Você já deve ter ouvido falar sobre Libras, a Língua Brasileira de Sinais, não é? Mas e obras literárias produzidas em línguas de sinais, você conhece? Veja a seguir o poema-história “Árvore”, de André Luiz Conceição, para conhecer um exemplo desse tipo de literatura:
Você deve ter notado o quanto a expressividade desse texto literário é constituída por uma soma de fatores corporais, visuais, imagéticos, que transmitem uma experiência única. O projeto “Literatura em Libras” se propõe a pensar justamente esse tipo de produção literária realizada em Libras, atentando para as suas particularidades estéticas e a sua relação com a sociedade brasileira. Idealizado pela pesquisadora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Rachel Sutton-Spence, e traduzido para Libras em parceria com Gustavo Gusmão, o livro, publicado este ano pela Editora Arara Azul, está disponível pelo site http://www.literaturaemlibras.com, acompanhado de diversos outros materiais visuais complementares. E tudo isso pode ser acessado e baixado gratuitamente por quem se interessar!
O material “Literatura em Libras” se dedica a aprofundar a compreensão da produção literária contemporânea em Libras, traçando um percurso de reflexão que passa por 4 pontos principais: elementos fundamentais da literatura em Libras; produção de narrativas e contos em Libras; elementos da linguagem estética de Libras; e relações entre a sociedade e a literatura em Libras.
Cada uma das partes está subdividida em capítulos, nos quais se discutem aspectos específicos relacionados a cada temática, como a literatura surda no contexto brasileiro, definições dos gêneros literários pela perspectiva da literatura em Libras, a tradução da literatura produzida em Libras, entre outros. Ao final de cada capítulo, há ainda um breve resumo dos principais pontos abordados e a proposição de diversas atividades, estabelecendo assim uma ponte entre a reflexão teórica e a prática.
Vale ressaltar que o interesse central da publicação está relacionado à literatura produzida em Libras, isto é, não aquelas obras literárias que foram traduzidas para Libras, mas sim aquelas que foram concebidas originalmente na língua de sinais. Essa diferença é fundamental para que possamos compreender que existe uma cultura literária sendo produzida pela comunidade surda brasileira. Isso implica, por sua vez, reconhecer uma série de potencialidades artísticas próprias dessa produção, que se diferencia das produções literárias escritas e visuais a que temos acesso na maior parte do tempo.
Além disso, a literatura produzida em Libras permite a expressão de experiências próprias da comunidade surda, elaborando literariamente um conjunto de vivências particulares que nem sempre são abordadas ou representadas de maneira adequada pelas produções em línguas orais.
Outro ponto que merece destaque é observar o quanto os estudos sobre literatura produzida em línguas de sinais se conjugam, em 2021, aos avanços tecnológicos das últimas décadas. Em seu prefácio à edição, Rachel Sutton-Spence conta que, na década de 1970, ela já havia se deparado com trabalhos dedicados a poemas em ASL, a Língua Americana de Sinais. As materialidades desses estudos, no entanto, lidavam com suportes distintos dos quais podemos usufruir hoje: “Klima e Bellugi (1979) usaram desenhos feitos com canetas-tinteiro; Sutton-Spence e Woll (1998) usaram imagens de captura de tela de vídeos em VHS; Bauman, Nelson e Rose (2006) incluíram um DVD de trechos de ASL literária em um pequeno envelope na capa do seu livro; Sutton-Spence e Kaneko (2016) usaram capturas de tela junto a uma lista de vídeos indicados, muitos deles do YouTube, esperando que os leitores os procurassem na internet” (2021, p. 18).
Já o trabalho de “Literatura em Libras” está praticamente todo traduzido para Libras e está registrado em vídeos que foram disponibilizados nas plataformas YouTube e Vimeo, facilitando ainda mais o acesso ao material. Há também muitos outros links e QR codes que redirecionam para outros materiais disponíveis em Libras na internet, o que demonstra uma vez mais a riqueza das conexões tecnológicas possíveis nos dias de hoje.
