Um rosto pelo outro: o espelho que falta em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga

Em diferentes épocas, em diferentes espaços geográficos, o espelho apareceu representado na literatura, funcionando ora mais, ora menos como símbolo ou metáfora. Pensemos no mito grego de Narciso, que acha feio o que não é espelho, eternizado nas Metamorfoses do poeta Ovídio; ou na carta aos Coríntios de São Paulo, passagem bíblica em que o enigma antecede a possibilidade de nos vermos face a face; ou até mesmo na história da Branca de Neve, fábula dos Irmãos Grimm ou filme da Disney, em que a madrasta se pergunta sobre a existência de algo mais belo do que si mesma. Na literatura brasileira, igualmente disseminado, o espelho aparece, por exemplo, tanto em Machado de Assis, quanto em Guimarães Rosa, quando ambos escolhem chamar seus contos de, justamente, “O espelho”. Não faltam, portanto, referências e análises sobre esse tema, que se tornou um prato cheio para os estudos literários. No entanto, hoje, lendo o romance A mulher de pés descalços, pude refletir (com todas as ambiguidades que essa palavra poderá ressoar aqui) de uma maneira diferente sobre ele.

Escrito por Scholastique Mukasonga e publicado em 2008, na França, e em 2017, no Brasil, em tradução de Marília Garcia pela editora Nós, A mulher de pés descalços é o que poderíamos chamar de testemunho da história, com h minúsculo, e da História, com h maiúsculo. A escritora, que nasceu em Ruanda em 1956 e se refugiou na França na década de 1990, homenageia nesse romance sua mãe, Stefania. As experiências narradas vão sendo encadeadas de forma que a história particular de sua família se costure à terrível guerra civil que marcou a História de seu país de origem. Entre exílios e genocídios, Mukasonga vai nos colocando em contato com as múltiplas violências relacionadas aos conflitos étnicos ocorridos em Ruanda nas últimas décadas do século XX, enquanto nos imerge em memórias familiares que tematizam seus hábitos e costumes.

 

 

Foi então que ali pelo capítulo VII, “A beleza e os casamentos”, li a seguinte passagem:

          Mas como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho? Em Gitagata não havia espelhos, nem mesmo nas lojas; no maior comerciante de Nyamata, eles ficavam no alto da estante, atrás do balcão – e era impossível dar uma olhada, mesmo quando o vendedor se distraía atendendo outro cliente. O único espelho eram os outros: o olhar satisfeito ou os suspiros de desânimo da nossa própria mãe, as observações e comentários da irmã mais velha ou dos colegas e, depois, o rumor que corria pelo vilarejo que acabava chegando até nós: quem é bonita? E quem não é?

          Mas, sem espelho, como ter certeza de que ao menos alguns traços do próprio rosto correspondem aos critérios de beleza valorizados pelas casamenteiras e celebrados pelas canções, provérbios e histórias? Uma cabeleira abundante, mas que deixe a testa à mostra, um nariz reto (esse pequeno nariz tutsi que acabou decidindo a morte de tantos ruandeses), gengivas pretas como as de Stefania, sinais de boa linhagem, dentes afastados… Quando o Sol brilhava, a gente ia até uma poça tentar ver o reflexo. Mas o retrato fluido dançava debaixo de nossos olhos impotentes. O rosto de água se enrugava, se encrespava e se fragmentava em películas de luz. Nosso rosto nunca era nosso como quando é visto no espelho, ele era sempre de outro.[1]

A pergunta que abre o excerto, como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho?, me deixou desconcertada. A presença desse objeto sempre foi tão naturalizada e banal para mim – seja pela minha própria existência, seja pela literatura contemporânea que pude conhecer até aqui – que nunca tinha me passado pela cabeça a possibilidade de não ter acesso, em tempos tão recentes, à experiência de se encarar em um espelho. É curioso porque, acompanhando a leitura do livro até aquele momento, eu já havia passado com as personagens pela falta de leite (tão importante para a cultura dos tutsis, etnia da qual Mukasonga e sua família fazem parte), de pão, de água limpa, de segurança, de paz, mas foi com a falta de espelho que senti uma indignação não sentida até então com o livro – talvez por nunca ter pensado sobre isso, diferentemente das outras desigualdades, com as quais eu já havia me deparado simbolicamente em outros momentos.

