vera Lúcia de Oliveira

atravessar cada corpo
tocar o espesso do osso
que é nosso e do outro
estar onde se padece
com fúria de paciência
estar onde se lavra uma horta
onde se lava uma roupa
onde se reza e se cura uma dor
estar onde se nasce e onde se fenece
e ser nesse morar e estar nesse morrer

Vera Lúcia de Oliveira, em Minha língua roça o mundo

Há um ano conheci pessoalmente Vera Lúcia de Oliveira, durante o encontro do Mulherio das Letras Europa. Ali conheci seu comprometimento com o Mulherio das Letras, mas também sua poesia, sua atuação como professora e pesquisadora, seu empenho político. Essa conversa surge então a partir desse encontro e da admiração que tenho por seu trabalho. Ela é uma das mulheres dos Estudos Literários que nos inspiram força e coragem.

Vera Lúcia é poeta e publicou, entre diversas obras em português e em italiano, o livro A chuva nos ruídos (vencedor do Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras de 2005) e seu livro mais recente, Minha língua roça o mundo, de 2018. Também é docente e pesquisadora da Universidade de Perugia (UNIPG), na Itália, e publicou ensaios acadêmicos, entre eles sua tese de doutorado, que deu origem ao livro Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, de 2002. É ainda organizadora de diversas antologias publicadas no Brasil e na Itália e tradutora de poesia brasileira para a língua italiana.

Vera Lúcia de Oliveira durante Encontro do Mulherio das Letras Europa 2018 [fonte: acervo].
Marca Páginas: Vera, nós nos conhecemos em um encontro do Mulherio das Letras na Europa, em 2018. Nessa ocasião, você fez uma apresentação muito interessante sobre o surgimento do Mulherio, refletindo sobre quais eram as intenções do projeto e como ele foi se organizando desde o início. Você poderia explicar para o Marca Páginas o que é o Mulherio das Letras e contar um pouco da história de como ele foi criado no Brasil?

Vera Lúcia: Essa pergunta requer um ensaio para respondê-la e tenho um texto publicado com o título “O Mulherio das Letras”[1], onde tento traçar os elementos de novidade desse movimento, que é um dos fenômenos culturais mais singulares e interessantes da atualidade brasileira. Nasceu quase espontaneamente, a partir de uma consideração informal feita pela escritora Maria Valéria Rezende, de que as mulheres que atuam no mundo das letras no país deveriam se unir mais e trabalhar em conjunto, já que continuam a ser discriminadas em amplos setores da sociedade. De fato, a maior parte das obras literárias publicadas pelas grandes editoras, são de escritores e os prêmios literários são quase sempre atribuídos aos mesmos, e raramente as colegas mulheres conseguem os mesmos espaços e a mesma visibilidade, não obstante a qualidade das obras de autoria feminina. Foi, portanto, a partir dessa constatação que nasceu a ideia de organizar um evento em João Pessoa, cidade em que vive Maria Valéria Rezende, evento que pudesse congregar as escritoras e as mulheres em geral que atuam no mundo das letras. Ele foi um grande sucesso e isso fez com que rapidamente essa rede de mulheres intelectuais, professoras, editoras, ilustradoras, jornalistas, artistas plásticas, compositoras, etc., encontrassem, no grupo “Mulherio das Letras”, um canal de comunicação, de troca de ideias e experiências, de publicações. Hoje há muitos grupos, também regionais, como o Mulherio das Letras de São Paulo, de Brasília, do Paraná, e assim por diante, onde as mulheres se unem para promover eventos de interesse e importância, como o que realizamos em Perugia, em outubro de 2018.

Marca Páginas: Hoje, vemos de fato que o Mulherio das Letras cresceu muito e ganhou novos espaços para além do Brasil. Seus desdobramentos estão presentes na Europa, nos Estados Unidos, entre outros lugares. Como você entende essa expansão do projeto?

Vera Lúcia: Entendo essa rápida expansão por uma exigência que as mulheres tinham de formar uma rede de contatos e intercâmbios. Nós aqui na Europa, por exemplo, estamos de certa forma isoladas. Inseridas, sim, nos vários países, mas distantes do Brasil. Somos estrangeiras aqui e todas nós vivemos experiências similares, de inicial dificuldade de inserção nas respectivas realidades culturais, de estranhamento, às vezes de nostalgia e solidão, às vezes simplesmente de vontade de falar com alguém na própria língua. Então, esse segundo encontro (o primeiro se realizou em 2017, em Paris) deu muito certo, para mim foi intenso e bonito e conheci mulheres batalhadoras, que estão fazendo e acontecendo onde quer que estejam. Escrevem, publicam, organizam feiras literárias, fundam editoras, são realmente ativas.

Marca Páginas: Você é poeta e também docente na Universidade de Perugia, ou seja, duas atuações bastante relacionadas à exposição pública em ambientes literários e acadêmicos. Enquanto mulher, de que maneira você acha que seu gênero impactou e impacta nas suas relações profissionais?