Finalmente, vale destacar os avanços da comunidade surda no Brasil e do reconhecimento, a partir de 2002, da Libras como uma das línguas do nosso território. Rachel explica que: “Apesar de os surdos no mundo inteiro terem muitas características semelhantes, a comunidade surda brasileira é diferente das comunidades de outros países pela existência da Lei de Libras. As experiências políticas e educacionais – e até literárias – acontecem todas em respeito à Lei 10436/2002 e ao Decreto 5626/2005, que estabelece o direito dos surdos de ter acesso a informações em Libras. Com isso, estamos vivendo um momento importantíssimo do país, com professores surdos em muitas universidades – federais, estaduais e privadas– nos cursos de Letras Libras e/ou ensinando Libras, pesquisando sobre a língua e a comunidade surda e divulgando os conhecimentos através de publicações e ações de extensão. Hoje, em universidades de todo o Brasil, temos disciplinas que estudam a literatura surda” (2021, p. 28).
Nesse sentido, reconhece-se que ainda há muito trabalho de divulgação e reflexão a ser feito, mas passos importantes têm sido dados para tornar a Literatura em Libras mais conhecida e acessível a um grande público, sobretudo em ambientes escolares, onde o tema da acessibilidade é cada vez mais urgente. E a existência do livro “Literatura em Libras” é algo que, sem dúvidas, nos coloca em contato com essa produção e nos mostra a importância dessa literatura em nossa sociedade.
O artigo “Ler” (no original, “Leggere”) foi escrito por Cesare Pavese e publicado pela primeira vez em 20 junho de 1945, no L’Unità, jornal italiano comunista fundado por Antonio Gramsci, em 1924. Posteriormente, foi recolhido na coletânea póstuma A literatura americana e outros ensaios, de 1951.
Vale lembrar, em brevíssima contextualização, que após o fim da segunda guerra mundial, assim como dos anos vividos sob o regime fascista, a reconstrução da Itália, em todos os sentidos, passará a ser um tema recorrente entre intelectuais e escritores . A reflexão de Pavese localiza-se, portanto, nesse momento em que as relações entre literatura e sociedade se encontram bastante afetadas pela perspectiva de um país que deverá encontrar maneiras de se reerguer culturalmente (e ideologicamente).
Ler
É verdade que não devemos nos cansar de conclamar os escritores à clareza, à simplicidade, à solicitude para com as massas que não escrevem, mas às vezes se instaura a dúvida de que nem todos saibam ler. Ler é tão fácil, dizem aqueles cujo hábito de ler acabou com qualquer respeito pela palavra escrita. Mas quem, pelo contrário, trata de homens ou de coisas mais do que de livros, e sai pela manhã e volta à noite, endurecido, quando por acaso ele se recolhe a uma página, dá-se conta de ter sob os olhos algo difícil e bizarro, esmorecido e ao mesmo tempo forte, que o agride e o encoraja. Seria inútil dizer que este último está mais perto da verdadeira leitura do que o outro.
Acontece com os livros assim como com as pessoas. São levados a sério. Mas justamente por isso devemos nos precaver de torná-los ídolos, isto é, instrumentos de nossa preguiça. O homem que não vive entre livros, e que deve fazer um esforço para abri-los, tem um capital de humildade, de força inconsciente – a única que vale – que lhe permite se aproximar das palavras com o respeito e a ansiedade com que se aproxima de uma pessoa querida. E isso vale muito mais do que a “cultura”; isso é, na verdade, a verdadeira cultura. Necessidade de compreender os outros, caridade para com os outros, que é afinal o único modo de compreender e amar a nós mesmos: a cultura começa aqui. Os livros não são os homens, são meios para alcançá-los; quem os ama e não ama os homens é um presunçoso ou um condenado.
Existe um obstáculo ao ler – e é sempre o mesmo, em todos os campos da vida –, a excessiva segurança de si, a falta de humildade, a recusa a acolher o outro, o diferente. Sempre nos fere a inaudita descoberta de que alguém viu não mais longe do que nós, mas diferentemente de nós. Somos feitos de hábitos mesquinhos. Amamos nos maravilhar, como crianças, mas não tanto assim. Quando o estupor nos impele a sair de nós mesmos, a perder o equilíbrio para reencontrar talvez um outro mais destemido, então enrugamos a boca, batemos o pé, voltamos realmente a ser criança. Mas das crianças nos falta a virgindade, que é a inocência. Nós temos ideias, temos gostos, já lemos livros: possuímos alguma coisa e, como todo possuidor, estremecemos por esta alguma coisa.