“O único espelho eram os outros”. Sabemos o quanto a forma como as outras pessoas nos veem é constitutiva da forma como nós mesmas nos enxergamos, nos percebemos, nos projetamos. Porém, a situação em Gitagata, conforme descrita no romance, era a de que essa era a única forma de se ver fisicamente, o que levaria a personagem à pergunta sem resposta: será que sou bonita? Só seria possível satisfazer essa curiosidade pelas características apontadas pelos outros. Os olhares de fora seriam, então, a régua definidora de como ela mesma se perceberia de dentro.

Essa passagem está inserida em um capítulo em que o padrão de beleza (interna e externa) das mulheres tutsis é descrito de forma cuidadosa, afinal ele seria o critério segundo o qual as mulheres do vilarejo conseguiriam se casar ou não. Com certo incômodo, moldadas pela maneira como nossa própria cultura tem problematizado essa questão na contemporaneidade, acompanhamos a mãe de Mukasonga, “casamenteira de mão cheia”, tecendo considerações sobre as moças que ela analisava na tentativa de arranjar casamentos: questões de formação, como ser de família respeitável, ter boa educação, ser trabalhadora; mas também atributos físicos, como ter charme, graça e estrias (sim, era bom sinal ter cochas grossas e cobertas por uma rede de estrias). Por isso, poder dizer sobre si mesma se era uma mulher bonita ou não seria um critério tão importante para a cultura tutsi – afinal isso determinaria, em alguma medida, a oportunidade de se conseguir um casamento e, por consequência, um futuro.

A partir dessa passagem, carrego comigo a imagem do “rosto de água” que a personagem sugere. Para além de narrar as desigualdades e injustiças que acometeram seu povo, levando à dor de saber que a própria família, incluindo sua mãe, havia sido brutalmente assassinada em Ruanda, o romance de Mukasonga nos coloca diante desse não-espelho, ou desse espelho turvo, no qual ingenuamente acreditamos nos enxergar. Foi pela leitura de seu livro que pude sair de minha autoimagem confortável, acreditando que todos conhecem seu próprio rosto refletido em um espelho, e perceber que algo tão banal para mim não é exatamente vivido e percebido pelo outro dessa mesma maneira. Assim, no final das contas, é a imagem que tenho de mim que acabou ficando enrugada, encrespada, fragmentada, por poder pensar, através da literatura, sobre outra cultura, outra realidade, outra perspectiva de existência. Esse tema, ao lado das inúmeras simbologias que o elemento espelho suscita na tradição literária, pode certamente se desdobrar em associações, intertextualidades, bases teóricas diversas – e espero poder aprofundar tais análises posteriormente. Não deixa de ser fascinante, contudo, me dar conta de que nessa aproximação ao livro de Mukasonga mesmo a experiência de leitura mais dolorosa e mais desconcertante sobre mim mesma é ainda, e sempre será, uma experiência que vale a pena ser sentida.

[1] MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Editora Nós, 2020 [2017], p. 90-91.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Hoje o dia amanheceu chuvoso em muitas cidades, e aqui em Roma também. Andando pelas ruas, reparei em quantas pessoas carregavam seus guarda-chuvas. Não pude evitar o pensamento: nenhuma delas estava com medo de levar um tiro e morrer por causa do que carregavam. Esse post é em memória de Rodrigo Serrano, brutalmente assassinado no dia 17 de setembro de 2018 pela polícia militar do Rio de Janeiro.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Quem escolhe ser pesquisador em nosso país (e no mundo todo) acaba se acostumando com o questionamento recorrente sobre a utilidade prática do que faz, do seu trabalho. Nas ciências humanas, esse questionamento é talvez ainda mais frequente porque nossas pesquisas não produzem, na maioria das vezes, resultados imediatos, pragmáticos, mensuráveis pelos parâmetros da sociedade de consumo. Estudar as diversas perspectivas da representação literária ao longo dos anos na literatura brasileira não parece ter o mesmo prestígio que compreender a reprodução de uma bactéria a fim de criar um novo remédio, por exemplo. E por que será que isso acontece? Arrisco um palpite: porque, nessa sociedade, pesquisas que não geram patentes, sobretudo porque não geram lucros, não despertam muito interesse.

Sempre que posso, faço questão de começar meus textos por aí, porque acredito que precisamos lembrar – e relembrar quantas vezes pudermos – que estamos vivendo em uma época em que a formação e a reflexão de tipo humanística correm o risco de cair em desuso. Atualmente, a ideia de trabalho e produção de conhecimento está ligada a valores capitalizados, tecnocráticos, pouco ideológicos ou apolíticos, e, nesse espaço, a maturação de reflexões humanas não tem tempo suficiente para acontecer. Tudo precisa ser rápido e funcional. Já deu para perceber que a conversa é tensa, né? Mas todo esse preâmbulo é para pensarmos juntos como a ideia de produção científica se encaixa nesse contexto – e como fazer ciência, em todas as áreas, principalmente dentro de uma universidade pública, só pode ser entendido como um gesto político.