Vera Lúcia: No meu caso, até hoje nunca me senti discriminada como mulher no ambiente de trabalho aqui na Itália. Mas, com certeza, em outros contextos, sim, muitas vezes até no dia a dia, com certas piadinhas sobre o gênero feminino que todas conhecemos.

No Brasil, no entanto, sinto que há mais misoginia e machismo e que a falta de respeito é sentida até andando na rua, com homens que se sentem no direito de fazer comentários sobre como nos vestimos. Quando era adolescente, e tímida, tinha horror desses comentários e um dia dei com a bolsa na cabeça de um jovem que, além do comentário, me tocou o seio. Voltei-me na hora e bati a bolsa com tanta força na cabeça que ele saiu até meio zonzo. Desde aquele dia, aprendi a me defender nessas situações.

No âmbito da escrita, sinto que para uma mulher é mais difícil, porque o mundo das letras ainda é predominantemente masculino. É difícil ver uma mulher reitora, por exemplo, ou diretora de jornal.

Vera Lúcia de Oliveira [Fonte: acervo].
Marca Páginas: A experiência de dar aulas sobre literatura brasileira e portuguesa em uma universidade estrangeira certamente também é um tema muito interessante. Como docente e pesquisadora, o que você teria a dizer sobre a recepção da literatura brasileira no exterior atualmente?

Vera Lúcia: Gosto muito do meu trabalho, gosto da pesquisa e da relação com os alunos. Na verdade, desde pequena queria ser escritora e comecei a escrever cedo. Mas entendi que é muito difícil viver de literatura e ainda mais se o gênero que se escolhe é o poético. Então, pensei que a forma mais inteligente de ficar no mundo da escrita, de ser escritora, era escolher um tipo de trabalho que me deixasse próxima à literatura. Optei pelo ensino universitário, onde aprendi e aprendo muito todos os dias. Além disso, vivendo longe do Brasil, ensinar cultura e literatura brasileira é como estar próxima ao meu universo, onde reúno dois mundos, aliás três, porque ensino também literatura portuguesa. Estou dentro e fora, ao mesmo tempo, desses países, e tenho por isso uma dupla perspectiva.

Quanto à recepção, não se pode pensar que na Itália todos conheçam nossos escritores. Sabem pouco e, sobretudo nos últimos anos, depois do chocante impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Brasil perdeu prestígio. Durante os governos Lula e Dilma o Brasil era notícia nos jornais, porque o país cresceu, a economia se expandiu, havia a presença do governo em encontros internacionais, a projeção era enorme. Isso fez com que aumentasse o interesse pela língua portuguesa e pela literatura do nosso país, o número de alunos cresceu, as universidades italianas passaram a oferecer mais bolsas para os estudantes daqui, porque, de fato, o mercado começou a pedir profissionais na área luso-brasileira. Agora, perdemos tudo isso, infelizmente. Às vezes percebo que quem vive no Brasil não tem a percepção do que perdemos em termos de interesse e prestígio no exterior. Claramente isso teve um impacto, porque os alunos diminuíram em praticamente todos os países europeus e começaram a cortar cadeiras de ensino de literatura brasileira.

Marca Páginas: Minha última pergunta é, na verdade, uma pergunta que tenho feito a mim mesma e, por isso, gostaria de criar aqui uma troca de pontos de vista. São tempos difíceis no mundo e, sobretudo, no Brasil. A ascensão de um governo conservador e despreparado politicamente para assumir essa responsabilidade nos deixa bastante preocupadas com o rumo do nosso país. Além disso, vemos na Itália e em outros países exemplos dessa mesma onda de conservadorismo retrógrado. Na sua opinião, enquanto poeta e professora, o que é possível se fazer em um momento como esse? Você acredita no poder de esclarecimento e transformação que a educação e a literatura possuem?

Vera Lúcia: Como disse acima e você mesma confirma, a situação é complexa e no momento o nosso trabalho é ainda mais difícil. Os universitários são alunos que se informam mais e é necessário falar de forma aberta e crítica sobre o que acontece em nosso país. Por outro lado, entendo que a literatura tem um fundamental papel humanizador e ler os nossos escritores contemporâneos é ler o Brasil. Faço o meu trabalho com responsabilidade e sei que podemos fazer muito no sentido de incentivar os alunos a desenvolver o senso crítico, a ver mais, a se interessar mais pelo mundo, a se dedicar e a estudar os fenômenos que nos envolvem, porque o mundo hoje é de fato um corpo em que tudo está interligado. O que acontece no Brasil tem reflexo aqui na Itália, o que acontece na África tem reflexo no Brasil, e assim por diante, não se pode mais falar de fenômenos isolados. A onda conservadora retrógrada, como você bem define, é contagiosa. Claramente, ela é fruto de um poder econômico e político, que cerceia e censura, nos faz perder direitos adquiridos, discrimina, simplifica a visão de mundo das pessoas, tenta anular as diferenças ou vê-las como algo que deve ser extirpado. Um intelectual tem que estar presente, destrinçar esses mecanismos de exclusão e repressão.