Todos nós, infelizmente, já lemos. E como acontece frequentemente de os pequenos burgueses se importarem mais com o falso decoro e os preconceitos de classe do que os ágeis aventureiros do grande mundo, assim o ignorante que leu alguma coisa se prende cegamente ao gosto, à banalidade, ao preconceito que o tomou, e a partir de então, se ocorre de ele ainda ler, ele julga e condena tudo de acordo com tal medida. É muito fácil aceitar a perspectiva mais banal e se apegar a ela, seguros do consenso da maioria. É muito cômodo supor que todo esforço já acabou e que se conhece a beleza, a verdade, a justiça. É cômodo e vil. É como acreditar que se está absolvido do eterno e temente dever de ter caridade com os homens simplesmente porque de vez em quando dá uma moeda ao pedinte. Nada faremos, nem mesmo aqui, sem o respeito e a humildade: a humildade que entreabre frestas em nós através da nossa substância de orgulho e preguiça, o respeito que nos persuade à dignidade dos outros, do diferente, do próximo enquanto tal.
Fala-se sobre livros. E sabe-se que livros, quanto mais ingênua e plana é a sua voz, mais dor e tensão eles custaram a quem os escreveu. É inútil, portanto, ter esperança de tateá-los sem pagar um preço pessoal por isso. Ler não é fácil. E acontece, como se costuma dizer, que quem estudou, quem se move agilmente no mundo do conhecimento e do gosto, quem tem o tempo e os meios para ler, muito frequentemente acaba sem alma, sem amor pelo homem, acaba encrostado e endurecido pelo egoísmo de casta. Enquanto quem aspiraria, como aspira à vida, a este mundo da fantasia e do pensamento, quase sempre se encontra ainda privado dos elementos iniciais: lhes falta o alfabeto de alguma linguagem, não lhes sobram nem tempo, nem forças, ou, pior, estão corrompidos por uma falsa preparação, quase uma propaganda, que lhes barra e deturpa os valores. Quem encara um tratado de física, um texto de contabilidade, a gramática de uma língua, sabe que existe uma preparação específica, um conjunto mínimo de noções indispensáveis para tirar algum proveito da nova leitura. Quantos se dão conta de que uma bagagem técnica análoga é necessária para se aproximar de um romance, um poema, um ensaio, uma reflexão? E, ainda, que essas noções técnicas são incomensuravelmente mais complexas, sutis e fugidias do que as outras, e não podem ser encontradas em nenhum manual, em nenhuma bíblia? Todos acham que um conto, um poema, será naturalmente acessível à atenção humana comum, por falar não ao físico, ao contabilista ou ao especialista, mas sim ao homem que existe em todos eles. E é este o erro. Outro é o homem, outro, os homens. No final das contas, é tola a lenda de que poetas, narradores e filósofos se referem ao homem em absoluto, ao homem abstrato, ao Homem. Eles falam ao indivíduo de uma determinada época e situação, ao indivíduo que tem determinados problemas e procura resolvê-los à sua maneira, inclusive e sobretudo quando lê romances. Será preciso então, para entender os romances, situar-se em sua época e propor-se os seus problemas; o que quer dizer, nesse campo, aprender antes de mais nada as linguagens, a necessidade das linguagens. Convencer-se de que, se um escritor escolhe certas palavras, certos tons e ares insólitos, ele tem pelo menos o direito de não ser subitamente condenado em nome de uma leitura precedente, na qual os ares e as palavras estavam mais organizados, eram mais fáceis ou apenas diferentes. Esse feito da linguagem é o mais vistoso, mas não o mais urgente. Claro, tudo é linguagem em um escritor, mas basta ter compreendido isso para se ver em um mundo mais vivo e complexo, onde a questão de uma palavra, de uma inflexão, de uma cadência, torna-se de repente um problema de costume, de moralidade. Ou até mesmo de política.
Isso basta então. A arte, como dizem, é uma coisa séria. É tão séria quanto a moral e a política. Mas se temos o dever de nos aproximar dessas duas últimas com uma modéstia que mira a clareza – caridade com os outros e dureza conosco –, não é possível compreender com que direito, diante de uma página escrita, nos esquecemos de sermos homens e de que com um homem estamos falando.