Nos estudos literários (e talvez posso afirmar que no âmbito das pesquisas sobre linguagem em geral), existe um esforço em se pensar os poderes que estão em disputa. Nosso trabalho muitas vezes se volta à desnaturalização de ideias consolidadas e de pensamentos enraizados em nossa cultura. Nesse sentido, fica difícil imaginar como uma pesquisa desse tipo pode ser considerada apolítica: estamos constantemente exercitando nossa reflexão crítica ao olhar para o mundo e estudar suas diversas manifestações ao longo do tempo.

É por esse caminho que muitos estudiosos pensam na capacidade transformadora que a própria literatura exerce. Escrever seria um gesto de colocar no papel aquilo que precisa ser revisto em nosso mundo e, a partir daí, gerar no leitor um pensamento com potencial para se tornar atitude. Estamos então em um terreno em que a literatura pode ser vista como um espaço público de politização e também de disputa de histórias. Por meio dos livros, seria possível contar uma história que sistematicamente determinadas esferas de poder quiseram (e querem) calar, assim como poderia despertar nos leitores uma reflexão. Ou seja: quanto mais a gente lê, mais a gente se depara com versões diferentes para uma mesma história e dificilmente sairemos dessas leituras da mesma forma que entramos.

Jean Paul Sartre, importante filósofo e escritor francês do século XX, publicou em 1948 o livro Que é a literatura? (Editora Ática, 2004, tradução Carlos Felipe Moisés), no qual discute, após o final da Segunda Guerra Mundial, o que, por que e para quem escrever literatura. Depois das atrocidades cometidas pelos governos fascistas e nazistas nos anos anteriores, Sartre e tantos outros intelectuais voltaram seus pensamentos em direção às ainda possíveis perspectivas de existência humana – e como o ato de pensar e escrever sobre essa existência ainda poderia ter alguma função.

Foto por Daniel Frank.

Sartre defende a ideia de que “através da literatura (…) a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar” (2004, p. 217). Sua posição parece estar entre dois caminhos já bastante trilhados quando se pensa no fazer literário: a ideia de que a literatura vai salvar a humanidade, despertando-lhe a consciência necessária para isso, mas também a ideia de que essa consciência é infeliz, desequilibrada, mediada, o que significa que não necessariamente ela atingirá seu potencial de conscientização nos indivíduos.

Muito complicado? É mais ou menos pensar que ler não é sinônimo de caráter – há muitos exemplos por aí de gente que já leu muito, mas continua tendo comportamentos questionáveis. E também que nem toda literatura é questionadora e progressista, afinal é também no âmbito literário que versões opressoras da história se consolidam. O ponto principal é que, repito, parece que estamos diante do potencial de reflexão e de crítica que pode emanar da literatura. A ideia de que, com esse esforço de leitura, a coletividade pode tomar conhecimento de si mesma, reconhecer onde estão suas falhas e, a partir daí, buscar modificá-las e aperfeiçoá-las. Em outras palavras, escrever e pensar a literatura como pequenos movimentos de transformação.

O lugar que ocupamos como pesquisadoras e pesquisadores, me parece, passa também por essas mesmas questões. A ideia de produzir ciência, ou seja, de produzir conhecimento, em um país com tantas desigualdades (sociais, econômicas, culturais) como o nosso não deve estar isenta de sua potencialidade de reflexão e de transformação social. Porque são ausências políticas em momentos conturbados como os que estamos vivendo ultimamente que podem criar monstruosidades históricas com as quais certamente não queremos conviver.

E assim chegamos ao Brasil do ano de 2018, onde ainda é preciso debater machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos enraizados na nossa história. Esse debate, que perpassa todas as esferas públicas de produção de conhecimento (e por isso também todas as universidades, programas de pós-graduação e institutos de pesquisa), não pode ser diminuído ou silenciado, pois estamos disputando a história que se fará daqui por diante. A reflexão humanística, que deveria ser uma guia aos estudos literários e também às demais ciências, reafirma sua importância nesse processo como aquela que não nos deixa esquecer os momentos em que a humanidade se viu ameaçada por seu próprio desenvolvimento e capacidades destrutivas. Posicionar-se politicamente em todas as esferas que nos cabem é então reconhecer a função pública que cada indivíduo carrega em si e estimular a reflexão crítica em todas as frentes imagináveis. Resistir em todos os espaços que ocupamos: esse é o compromisso científico e político do qual não podemos nos isentar.