* Para mais informações sobre Vera Lúcia de Oliveira: <http://www.veraluciadeoliveira.it>.

[1] “O Mulherio das Letras”. Em Revista de Letras Norte@mentos, Universidade Federal de Mato Grosso, Sinop, vol. 11, 2018, pp. 47-61. Disponível em: <http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/norteamentos/article/view/3252>.

Votem em branco e vencerá a cultura, por Pier Paolo Pasolini (tradução Cláudia Alves)

Votem em branco e vencerá a cultura*

Pier Paolo Pasolini

Tradução: Cláudia Alves

Caros amigos,

Hoje vocês votam o Prêmio Strega. Admito que não é algo de grande importância, embora eu também não ache que tenha algo de “cômico”, como diz incompreensivelmente certo jornal romano da tarde.

Se não é importante, é indicativo. Pelas seguintes razões:

  1. Os literatos italianos têm, junto à opinião pública, uma péssima fama: são sempre vistos inevitavelmente em uma chave humorística, como personagens sedentários, fofoqueiros, mundanos, preguiçosos, aquiescentes, vaidosos, esnobes, medíocres e também mesquinhos. Em resumo, um tipo de peso morto na sociedade italiana, um tipo de setor do zoológico ou do folclore, ainda que não sejam da pior espécie (por serem inofensivos).
  2. Objetivamente, os literatos italianos traíram certas ilusões, nascidas na década passada, quando, em determinado momento, parece que substituíram os padres como guias espirituais. Com a queda da potencial hegemonia comunista – à qual se devia até então o sucesso literário -, trata-se na realidade de um novo retorno à ordem. E não se pode dizer que o espírito de humor, pelo qual todo jornalista médio é tomado ao falar dos literatos em geral, seja totalmente sem fundamento.
  3. Sobre esse ambiente familiar (provinciano) da literatura italiana, começa a se formar um novo momento histórico, relacionado à relação entre literatura e opinião pública, quando – após um breve e confuso intervalo de tempo – vai se substituindo a tendência cultural hegemônica do PCI (ou seja, a política do engajamento, já abandonada pelo próprio PCI) por uma nova hegemonia, a da indústria cultural. Alguns manager tomaram o lugar de Togliatti ou de Alicata. Mas Togliatti e Alicata, mesmo que cínicos, diplomáticos, pragmáticos, eram ainda homens de cultura. Foram os últimos representantes daquele tipo de intelectual (ao qual, afinal, toda a minha geração pertence) que fora descrito por Tchekhov e que Lenin conhecera e analisara. O intelectual humanista, de nascimento ou de origem provinciana e camponesa – pré-industrial.

Em geral, os manager da indústria cultural não são, por sua vez, homens de cultura. E justamente por isso – mesmo que não sejam mais jovens do que nós – pertencem a uma nova espécie de intelectual: o intelectual que nem Tchekhov, nem Lenin conheceram. O intelectual não mais humanista, não mais humano, eu diria. Típico fenômeno de uma civilização técnica, que está mercantilizando a cultura. Ou seja, a indústria cultural só pode ser dirigida por quem está fora daquilo que historicamente ainda é, para nós, a cultura.

Por tais razões, digo a vocês, caros colegas literatos, que chegou o momento de se fazer um exame de consciência não novecentista.

A hegemonia cultural de esquerda acabou, com seus mitos e seus valores? Pois bem. Está nascendo daí uma outra hegemonia, aquela da indústria cultural, com seus mitos (totalmente cínicos e materiais) e seus valores (inevitavelmente falsos)? Pois bem. Isso quer dizer que devemos agir fora de qualquer forma hegemônica. Aqui me vem espontaneamente uma palavra que odeio, porque se tornou senhal: autogestão. O literato italiano deve finalmente se politizar por meio de sua própria decisão. Com isso não quero dizer que ele deva fazer política, mas sim que deve se inventar e levar adiante uma política cultural que reivindique sua autonomia e sua liberdade.

O que hoje ameaça essa autonomia e essa liberdade das esquerdas, não de maneira indireta e no final das contas civil (a discussão e o debate aconteciam em um nível humanístico comum), é a fúria produtiva e consumista de uma cultura de outra natureza, que acabará por desfigurar completamente as características literárias, mesmo que modestas, da nossa Nação provinciana, e distorcer todos os seus valores, determinando-lhes novas hierarquias.

Como tal ameaça é grave e iminente – e não distante, a ponto de observá-la com o mesmo ceticismo de costume, considerado tão cômico pela opinião pública -, basta observar alguns dos casos literários-humanos criados recentemente durante a campanha eleitoral do Prêmio Strega, feita justamente sob a brutal sede de sucesso de uma editora. (Penso de maneira explícita em alguns críticos de revistas, amigos meus, que ainda assim quero amar.) 

Em resumo, a brutalidade da indústria cultural não deforma apenas os valores literários, mas chega a deformar também as consciências e a degenerar a humanidade. Nada além de guias espirituais. Fomos reduzidos, mais uma vez, a bobos: não a bobos da corte (onde pelo menos existia a alternativa do outro, quer dizer, da pobreza e da realidade), mas a bobos do neocapitalismo (onde o outro é formado pelo consumidor e pela irrealidade).