Referência bibliográfica
PAVESE, Cesare. La letteratura americana e altri saggi. Livro digital. Turim: Einaudi, 2014, s/p.
Nas últimas semanas, a pesquisadora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux tem estado presente em diversas páginas da imprensa nacional e internacional. A sua tradução do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicada recentemente pela editora Penguin, entrou na quarta tiragem logo no primeiro mês de publicação. Assim, desde seu lançamento, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020) tem chamado a atenção do público e rendido boas reflexões sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior.
Flora estudou Línguas e Culturas Espanholas e Portuguesas na Universidade de Princeton. Em 2019, concluiu o doutorado em Estudos Brasileiros e Portugueses na Universidade Brown. Atualmente, vive no Rio de Janeiro e, entre outras atividades, é diretora de pesquisa da Rádio Novelo, produtora de podcasts como Maria vai com as outras, Foro de Teresina e 451 MHz. O blog Marca Páginas convidou Flora para uma conversa sobre tradução, literatura, pesquisa acadêmica, projetos futuros, e o resultado da nossa entrevista vocês conferem aqui. Boa leitura!
Marca Páginas: Flora, você começou a traduzir o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas como parte de seu projeto de doutorado, defendido na Universidade Brown em 2019. Você poderia nos contar mais sobre a sua tese? De que maneira essa pesquisa acadêmica foi importante para a tradução de uma obra literária?
Flora Thomson-DeVeaux:A tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas foi só um dos capítulos da minha tese, na verdade. Nos outros capítulos, tentei acompanhar a trajetória do romance em inglês – a primeira publicação foi no começo dos anos 1950 nos Estados Unidos e teve mais duas traduções posteriores. Fui atrás de descobrir quais circunstâncias levaram cada tradutor a embarcar no projeto, como foi o processo de edição e publicação, e como cada tradução foi lida no seu tempo. Também dediquei alguns capítulos a aspectos mais teóricos de crítica machadiana e tradutória, e falo sobre minha metodologia. Por fim, proponho que ler a obra machadiana através das suas traduções pode ser uma experiência reveladora.
Uma obra como Memórias póstumas de Brás Cubas é em grande parte uma colaboração entre o texto e o leitor. Em Dom Casmurro, o narrador nos diz que este é um livro “falho”, com lacunas, que cabe ao leitor preencher. Essa é uma operação silenciosa que acontece na cabeça de quem lê Machado de Assis; mas o tradutor acaba imortalizando um pouco do processo na página. Por isso, ler várias traduções da mesma obra machadiana pode jogar uma luz sobre as complexidades do texto original.
Antes de começar a traduzir o livro, mergulhei nos estudos machadianos e da tradução para me situar melhor nos campos respectivos. Queria estar a par não só da grande gama de interpretações que se tem feito do romance, mas também dos debates e estratégias propostos por tradutores nos projetos mais diversos. Na verdade, alguns dos textos que mais me ajudaram tinham pouco ou nada a ver com Machado e Brás Cubas – entre eles, um estudo sobre as traduções de poesias de John Donne para o francês e espanhol e outro que examina vários escritores de língua inglesa em tradução para o italiano. Acredito que essa contextualização tenha sido importante para minha abordagem ao texto – me deixou antenada para perceber alusões e dinâmicas comentadas por outros leitores, e também entrei no processo com algumas ideias de estratégias possíveis debaixo do braço.
Marca Páginas:Apesar de Machado de Assis ser bastante conhecido no Brasil, sabemos que sua circulação é ainda restrita em outros países. Você já tinha ouvido falar sobre Machado de Assis antes de decidir estudar literatura brasileira? Como você conheceu a obra de Machado e o que te motivou a traduzi-la?