 

Para que serve a literatura?, por Mario Barenghi (tradução Cláudia Alves)

Para que serve a literatura?*

Mario Barenghi 

A meu ver, questionar-se sobre “o que é literatura?” ou “o que é um texto literário?”, como Giovanni Bottiroli[1] fez, não é a maneira mais adequada de encarar o problema do ensino de literatura na universidade, muito menos na escola. A questão colocada não deveria ser ontológica, mas sim funcional. Vale interrogar-se sobre o escopo da literatura, o que quer que isso seja: sobre sua razão de ser. Para que serve? Para que nós a usamos? Com quais motivações? E com quais objetivos e vantagens? Tendo que dar uma definição genérica, tomo emprestada a fórmula que o linguista israelense Daniel Dor[2] usa para definir a linguagem.

A literatura é uma técnica de “instrução da imaginação”, que não serve simplesmente para “comunicar”, mas para fazer viver experiências simuladas. Por meio de uma prática de simulação socialmente compartilhada (portanto, diferente da fantasia individual), o leitor tem a possibilidade de ampliar sua própria complexa experiência existencial: de clareá-la e de enriquecê-la, de articulá-la e de ampliá-la, adquirindo assim novos instrumentos para enfrentar os desafios da vida real.

Também podemos formular essa ideia em termos moralmente mais comprometidos. O final das obras literárias deveria servir para nos ajudar a viver. Servem para viver: assim soa o título de um ensaio inteligente de Bruno Falcetto (subtítulo: Por uma educação com uso de literatura)[3]. Para viver, ou para sobreviver, ou para nos fazer viver melhor, como escreveu Tzvetan Todorov em um livro de 2007, A literatura em perigo[4]; e como reiterou Antoine Compagnon, no mesmo ano, em sua aula inaugural ao Collège de France, Literatura para quê?[5], a literatura serve para nos fazer mais felizes. Ou menos infelizes. E para nos fazer melhores: mais sábios, mais conscientes, mais sensíveis, mais perspicazes (aqui, Compagnon cita uma célebre passagem do ensaio “O miolo do Leão”, de Calvino); em geral, mais preparados para interpretar o mundo que nos circunda, o mundo humano in primis. Como consequência, melhor inseridos no ambiente que nos é próprio: mais hábeis em compreender nossos semelhantes, suas ações e suas atitudes, assim como as dinâmicas das relações que nos ligam a eles; mais preparados para compreender o sentido e o peso das palavras, nossas e dos outros.

Mas atenção: a literatura não produz esses efeitos de maneira automática. Pelo contrário, pode acontecer que ela não os produza de maneira nenhuma. Não apenas e nem tanto porque, além da grande literatura, exista também a literatura ruim, mas sobretudo porque (o caso dos textos sagrados ensina) não existe livro bom de que não se possa fazer mau uso, do mesmo jeito que não existe utensílio (ferramenta, equipamento, competência ou conhecimento) de que não possam se aproveitar os “estúpidos” e os “bandidos”, para usar duas categorias de Cipolla, de Allegro ma non troppo[6]. Podemos nos consolar, talvez, ao pensar que o contrário também é verdadeiro: de um livro medíocre pode se fazer um uso positivo. Fato é que o ensino de literatura deveria seguir esse escopo: aumentar as possibilidades de que, na experiência literária dos alunos, os efeitos considerados profícuos, desejáveis, esperados prevaleçam aos considerados negativos. (…)

Pode-se ensinar literatura? Nisso Bottiroli tem razão: “o que um professor de Letras pode fazer é criar condições para que seja possível uma experiência estética. Não pode impô-la, mas pode favorecê-la”. E tem também razão ao sustentar que o professor não deve criar obstáculos. Eu diria, mais drasticamente, que deveria evitar criar danos: primum non nocere[7], de acordo com o aviso dourado da Escola Médica Salernitana. Concordo menos quando Bottiroli coloca em oposição a atenção dada aos “textos” e a atenção dada aos “contextos”, denunciando as consequências nefastas do “contextualismo” (“o contextualismo mata a literatura”). Com certeza, tratar um texto da mesma forma que um simples documento de qualquer outra coisa, reduzindo-o a um suporte para investigações de ordem histórica, psicológica, social, “cultural”, significa sufocá-lo. Danos não menos graves, todavia, foram produzidos – principalmente na escola, até onde sei – pelo abuso de noções e grades elaboradas pela teoria literária. Não se lê um romance para aprender o que significam as palavras “prolepse” e “analepse”.