Votação do Prêmio Strega, em 1968. L’occhio del gatto, de Alberto Bevilacqua, foi o livro vencedor.  

Tudo isso me faz pensar, em conclusão, que o Prêmio Strega não é aquela besteira sem importância – assembleia de pura vaidade – que a indiferença política (franja podre do humanismo) quer nos fazer acreditar através da imprensa conservadora. Não: o caso do Prêmio Strega é um caso de consciência e diz respeito não apenas ao futuro pessoal de um único literato enquanto literato, mas também ao seu futuro enquanto homem e à sua função pública de cidadão.

A batalha perdida com o Prêmio Strega (e não posso ser otimista aqui) será uma batalha perdida não digo pela literatura italiana, mas pela cultura italiana. Significa que de agora em diante os livros serão escritos por certos editores; significa que tudo aquilo que uma cultura literária poderia oferecer a uma nação será totalmente negativo, pois irá se constituir de produtos medianos de consumo. Tudo aquilo que faz parte da real função de um poeta, mesmo que menor (protesto, contestação, invenção, inovação, não reconhecimento, problemática, escândalo, religiosidade, dúvida, maldição, vitalidade), irá desaparecer.

Portanto, caros amigos jurados, deixem que as pessoas que não têm nada a ver com literatura, com cultura e com qualquer moral inclinada à verdade votem a favor do livro que o editor e os organizadores do prêmio, já evidentemente do seu lado, querem que vença. Mas vocês, homens de cultura, votem em branco. Este seria o primeiro protesto coletivo da sociedade literária italiana, seria o seu primeiro título de mérito coletivo.

Na verdade, seriam suficientes os 50% mais 1 dos votos brancos para que a literatura italiana – representada, infelizmente, em parte e arbitrariamente pelo júri do Strega – conseguisse sua primeira vitória, manifestasse pela primeira vez a sua decisão de ser dona de si mesma e a sua escolha de lutar por uma causa que é evidentemente, ainda, a causa correta.

* Publicado no jornal Il Giorno, em 4 de julho de 1968. Integra também a coletânea Saggi sulla politica e sulla società, na coleção I Meridiani (Milão: Arnaldo Mondadori Editore, 1999), pp. 159-162. Para mais informações sobre a participação de Pasolini no Prêmio Strega de 1968, confira o post: https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/10/08/em-nome-da-cultura-me-retiro-do-premio-strega-por-pier-paolo-pasolini-traducao-claudia-alves/     

   

Cartoneras: a publicação de livros como instrumentos de resistência

Ao longo dos últimos meses, temos visto uma série de notícias sobre a crise do mercado editorial no Brasil. Sem entrar na discussão sobre o que é real e o que é especulação nesse cenário, o fato é que grandes redes e conglomerados editoriais brasileiros (e é preciso deixar claro: sustentados muitas vezes por empresas e capitais estrangeiros) estão lidando com dívidas exorbitantes, fechamento de lojas, demissão de funcionários e muitas outras perdas pelo caminho. Com isso, nós, leitoras e leitores, também perdemos alguma coisa.

Porém, paralelamente a essa situação, existe um respiro no mercado editorial com o qual ganhamos muito mais e que, por isso, merece nossa atenção. Pequenas editoras independentes têm ocupado os espaços literários em nosso país com livros de qualidade, produzidos segundo uma lógica totalmente diversa daquela praticada por editoras de grande porte. E é através da existência desse outro cenário editorial que as Cartoneras têm ganhado cada vez mais destaque, com uma proposta de publicação baseada em critérios bastante originais.

No início dos anos 2000, em Buenos Aires, na Argentina, surgiu a cooperativa Eloísa Cartonera com o objetivo de encontrar alternativas à crise econômica que ocorria no país e, ao mesmo tempo, tornar a literatura mais acessível para a população. Foi assim que se concretizou a ideia de utilizar papelão, recolhido nas ruas da cidade por catadoras e catadores de papel, para criar livros costurados e pintados à mão individualmente. O papelão, que a princípio seria descartado como lixo, ganha novo significado e se transforma em capas coloridas e únicas para livros impressos a um custo reduzido. Dessa forma, tal processo de confecção possibilita, além da reutilização de materiais recicláveis, a comercialização de livros por preços mais baixos. Não é à toa que, em pouco tempo, o projeto adquiriu importância e reconhecimento e publicou, além de escritoras e escritores estreantes, nomes renomados da literatura argentina, como Ricardo Piglia e César Aira.

Antologia do poeta brasileiro Haroldo de Campos, publicada em edição bilíngue pela Sarita Cartonera (Lima, Peru), em 2005

Foi em 2006, por ocasião da 27a Bienal de São Paulo, cujo tema era “Como viver junto”, que a experiência de Eloísa Cartonera finalmente chegou ao Brasil e começou a se estabelecer aqui graças ao trabalho de Lúcia Rosa. Em 2007, a partir da parceria entre Lúcia, Peterson Emboava e outros integrantes da cooperativa argentina, surge enfim a Dulcinéia Catadora, editora pioneira na editoração cartonera em nosso país.