Flora Thomson-DeVeaux: Não tinha ouvido falar em Machado de Assis antes de entrar na faculdade. Conheci justamente como aluna de literatura brasileira – na verdade, como aluna de língua portuguesa. Foi naquela época que me apaixonei pela prática da tradução, mas não pensei imediatamente em trabalhar com Machado – até porque quase todos os romances dele já tinham sido traduzidos para o inglês (o último foi Ressurreição, que foi traduzido em 2013). Só comecei a pensar nessa possibilidade quando fui traduzir um livro de João Cezar de Castro Rocha, chamado Machado de Assis: por uma poética da emulação. Sempre que João Cezar citava obras de Machado que já tinham sido traduzidas, procurei citar as traduções existentes – mas em muitos casos, as traduções não encaixavam com a análise minuciosa que estava sendo feita no livro de crítica. Com isso, me vi obrigada a retraduzir alguns trechos daqueles romances. Foi uma experiência instigante, bem na véspera de eu entrar no programa de doutorado, e que me ajudou a definir meu projeto em torno de uma nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas.
Marca Páginas:Em ocasiões anteriores, quando foram publicadas outras traduções de Machado no exterior, havia uma grande expectativa de que o escritor seria reconhecido fora do Brasil. Sua tradução parece finalmente estar despertando essa atenção. A quais fatores você atribui esse reconhecimento? Por que agora e não antes?
Flora Thomson-DeVeaux: Infelizmente, suas perguntas provavelmente poderiam ter sido feitas no centenário da morte de Machado em 2008, ou na época das primeiras retraduções nos anos 1990, e elas ecoam questionamentos e esperanças da década de 1950. Quando estudei a recepção das traduções anteriores, vi sempre muita esperança em torno de cada lançamento, mas a repercussão acabava esvaindo sem que Machado de Assis se estabelecesse definitivamente nas prateleiras anglófonas. Torço muito para que desta vez seja diferente. Mas o primeiro tradutor de Memórias póstumas, William Grossman, chegou a dizer que Machado, com sua ironia delicada e fina, jamais seria um autor para as massas, e só seria descoberto e desfrutado por um público seleto.
Marca Páginas:Memórias Póstumas foi publicado no século XIX, em 1881, o que implica desafios tradutórios diferentes se compararmos a experiência à tradução de um texto contemporâneo. Quais foram os seus maiores desafios diante desse trabalho? E quais foram as estratégias e os instrumentos que você utilizou para lidar com esses desafios?
Flora Thomson-DeVeaux: A maior dificuldade não era só de tentar habitar o inglês do final do século XIX, mas sobretudo de medir o quanto que as escolhas linguísticas do autor se diferenciavam daquelas dos seus pares. Ou seja: quando Machado escrevia algo de um jeito que me parecia esquisito, tinha que descobrir se a esquisitice era temporal, cultural, ou machadiana mesmo – se era uma expressão muito usada naquela época que caiu em desuso, se era uma expressão brasileira de difícil interpretação no contexto anglófono, ou se era uma invenção dele, ou uma opção dele por uma palavra deliberadamente obscura. Nesses últimos casos, tentava chegar em alguma solução que fosse ao mesmo tempo compreensível e que também ficasse suficientemente esquisito aos olhos do leitor anglófono. Para identificar se Machado estava se diferenciando muito de seus pares, eu usei tanto bases de dados chamados corpus linguísticos, que medem a frequência de uso das palavras ao longo dos anos, quanto a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde usuários podem acessar milhares de publicações digitalizadas do século XIX e XX. Ah, e acabei acumulando uma coleção respeitável de dicionários antigos português-inglês (melhor: portuguez-inglez), que às vezes preservam definições e explicações de frases e termos que teriam sido correntes no século XIX, mas já não são tão compreensíveis.
Marca Páginas: Estudos sobre tradução já foram tema aqui no blog Marca Páginas[1], inclusive para falar sobre traduções de Machado de Assis para o espanhol[2]. Considerando as nuances que perpassam a experiência de tradução, seja como traição, seja como coautoria, de que maneira você definiria seu trabalho como tradutora?
Flora Thomson-DeVeaux: Jamais me definiria como traidora, mas também não me vejo muito como co-autora. Me identifico muito com uma descrição da última crônica do Machado: “eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.” Vejo o trabalho de tradução como essa missão de uma leitura minuciosa, obsessiva, que pode muitas vezes “descobrir o encoberto”.
Marca Páginas:Para terminar, você poderia nos contar quais são seus próximos projetos? Você pretende continuar traduzindo a obra de Machado de Assis?