O que está matando a literatura, na minha opinião, é a indiferença nos enfrentamentos por parte dos leitores. Eu não diferenciaria tanto “artefato” e “objeto virtual” (termos com os quais Bottiroli se refere ao “conjunto das interpretações possíveis”), mas sim “texto” e “obra”, onde obra é o texto concretamente reativado pela leitura: executado – no sentido musical da palavrapor um leitor ou por uma comunidade de leitores. Franco Brioschi cita várias vezes – por exemplo, no prefácio a Gli immediati dintorni: primi e secondi, de Vittorio Sereni[8] – o epigrama citado por Possídio no final de sua biografia de Santo Agostinho. A intenção do poeta latino era celebrar a função eternizante da poesia, mas esses dois versos servem bem para representar a reativação do texto e da obra pelo leitor: Vivere post obitum vatem vis nosse, viator? Quod legis, ecce loquor; vox tua nempe mea est (“Queres saber, viajante, se o poeta vive após a morte? Tu lês, e então eu digo: a tua voz é a minha”[9]). A poesia revive, ou antes, vive literalmente na leitura. Ora, se a literatura conta enquanto simulação de experiências, não se pode ignorar o fato de que cada experiência é contextual. Dito de outra maneira, quem ensina, ensina sempre a alguém: e qualquer um dos sujeitos implicados leva consigo um conjunto de contextos que não podem ser desconsiderados (ainda que seja obviamente necessário olhar com cuidado os devaneios impressionistas). (…)

Concluo. Talvez fosse possível considerar que uma certa familiaridade generalizada com a experiência literária se cumprisse na universidade de um tempo atrás. Os estudantes, pelo menos na Faculdade de Letras, nutriam um interesse consistente pela literatura: se não por todos os autores do nosso cânone histórico-literário, ao menos por muitos clássicos da modernidade. Não sei se essas circunstâncias se reproduzem hoje em alguma ilha privilegiada do arquipélago acadêmico. Pessoalmente, dou aula em cursos de graduação nos quais a literatura não é uma prioridade no pensamento dos estudantes, então não posso não colocar para mim como problema despertar-lhes interesse. Esforço-me sim para fazer com que as leituras que proponho interajam com suas consciências – entende-se com isso nos modos próprios da literatura. Sei com certeza que não consigo com todos, nem – temo – com a maior parte, mas me alegro por conseguir ao menos com algum. Com todos tento, entretanto, exigir que percebam a densidade do texto literário, a gravidez no uso das palavras, a complexidade da construção do discurso, a importância dos temas tratados. Tudo isso não será suficiente para que ocorra uma experiência estética verdadeira; mas se nesse ínterim eu conseguir não suscitar um desgosto excessivo, uma reação de repulsa pela literatura em geral, poderá valer, quem sabe, como pressuposto ou plataforma para experiências futuras. Não é muito, mas é melhor do que nada.

* Tradução do excerto por Cláudia Alves. Texto na íntegra em: http://www.doppiozero.com/materiali/cosa-serve-la-letteratura. Mario Barenghi é crítico literário e professor de literatura italiana contemporânea na Universidade de Milão.

[1] Disponível em italiano, La letteratura se iniziassimo davvero a estudiarla: http://www.doppiozero.com/materiali/la-letteratura-se-iniziassimo-davvero-studiarla.

[2] Em inglês, The Instruction of Imagination: Language as a Social Communication Technology (2015): http://www.oxfordscholarship.com/view/10.1093/acprof:oso/9780190256623.001.0001/acprof-9780190256623?rskey=4hjRbX&result=2.

[3] Em italiano, “Servono per vivere: verso un’educazione all’uso della letteratura”, no volume La didattica della letteratura nella scuola delle competenze (2014): http://www.edizioniets.com/scheda.asp?n=9788846739445.

[4] Disponível em português. A literatura em perigo, trad. Caio Meira, Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

[5] Disponível em português. Literatura para quê?, trad. Laura Taddei Brandini, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. Sugestão de leitura dada aqui no blog, no post https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2016/06/07/afinal-por-que-pensar-sobre-literatura/.

[6] Em italiano. Allegro ma non troppo con Le leggi fondamentali della stupidità umana (1988): https://www.ibs.it/allegro-ma-non-troppo-con-libro-carlo-m-cipolla/e/9788815019806.