Dulcinéia Catadora está localizada em uma cooperativa de reciclagem, na cidade de São Paulo. Já publicou cerca de 130 títulos e vendeu mais de 12 mil exemplares, conforme números informados no site da editora. A equipe também tem realizado oficinas em outros ambientes, divulgando e reunindo cada vez mais apoiadores. No catálogo de publicações, entre livros de poesia, contos e teatro, vemos nomes de autores estreantes, que graças à editora puderam ter seus trabalhos publicados pela primeira vez, assim como estão presentes grandes figuras da literatura brasileira contemporânea, como Alice Ruiz, Plínio Marcos e Manoel de Barros.

Tive a oportunidade de conversar, por e-mail, com Lúcia Rosa no final do ano passado, quando ela me contou um pouco mais sobre o coletivo. Lúcia explicou que a editora norteia suas atividades seguindo valores como “troca, sustentabilidade, luta contra a invisibilidade, compartilhamento do sensível, acesso à literatura e construção de vias alternativas para a divulgação de autores não inseridos no mercado editorial tradicional”. Por se sustentar em ideais como esses, ela afirma que a Dulcineia Catadora é “um coletivo com uma ação ativista”.

Segundo essa perspectiva, o livro é então tratado como um “instrumento de resistência”, que foge da “produção em larga escala, cada vez mais sem sentido,  resultado de uma produção fria, massificante”. De acordo com Lúcia, essa atitude de resistência também molda o processo de seleção dos títulos que serão publicados, afinal prioriza-se o experimentalismo de quem escreve, mais do que a preocupação por vender livros: “como o lucro não é nosso objetivo, ficamos livres para divulgar autores que não desenvolvem uma literatura de fácil apelo”.

Fonte: dulcineiacatadora.com.br

Movida por essa possibilidade de ressignificação do objeto livro, a escritora ítalo-brasileira Francesca Cricelli publicou pela Dulcinéia Catadora, no início deste ano,  sua primeira prosa, Errância. No livro são narradas suas experiências de deslocamento e viagem, tema que pauta suas experiências pessoais e literárias desde que se mudou para a Itália quando ainda era criança. Na entrevista que realizamos em dezembro do ano passado, Francesca contou como aceitou o convite para publicar esse livro por uma editora cartonera antes de publicá-lo por uma editora não artesanal. Ela acredita que “usar materiais recicláveis nos ajuda a ter uma consciência maior”, o que altera a experiência de publicação: “conhecer pessoalmente quem fabricou e editou o seu livro é algo que transforma a relação com o objeto”.

Francesca declarou ainda que acredita na importância de sermos “cupidos da leitura”, facilitando o “enamoramento entre leitor e livro”. Para a escritora, é essencial estarmos atentos à formação de leitores e, nesse sentido, Lúcia aposta na aproximação através do trabalho artesanal que envolve cada publicação cartonera: “para chegar às mãos do leitor os livros precisam ir além, somando linguagens; precisam ter como diferencial aquela fatura artesanal, cuidadosa, criativa e pessoal que marca as produções independentes”.

Errância, de Francesca Cricelli, publicado por Dulcinéia Catadora em 2018

O processo de fazer esses livros chegarem às mãos dos leitores se torna assim um movimento que também passa a ser ressignificado, mostrando que o encontro entre leitores e livros não se dá apenas em ambientes virtuais ou livrarias tradicionais. Para que isso possa acontecer, Francesca considera importante a “itinerância editorial” possibilitada pela existência de feiras e eventos literários que modificam a cena atual da literatura no Brasil. “Há uma proliferação de eventos literários em que a venda dos livros acontece em paralelo; acho que estamos há um tempo inventando novas formas de existirmos no campo editorial”, declara a escritora. Nesses ambientes, ela destaca ainda como é possível encontrar momentos “de alegria e efusividade, pois compram-se os livros, conhecem-se autores e editores”, resultando em trocas diretas entre as várias etapas que fazem parte da publicação de um livro.

A experiência das cartoneras tem ainda conquistado novos territórios, por exemplo, viajando por outros continentes e motivando pesquisas em universidades. A pesquisadora Liz Gray, doutora em Literatura Comparada pela Brown University, defendeu recentemente sua tese sobre as poéticas de intervenção na América Latina, pensando como as crises econômicas causadas pelo modelo neoliberal de produção e consumo acabaram por motivar nos países latino-americanos justamente o surgimento de práticas alternativas de ativismo, as quais estão relacionadas à arte e à literatura. Parte de sua pesquisa se volta à produção cartonera, inclusive às iniciativas brasileiras, como a de Dulcinéia Catadora.