Flora Thomson-DeVeaux: Não descarto voltar a Machado, mas não penso em emendar em outra obra dele. Ainda estou pesando algumas opções de projeto – gostaria de fazer uma tradução de uma obra que ainda não tenha versão em inglês. Meu próximo projeto não tem nada a ver com tradução: é um podcast narrativo sobre o caso da Ângela Diniz, que deve ser lançado nos próximos meses pela Rádio Novelo.
Hoje vocês votam o Prêmio Strega. Admito que não é algo de grande importância, embora eu também não ache que tenha algo de “cômico”, como diz incompreensivelmente certo jornal romano da tarde.
Se não é importante, é indicativo. Pelas seguintes razões:
Os literatos italianos têm, junto à opinião pública, uma péssima fama: são sempre vistos inevitavelmente em uma chave humorística, como personagens sedentários, fofoqueiros, mundanos, preguiçosos, aquiescentes, vaidosos, esnobes, medíocres e também mesquinhos. Em resumo, um tipo de peso morto na sociedade italiana, um tipo de setor do zoológico ou do folclore, ainda que não sejam da pior espécie (por serem inofensivos).
Objetivamente, os literatos italianos traíram certas ilusões, nascidas na década passada, quando, em determinado momento, parece que substituíram os padres como guias espirituais. Com a queda da potencial hegemonia comunista – à qual se devia até então o sucesso literário -, trata-se na realidade de um novo retorno à ordem. E não se pode dizer que o espírito de humor, pelo qual todo jornalista médio é tomado ao falar dos literatos em geral, seja totalmente sem fundamento.
Sobre esse ambiente familiar (provinciano) da literatura italiana, começa a se formar um novo momento histórico, relacionado à relação entre literatura e opinião pública, quando – após um breve e confuso intervalo de tempo – vai se substituindo a tendência cultural hegemônica do PCI (ou seja, a política do engajamento, já abandonada pelo próprio PCI) por uma nova hegemonia, a da indústria cultural. Alguns manager tomaram o lugar de Togliatti ou de Alicata. Mas Togliatti e Alicata, mesmo que cínicos, diplomáticos, pragmáticos, eram ainda homens de cultura. Foram os últimos representantes daquele tipo de intelectual (ao qual, afinal, toda a minha geração pertence) que fora descrito por Tchekhov e que Lenin conhecera e analisara. O intelectual humanista, de nascimento ou de origem provinciana e camponesa – pré-industrial.
Em geral, os manager da indústria cultural não são, por sua vez, homens de cultura. E justamente por isso – mesmo que não sejam mais jovens do que nós – pertencem a uma nova espécie de intelectual: o intelectual que nem Tchekhov, nem Lenin conheceram. O intelectual não mais humanista, não mais humano, eu diria. Típico fenômeno de uma civilização técnica, que está mercantilizando a cultura. Ou seja, a indústria cultural só pode ser dirigida por quem está fora daquilo que historicamente ainda é, para nós, a cultura.
Por tais razões, digo a vocês, caros colegas literatos, que chegou o momento de se fazer um exame de consciência não novecentista.
A hegemonia cultural de esquerda acabou, com seus mitos e seus valores? Pois bem. Está nascendo daí uma outra hegemonia, aquela da indústria cultural, com seus mitos (totalmente cínicos e materiais) e seus valores (inevitavelmente falsos)? Pois bem. Isso quer dizer que devemos agir fora de qualquer forma hegemônica. Aqui me vem espontaneamente uma palavra que odeio, porque se tornou senhal: autogestão. O literato italiano deve finalmente se politizar por meio de sua própria decisão. Com isso não quero dizer que ele deva fazer política, mas sim que deve se inventar e levar adiante uma política cultural que reivindique sua autonomia e sua liberdade.
O que hoje ameaça essa autonomia e essa liberdade das esquerdas, não de maneira indireta e no final das contas civil (a discussão e o debate aconteciam em um nível humanístico comum), é a fúria produtiva e consumista de uma cultura de outra natureza, que acabará por desfigurar completamente as características literárias, mesmo que modestas, da nossa Nação provinciana, e distorcer todos os seus valores, determinando-lhes novas hierarquias.