[7] “Em primeiro lugar, não fazer mal.”

[8] Em italiano. Gli immediati dintorni. Primi e secondi (2013): https://www.ibs.it/immediati-dintorni-primi-secondi-libro-vittorio-sereni/e/9788842819394.

[9] Tradução do italiano: “Vuoi sapere, viandante, se il poeta vive dopo la morte? Tu leggi, ed ecco io parlo: la tua voce è la mia”.

Algumas ponderações sobre a Semana de Estudos Literários, Letras e Linguística do IEL, por Lucas Michelani

Daqui a algumas semanas, o blog Marca Páginas completa um ano de existência. Durante esse tempo, fiz (e continuo fazendo) um esforço contínuo para reavaliar os rumos temáticos e ideológicos que me guiam por essa experiência. O que significa, de fato, levar adiante um blog sobre divulgação científica de estudos literários? Quais espaços posso ocupar, dentro e fora da universidade, com essa tentativa? Quais redes de cooperação tem sido possível estabelecer? Com quem tenho dialogado? Esse debate (que, para mim, não é óbvio em nenhuma dessas esferas) me coloca questões recorrentes sobre literatura, academia e ciência, e quais pontes podem ou não ser construídas para se passar de um lugar a outro. A ideia tem sido prosseguir com esse método baseado em tentativa e erro. Já obtive muitos retornos (nem sempre totalmente positivos, diga-se de passagem) que me ajudaram a reconhecer os alcances dessa iniciativa. Fazendo um balanço, acredito ainda nesse percurso errante, nesse jeito de ir tateando aos poucos os caminhos, para então definir (e redefinir, sempre que necessário) quais são as pretensões desse projeto. Muita gente tem ajudado e só posso agradecer a colaboração de todos, tanto dos que aqui publicaram seus textos, quanto daqueles que me procuraram fosse para elogiar, criticar ou fazer a ideia crescer. E o espaço continua aberto para quem, como eu, estiver disposto a descobrir novas formas de expandir o que muitas vezes fica enclausurado nas estantes das bibliotecas ou entre as 4 paredes das salas das universidades. Tudo pode integrar e enriquecer esse experimento que, assim como nas pesquisas acadêmicas, não sei exatamente onde vai dar, mas que continua valendo a pena pelo percurso até lá.

Mantendo essa perspectiva e seguindo o objetivo de democraticamente abrir espaços e criar diálogos com o que existe dentro e fora da academia, o post de hoje é uma contribuição de Lucas Michelani, aluno do curso de Estudos Literários, na Unicamp. Lucas integra a comissão organizadora de um dos eventos mais legais e acessíveis que acontece no IEL-Unicamp, a Semana de Estudos Literários, Letras e Linguística, SELLL. A iniciativa se baseia na intenção de unir os 3 cursos do instituto para conversar sobre temas comuns a essas áreas interessadas em pensar a linguagem e suas múltiplas formas de expressão. Apesar de ser uma semana acadêmica (ou seja, de estar inserida nos círculos comuns à academia, o que envolve pesquisas acadêmicas, palestrantes que são muitas vezes professores acadêmicos e ter um público majoritariamente acadêmico), os objetivos pretendidos pela organização do evento têm passado por reformulações que procuram diminuir os isolamentos que esse mesmo círculo cria. Obrigada por dividir com o Marca Páginas sua reflexão, Lucas! Que sejamos sempre estimulados a repensar e reavaliar onde estamos no mundo, e que diante desse tipo de atitude crítica seja sempre possível crescer e compartilhar nossos conhecimentos e nossas experiências com mais gente.

Algumas ponderações sobre a Semana de Estudos Literários, Letras e Linguística do IEL

Lucas Michelani

Há três anos, no grupo de Facebook do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), vi uma chamada para fazer parte da Comissão Organizadora da Semana de Estudos Literários, Letras e Linguística (SELLL). Eu havia acabado de sair de uma experiência como assistente de produção de um festival internacional de teatro, e estava procurando um projeto cultural na minha área. Decidi aparecer para a reunião. Havia bastante gente, estudantes novos, como eu, procurando se engajar em algo que não fosse apenas as leituras para as aulas. Chamamos pesquisadores de dentro e fora do Instituto em um evento que duraria uma semana inteira. Chegada a hora, era difícil convencer os professores a suspenderem suas aulas para prestigiar as palestras. Alguns estudantes saíam da classe, outros permaneciam, retidos pelo medo de perderem o conteúdo. Lembro uma das palestras, sentado na plateia; a palestrante falava sobre Peirce e eu pensava que aquilo era muito interessante, mas ao mesmo tempo muito rebuscado e abstrato.