Além disso, pude assistir, em 2018, a uma apresentação da professora e pesquisadora Paula de Paiva Limão, da Università degli Studi di Perugia, na qual foi abordado o tema das editoras cartoneras. Paula mencionou encontros e eventos realizados recentemente na Europa e nos Estados Unidos, nos quais a produção cartonera foi o tema central, o que demonstra a disseminação desses projetos ao redor do mundo. Outro ponto analisado por Paula foi como existe uma característica que unifica essa prática em todas as experiências analisadas por ela: as Cartoneras criaram espaços onde circulam a voz e o trabalho de mulheres. Desde as catadoras de papelão, relegadas às margens da sociedade não apenas por seu gênero mas também por sua classe social, até a escritoras e editoras, que participam da publicação desses livros, observamos o envolvimento de mulheres que assumem uma posição essencial na editoração cartonera.

Projetos como esses, entre tantas outras iniciativas menores e independentes que têm surgido nos últimos anos, mostram que uma outra forma de existência é possível, em alternativa ao sistema dominante que vê na publicação de livros uma oportunidade de lucrar com o consumo de literatura. É uma luta desproporcional tentar medir forças com o capital e com o consumismo, mas não podemos deixar de participar de uma batalha só porque ela vai ser difícil de vencer. Seguimos!

Para saber mais sobre as Cartoneras:

A viagem de Pier Paolo Pasolini ao Brasil

Em março de 1970, um avião vindo da Itália, com destino a Argentina, fez um pouso de emergência na cidade de Recife, no litoral brasileiro. Nesse avião, viajavam Pier Paolo Pasolini e Maria Callas, ambos a caminho do Festival de Cinema de Mar del Plata, no qual apresentariam ao público o filme Medea (1969). Pasolini havia escrito e dirigido o filme e Maria Callas, grande cantora lírica, havia atuado como a protagonista Medeia. Durante as poucas horas em que ficaram confinados ao aeroporto pernambucano, ambos tiveram as suas primeiras impressões em território brasileiro. E dessa experiência improvável, resultado de um pouso surpresa, veio a inspiração para que Pasolini, que além de cineasta era também poeta, escrevesse dois poemas sobre o país que ali conhecera: “Comunicato all’Ansa (Recife)” e “Il piagnisteo di cui parlava Marx”. E é assim que o poeta descreve como se sentiu em sua chegada:

no aeroporto em construção, passando

diante de um grupo de operários que trabalham, dos olhos

que se levantam aos passageiros

É assim que o Brasil me saúda

(Transumanar e organizzar, 1971; tradução minha).

Pasolini associa as suas primeiras experiências no Brasil a essa espécie de porta-retrato do país. A imagem criada pelo poeta mostra que, dentre todas as primeiras observações que ele teve ao aterrissar e adentrar o aeroporto, foi o olhar dos operários, trabalhando na construção enquanto observavam os passageiros recém chegados, que lhe saudou, em nome do país, pela primeira vez.

Esses dois poemas que mencionam a estadia do cineasta em Recife estão publicados no livro Transumanar e organizzar, de 1971. E nesse mesmo livro, quase no final, encontramos ainda mais um longo poema, “Gerarchia”, em que o Brasil é novamente referenciado. Porém, ao invés de se referir às horas passadas dentro do aeroporto, nesse outro poema a referência é a um momento posterior, quando do retorno do escritor à Itália após o festival. A essa altura da viagem e já sozinho, Pasolini decide fazer uma breve parada de poucos dias nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, e “Gerarchia” é a descrição do que Pasolini viu e viveu em terras cariocas.

Nesse poema, reproduzido a seguir, o autor italiano descreve como foi ser guiado por um rapaz brasileiro (algo como Dante ao ser guiado por Virgílio) ao subir até uma favela, onde o autor teve a oportunidade de conhecer uma casa genuinamente brasileira, construída nas periferias da cidade. Esse jovem que Pasolini conheceu nas areias de Copacabana, Joaquim, integraria o que o poeta chamaria de hierarquia do país, composta em uma de suas extremidades por velhos intelectuais burgueses, semelhantes ao próprio poeta italiano (como ele mesmo declara) e, na outra, por jovens proletários, como Joaquim. As diferenças entre as duas classes originariam uma ambiguidade, o “nó inextricável”, que comporia a sociedade brasileira, segundo a visão do escritor.

Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 1969 (Fonte: Acervo O Globo)

É interessante observar que o poeta, ao descrever suas impressões sobre a sociedade brasileira, reconhece recorrentemente algo de sua própria nacionalidade, a ponto de se dizer concidadão brasileiro e de se referir ao Brasil como sua “pátria” e “terra natal”. O que haveria de similar entre o Brasil e a Itália para Pasolini? O que seria essa ambiguidade que o poeta percebe ao visitar uma favela no Brasil e que, de alguma forma, em sua opinião, se aproxima de características que ele tão bem conhecia em seu próprio país?