Como tal ameaça é grave e iminente – e não distante, a ponto de observá-la com o mesmo ceticismo de costume, considerado tão cômico pela opinião pública -, basta observar alguns dos casos literários-humanos criados recentemente durante a campanha eleitoral do Prêmio Strega, feita justamente sob a brutal sede de sucesso de uma editora. (Penso de maneira explícita em alguns críticos de revistas, amigos meus, que ainda assim quero amar.)
Em resumo, a brutalidade da indústria cultural não deforma apenas os valores literários, mas chega a deformar também as consciências e a degenerar a humanidade. Nada além de guias espirituais. Fomos reduzidos, mais uma vez, a bobos: não a bobos da corte (onde pelo menos existia a alternativa do outro, quer dizer, da pobreza e da realidade), mas a bobos do neocapitalismo (onde o outro é formado pelo consumidor e pela irrealidade).
Tudo isso me faz pensar, em conclusão, que o Prêmio Strega não é aquela besteira sem importância – assembleia de pura vaidade – que a indiferença política (franja podre do humanismo) quer nos fazer acreditar através da imprensa conservadora. Não: o caso do Prêmio Strega é um caso de consciência e diz respeito não apenas ao futuro pessoal de um único literato enquanto literato, mas também ao seu futuro enquanto homem e à sua função pública de cidadão.
A batalha perdida com o Prêmio Strega (e não posso ser otimista aqui) será uma batalha perdida não digo pela literatura italiana, mas pela cultura italiana. Significa que de agora em diante os livros serão escritos por certos editores; significa que tudo aquilo que uma cultura literária poderia oferecer a uma nação será totalmente negativo, pois irá se constituir de produtos medianos de consumo. Tudo aquilo que faz parte da real função de um poeta, mesmo que menor (protesto, contestação, invenção, inovação, não reconhecimento, problemática, escândalo, religiosidade, dúvida, maldição, vitalidade), irá desaparecer.
Portanto, caros amigos jurados, deixem que as pessoas que não têm nada a ver com literatura, com cultura e com qualquer moral inclinada à verdade votem a favor do livro que o editor e os organizadores do prêmio, já evidentemente do seu lado, querem que vença. Mas vocês, homens de cultura, votem em branco. Este seria o primeiro protesto coletivo da sociedade literária italiana, seria o seu primeiro título de mérito coletivo.
Na verdade, seriam suficientes os 50% mais 1 dos votos brancos para que a literatura italiana – representada, infelizmente, em parte e arbitrariamente pelo júri do Strega – conseguisse sua primeira vitória, manifestasse pela primeira vez a sua decisão de ser dona de si mesma e a sua escolha de lutar por uma causa que é evidentemente, ainda, a causa correta.
Em março de 1970, um avião vindo da Itália, com destino a Argentina, fez um pouso de emergência na cidade de Recife, no litoral brasileiro. Nesse avião, viajavam Pier Paolo Pasolini e Maria Callas, ambos a caminho do Festival de Cinema de Mar del Plata, no qual apresentariam ao público o filme Medea (1969). Pasolini havia escrito e dirigido o filme e Maria Callas, grande cantora lírica, havia atuado como a protagonista Medeia. Durante as poucas horas em que ficaram confinados ao aeroporto pernambucano, ambos tiveram as suas primeiras impressões em território brasileiro. E dessa experiência improvável, resultado de um pouso surpresa, veio a inspiração para que Pasolini, que além de cineasta era também poeta, escrevesse dois poemas sobre o país que ali conhecera: “Comunicato all’Ansa (Recife)” e “Il piagnisteo di cui parlava Marx”. E é assim que o poeta descreve como se sentiu em sua chegada:
no aeroporto em construção, passando
diante de um grupo de operários que trabalham, dos olhos
que se levantam aos passageiros
É assim que o Brasil me saúda
(Transumanar e organizzar, 1971; tradução minha).
Pasolini associa as suas primeiras experiências no Brasil a essa espécie de porta-retrato do país. A imagem criada pelo poeta mostra que, dentre todas as primeiras observações que ele teve ao aterrissar e adentrar o aeroporto, foi o olhar dos operários, trabalhando na construção enquanto observavam os passageiros recém chegados, que lhe saudou, em nome do país, pela primeira vez.