Logotipo por Fernanda Ferreira

No ano seguinte, decidimos mudar os rumos. Entendemos que o evento deveria ser uma ponte entre o conhecimento teórico adquirido em sala de aula e sua aplicação prática no cotidiano dos estudantes. Institucionalizamos o evento como parte da Semana Acadêmica do IEL, período em que as aulas são suspensas para que alunos e alunas pudessem prestigiar os eventos da graduação e da pós (como o Seminário de Pesquisas na Graduação-SEPEG e o Seminário de Teses em Andamento-SETA). Criamos sessões de debate em ambientes externos do Instituto para que as pessoas se sentissem mais confortáveis para expor suas ideias. Mantivemos as palestras trazendo temas que dialogassem com as três áreas, para que todas e todos pudessem compreender os assuntos ali tratados.

Tenho a impressão de que, quando se entra na universidade, há a possibilidade da carreira acadêmica em que cada etapa (mestrado, doutorado, pós-doutorado) te leva a estudar mais a fundo um único tema. E isso não é de todo ruim. É importante que pesquisadores se dediquem integralmente a um assunto para entendê-lo e conhecê-lo melhor. O problema se encontra quando falar sobre esse tema se torna muito abstrato e rebuscado.

Realizar um evento dentro da universidade já é, por si só, uma barreira física e intelectual. Não apenas pelo posicionamento do campus em um distrito, longe da cidade, mas também em relação ao conteúdo das pesquisas apresentadas. Mesmo entre os estudantes, são poucos os que parecem despertar do torpor do ritmo acadêmico – aulas, leituras e trabalhos. Sem contar o engessamento de docentes que só possuem interesse caso aquilo acrescente algo em seu currículo Lattes.

Um dos melhores comentários que recebi no evento de 2017 foi o de uma participante que disse: “não interpretem como ofensa, mas o evento de vocês nem parece um evento acadêmico”. Não ter o aspecto de um evento acadêmico não é ofensa, é elogio. É ressignificar o conhecimento, é mostrar que a academia, a pesquisa, os estudos não precisam ser chatos, enfadonhos, entediantes. Afinal, estamos falando sobre linguagem, e a linguagem permeia tudo.

Algumas simples medidas contribuem para tornar um evento acadêmico menos sisudo. Como qualquer outro evento cultural, procurar fisgar o interesse através de outros meios como a divulgação e a arte gráfica. As pesquisas dos próprios alunos são fundamentais, a fim de serem ouvidos e de mostrarem com o que se importam ou como (re)pensam a própria cultura acadêmica. Trazer para perto e esmiuçar questões teóricas para mostrar que podem sim fazer parte de nossa rotina.

Pesquisando em arquivos do centro acadêmico, encontrei alguns DVDs que mostram, por uma câmera gravada na mão, palestras, saraus e momentos de descontração entre os estudantes. Há também outros registros de que a SELL (ainda com dois L’s, por não existir o curso de Estudos Literários) ocorre desde 1989. Me questiono como um evento tão antigo demorou tanto para se enraizar enquanto uma cultura no IEL. Talvez seja esse torpor, talvez seja a indiferença, ou pior, o esquecimento.

O tempo de uma graduação é de memória curta. As questões de uma geração de alunos pode não ser a da geração seguinte. É preciso mostrar que tudo bem não parecer um evento acadêmico. Mais do que um evento, a SELLL se tornou um espaço para o diálogo, para provocar e ser provocado, para ultrapassar as fronteiras acadêmicas e mostrar que é possível ter uma boa conversa sobre linguagem, com qualquer um.

Para mais informações sobre a SELLL: http://www2.iel.unicamp.br/selll/; https://www.facebook.com/semana.iel/ e Instagram @selll_iel

Carolina Maria de Jesus e a polêmica sobre o que é literatura

Em abril desse ano, a Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest) divulgou a lista de livros para o vestibular de 2019. Entre os já canonizados Luís de Camões, Antônio Vieira e Camilo Castelo Branco, a grande novidade foi encontrar o nome da escritora Carolina Maria de Jesus e seu livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960) entre as leituras obrigatórias.