Uma possibilidade é pensar que, nos anos de 1970, isto é, contemporaneamente à sua passagem pelo Brasil, Pasolini estava bastante atento às mudanças culturais que ocorriam na Itália, sobretudo nas periferias (borgate) e no Sul do país, denominando o conjunto de transformações em curso de “mutação antropológica”. Nas palavras do escritor, o processo de industrialização tecnológica pelo qual o seu país passou após o fim da Segunda Guerra Mundial foi responsável por uma transformação econômica e social profunda na sociedade italiana, à que ele dá o nome de mutação. Entre as consequências desse processo estariam a padronização cultural dos jovens italianos (devido à influência da televisão e da escolarização, por exemplo), e à busca desenfreada por bens de consumo. O aburguesamento da população, fruto dessa padronização cultural, seria ainda o fim de uma época, pois diante da força do consumismo os comportamentos do passado, ligados a certas tradições, não poderiam mais resistir.

Pasolini em uma periferia de Roma, em 1969 (Foto de Carlo Bavagnoli)

Esse cenário devastador foi, sobretudo depois dos movimentos estudantis de 1968, a linha argumentativa preponderante nas obras de Pasolini. Então quando o poeta reconhece algo de similar entre a sua cultura e aquela vivida no Brasil é justamente nesse universo de referências que ele está interessado. Por isso, ao afirmar a ideia de um país latino criado “à imagem e semelhança do mundo europeu”, isto é, do seu próprio país, Pasolini nos leva a pensar que há algo na sociedade brasileira que se assemelha ao contexto consumista e padronizante que ele via impactar cada vez mais a sociedade italiana da mesma época.

Ainda que resguardadas as devidas particularidades históricas de cada país (as quais, sabemos, são muitas), haveria algo que nos aproximaria enquanto nações capitalistas, isto é, nações que fazem parte de um mesmo sistema econômico selvagem, baseado na produção e no consumo de mercadorias. A crítica de Pasolini é justamente às consequências culturais que esse regime econômico teria causado, padronizando todas as pessoas a partir do momento que todos consumiriam e se comportariam da mesma forma, pois não haveria outra alternativa.

Na Hierarquia social, essa padronização poderia ser vista sobretudo no comportamento dos jovens. No caso da Itália, Pasolini criticava a forma como os jovens que viviam nas borgate romanas ou no Sul do país se tornavam cada vez mais iguais fisicamente aos jovens do Centro, já que as diferenças culturais entre ambos haviam sido eliminadas pelo consumo e pela lógica burguesa. Parece que há a mesma linha crítica quando o poeta se refere ao Brasil, de forma que um jovem da Favela do Rio de Janeiro seria bastante semelhante a um jovem do Centro da cidade.       

O diálogo entre as duas nacionalidades nos faz então questionar como é possível que níveis de desenvolvimento tão distantes pudessem ser aproximados pelo escritor. Porém, acredito ser inegável que, com o passar dos anos e com cada vez mais intensidade, nós, brasileiros ou italianos, continuamos a habitar esse mundo que Pasolini tanto criticava. Um mundo igualmente nocivo a todas as tradições e as diferenças, como o escritor denunciava, mas a que hoje não chamamos mais de padronizado e sim de globalizado.

Hierarquia (Pier Paolo Pasolini)

Se chego a uma cidade

de além-mar

Muitas vezes chego a uma cidade nova, levado pela dúvida.

Transformado da noite para o dia em peregrino

de uma fé em que não creio;

representante de uma mercadoria depreciada há tempos,

mas é grande, sempre, uma estranha esperança –

Desço do avião com o passo do culpado,

o rabo entre as pernas, e uma eterna vontade de mijar,

que me faz andar meio dobrado com um sorriso incerto –

É preciso livrar-se da alfândega e, muitas vezes, dos fotógrafos:

prática ordinária que cada qual cuida como uma exceção.

Depois o desconhecido.

Quem passeia às quatro da tarde

por canteiros cheios de árvores

e alamedas de uma desesperada cidade aonde europeus pobres

vieram para recriar um mundo à imagem e semelhança do seu,

impelidos pela pobreza a fazer do exílio uma vida?

Com um olho em minhas coisas, em minhas obrigações –

Depois, nas horas vagas,

começa minha busca, como se também ela fosse uma culpa –

Mas a hierarquia está bem clara em minha cabeça.

Não há Oceano que resista.

Nessa hierarquia os últimos são os velhos.

Sim, os velhos, a cuja categoria começo a pertencer

(não falo do fotógrafo Sardeman que com a mulher

já íntima da morte me acolhe sorrindo

no estudiozinho de sua vida inteira)

Sim, há uns velhos intelectuais

que na Hierarquia

se põem à altura dos mais belos michês

os primeiros a ocupar os pontos mais cobiçados

e que como Virgílios conduzem com popular delicadeza

alguns velhos são dignos do Empíreo,

dignos de estar ao lado do primeiro garoto do povo

que se dá por mil cruzeiros em Copacabana

ambos são o meu guia

que me levando pela mão com delicadeza,

a delicadeza do intelectual e a do operário

(quase sempre desempregado)

a descoberta da invariabilidade da vida

necessita de inteligência e de amor

Vista do hotel da Rua do Rezende Rio –

a ascese precisa do sexo, do pau –

aquela estreita janela do hotel em que se paga o quartinho –

se olha por dentro o Rio, num aspecto de eternidade,

a noite de chuva que não traz frescor,

e molha as ruas miseráveis e os destroços,

e as últimas cornijas art nouveau dos portugueses pobres

milagre sublime!