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977)

Entre tantos livros escritos por homens e já conhecidos pelos vestibulandos, essa foi a primeira vez que a obra de uma mulher negra apareceu na lista da Unicamp. Há muito o que comemorar quando uma mudança como essa acontece em um dos maiores vestibulares do país: aos poucos, mais vozes começam a contar histórias que já conhecemos, mas que nos foram sempre contadas pelas mesmas perspectivas.

O fato dos candidatos ao vestibular terem que se preparar para a prova de literatura lendo uma obra que muitos nem sequer conheciam gera uma reação em cadeia muito interessante. Mais pessoas começam a ler Carolina de Jesus nas escolas e cursinhos, logo, mais pessoas têm contato com um universo literário distante dos padrões que já conhecemos. Não estamos habituados a ler escritoras mulheres, muito menos mulheres negras e pobres. Ao inserir essa escolha no vestibular, a Unicamp acaba por apresentar essa leitura a estudantes de todo o país, os quais precisarão pensar, discutir, refletir sobre isso. Não é pouca coisa.

Capa – Quarto de Despejo

É importante conhecer as particularidades desse livro. Quarto de despejo foi lançado em 1960 e descreve o cotidiano de Carolina de Jesus na favela do Canindé, em São Paulo, entre os anos de  1955 e 1960. De maneira bastante realista e impactante, a escritora relata em uma espécie de diário as dificuldades de viver em um barraco sem saneamento e condições básicas para criar seus filhos. Para sobreviver, catava papel e ferro pelas ruas da cidade e os trocava por dinheiro e comida. Nem sempre era suficiente, e em muitos momentos Carolina descreve a fome que sentia. Só a partir de sua descoberta pelo jornalista Audálio Dantas que seus livros foram publicados, venderam milhares de exemplares e passaram a ser traduzidos para diversas línguas.

Recentemente, em um evento da Academia Carioca de Letras em homenagem à escritora,  o estatuto de obra literária atribuído a Quarto de despejo foi questionado. E muito se falou sobre o assunto nos últimos tempos. Parece que estamos diante de uma pergunta incômoda, que tantos tentam responder, mas poucos chegam de fato a uma conclusão: o que é literatura?

Para a crítica literária e professora Marisa Lajolo, esse tipo de embate já apareceu outras vezes em nossa história e recorrentemente ressurge. Seria o mesmo caso dos estudos literários que se dedicaram às letras das canções de Chico Buarque, por exemplo, ou o mesmo questionamento que houve quando Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura. Para a estudiosa, essa questão mostra que o conceito de literatura precisa se relativizar e se reinventar à medida que novos tempos e novas demandas surgem: “o conceito de literatura – felizmente! – alarga-se”.

E, felizmente, os estudos literários também se renovam. Hoje, existem diversas pesquisas interessadas em compreender as condições de produção e os efeitos produzidos pelas obras de Carolina Maria de Jesus. Sua repercussão também lhe garantiu 8 livros publicados e traduções em mais de 10 línguas. Carolina tem sido lida cada vez por mais pessoas, de origens diversificadas, o que gera reflexões cada vez mais democráticas sobre o que é literatura e o que pode pertencer ao cânone literário de língua portuguesa.

Motivada por essa nova onda de leituras, a Banca de elaboração do vestibular Unicamp toma uma atitude que começa a mudar os rumos da literatura brasileira. Como já disse, não estamos habituados a ler escritoras negras, mas essa situação começa a mudar. E a Unicamp e a sociedade brasileira como um todo só tem a ganhar com isso.

 

 

 

Afinal, por que pensar sobre literatura?

É muito comum se questionar sobre qual é a utilidade prática de algum conhecimento. A literatura, enquanto campo de estudos, também passa por esse questionamento.  Afinal, por que pensar sobre literatura? Para que serve uma análise literária? Por que existe um campo de pesquisas voltado aos estudos literários?

Falar sobre literatura é abrir-se a reflexões que envolvem todos os campos de conhecimento. Pensar literariamente é, sobretudo, pensar sobre o lugar do ser humano no mundo e suas manifestações. Nesse sentido (e sendo bastante simplista), os estudos literários se voltam a investigar mecanismos de construção mediados sobretudo pela linguagem e suas relações com o tempo e o espaço que ocupam (e ocuparam, e ocuparão).

Partindo desses questionamentos, o objetivo desse blog é divulgar, de maneira simples e acessível, trabalhos sobre literatura, tanto em andamento quanto finalizados, com o intuito de mostrar que o universo dos estudos literários pode transcender a ideia de que uma pesquisa acadêmica precisa necessariamente ter uma finalidade prática.

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Sugestão de leitura: Antoine Compagnon, Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.