E assim Josvé Carrea é o Primeiro na Hierarquia,

e com ele Harudo, vindo menino da Bahia, e Joaquim.

A Favela era como Cafarnaum sob o sol –

Percorrida por córregos de esgoto

os barracos amontoados

vinte mil famílias

(ele na praia me pedindo cigarro como um prostituto)

Não sabíamos que aos poucos revelaríamos uns aos outros,

prudentemente, uma palavra após a outra

dita quase distraidamente:

eu sou comunista, e: eu sou subversivo;

sou soldado num destacamento especialmente treinado

para combater subversivos e torturá-los;

mas eles não sabem;

as pessoas não se dão conta de nada;

só pensam em viver

(me fala do subproletariado)

A Favela fatalmente nos esperava,

eu grande conhecedor, ele guia –

seus pais nos acolheram, e o irmãozinho pelado

recém-saído de trás do oleado –

ah, sim, invariabilidade da vida, a mãe

me falou como Maria Lìmardi, preparando a sagrada

limonada para o hóspede; a mãe branca mas ainda de carnes jovens;

envelhecida como envelhecem as pobres, e no entanto menina;

sua gentileza, e a de seu companheiro,

fraternal com o filho que só por sua vontade

era agora uma espécie de mensageiro da Cidade –

Ah, subversivos, procuro o amor e encontro vocês.

Procuro a perdição e encontro a sede de justiça.

Brasil, minha terra,

terra de meus verdadeiros amigos,

que não se ocupam de nada

ou se tornam subversivos e como santos são cegados.

No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade

imagem do mundo que de velho se faz jovem,

ponho os velhos, os velhos burgueses

pois um velho popular da cidade permanece jovem

não tem nada a defender –

anda vestido de regata e calças aos trapos como Joaquim, o filho.

Os velhos, minha categoria,

quer queiram ou não –

Não se pode escapar ao destino de possuir o Poder,

ele se põe por si

lenta e fatalmente na mão dos velhos,

ainda que tenham as mãos furadas

e sorriam humildemente como mártires sátiros –

Acuso os velhos de terem de todo modo vivido,

acuso os velhos de terem aceitado a vida

(e não podiam não aceitá-la, mas não há

vítimas inocentes)1

a vida, acumulando-se, produziu o que ela queria –

acuso os velhos de terem feito a vontade da vida.

Voltemos à Favela

onde ou não se pensa em nada

ou se quer ser mensageiro da Cidade

lá onde os velhos são pró-americanos –

Entre os jovens que jogam bola mal

diante de elevações encantadas sobre o frio Oceano,

quem quer alguma coisa e o sabe foi escolhido ao acaso –

ignorantes de imperialismo clássico

de qualquer delicadeza quanto ao velho Império a explorar

os Americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos

sempre acesos por seu sexo como bandidos por uma fogueira de gravetos –

É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e outro subversivo;

aquele que arranca os olhos

pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados.

Joaquim nunca poderia ser diferente de um sicário.

Por que então não amá-lo se o tivesse sido?

Também o sicário está no vértice da Hierarquia,

com seus traços simples apenas esboçados

com seu simples olho

sem outra luz que aquela da carne

Assim no topo da Hierarquia

encontro a ambiguidade, o nó inextricável.

Ó Brasil, minha pátria desgraçada,

destinada sem escolha à felicidade

(de tudo são donos o dinheiro e a carne,

ao passo que você é tão poético)

dentro de cada habitante seu, meu concidadão,

há um anjo que não sabe nada,

sempre dobrado sobre seu sexo,

que se move, velho ou jovem,

para pegar em armas e lutar

indiferentemente pelo fascismo ou pela liberdade –

Oh, Brasil, minha terra natal, onde

as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –

para nós, velhos, readquirem sentido –

respondendo à graça de delinquentes ou de soldados

à graça brutal.

  1. Sartre.

(Poesia de Pier Paolo Pasolini, 2015; tradução Maurício Santana Dias)

  • “Il viaggio di Pasolini in Brasile” foi escrito a convite de Simone Apollo para o blog Dentro Rio de Janeiro, onde o texto está publicado em italiano: http://www.dentroriodejaneiro.it/storie/approfondimenti/pasolini-brasile-viaggio.html 
  • Os professores-pesquisadores Maria Betânia Amoroso (Unicamp), Mariarosaria Fabris (USP) e Michel Lahud (Unicamp) também escreveram sobre as relações entre Pasolini e o Brasil.
  • “A viagem de Pasolini ao Brasil” faz parte de uma série de reflexões que compõem a minha pesquisa de doutorado, “A importância de Pasolini no jornalismo italiano dos anos 1970”, desenvolvida na Unicamp e financiada pela FAPESP.