Esses dois poemas que mencionam a estadia do cineasta em Recife estão publicados no livro Transumanar e organizzar, de 1971. E nesse mesmo livro, quase no final, encontramos ainda mais um longo poema, “Gerarchia”, em que o Brasil é novamente referenciado. Porém, ao invés de se referir às horas passadas dentro do aeroporto, nesse outro poema a referência é a um momento posterior, quando do retorno do escritor à Itália após o festival. A essa altura da viagem e já sozinho, Pasolini decide fazer uma breve parada de poucos dias nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, e “Gerarchia” é a descrição do que Pasolini viu e viveu em terras cariocas.
Nesse poema, reproduzido a seguir, o autor italiano descreve como foi ser guiado por um rapaz brasileiro (algo como Dante ao ser guiado por Virgílio) ao subir até uma favela, onde o autor teve a oportunidade de conhecer uma casa genuinamente brasileira, construída nas periferias da cidade. Esse jovem que Pasolini conheceu nas areias de Copacabana, Joaquim, integraria o que o poeta chamaria de hierarquia do país, composta em uma de suas extremidades por velhos intelectuais burgueses, semelhantes ao próprio poeta italiano (como ele mesmo declara) e, na outra, por jovens proletários, como Joaquim. As diferenças entre as duas classes originariam uma ambiguidade, o “nó inextricável”, que comporia a sociedade brasileira, segundo a visão do escritor.
É interessante observar que o poeta, ao descrever suas impressões sobre a sociedade brasileira, reconhece recorrentemente algo de sua própria nacionalidade, a ponto de se dizer concidadão brasileiro e de se referir ao Brasil como sua “pátria” e “terra natal”. O que haveria de similar entre o Brasil e a Itália para Pasolini? O que seria essa ambiguidade que o poeta percebe ao visitar uma favela no Brasil e que, de alguma forma, em sua opinião, se aproxima de características que ele tão bem conhecia em seu próprio país?
Uma possibilidade é pensar que, nos anos de 1970, isto é, contemporaneamente à sua passagem pelo Brasil, Pasolini estava bastante atento às mudanças culturais que ocorriam na Itália, sobretudo nas periferias (borgate) e no Sul do país, denominando o conjunto de transformações em curso de “mutação antropológica”. Nas palavras do escritor, o processo de industrialização tecnológica pelo qual o seu país passou após o fim da Segunda Guerra Mundial foi responsável por uma transformação econômica e social profunda na sociedade italiana, à que ele dá o nome de mutação. Entre as consequências desse processo estariam a padronização cultural dos jovens italianos (devido à influência da televisão e da escolarização, por exemplo), e à busca desenfreada por bens de consumo. O aburguesamento da população, fruto dessa padronização cultural, seria ainda o fim de uma época, pois diante da força do consumismo os comportamentos do passado, ligados a certas tradições, não poderiam mais resistir.
Esse cenário devastador foi, sobretudo depois dos movimentos estudantis de 1968, a linha argumentativa preponderante nas obras de Pasolini. Então quando o poeta reconhece algo de similar entre a sua cultura e aquela vivida no Brasil é justamente nesse universo de referências que ele está interessado. Por isso, ao afirmar a ideia de um país latino criado “à imagem e semelhança do mundo europeu”, isto é, do seu próprio país, Pasolini nos leva a pensar que há algo na sociedade brasileira que se assemelha ao contexto consumista e padronizante que ele via impactar cada vez mais a sociedade italiana da mesma época.
Ainda que resguardadas as devidas particularidades históricas de cada país (as quais, sabemos, são muitas), haveria algo que nos aproximaria enquanto nações capitalistas, isto é, nações que fazem parte de um mesmo sistema econômico selvagem, baseado na produção e no consumo de mercadorias. A crítica de Pasolini é justamente às consequências culturais que esse regime econômico teria causado, padronizando todas as pessoas a partir do momento que todos consumiriam e se comportariam da mesma forma, pois não haveria outra alternativa.
Na Hierarquia social, essa padronização poderia ser vista sobretudo no comportamento dos jovens. No caso da Itália, Pasolini criticava a forma como os jovens que viviam nas borgate romanas ou no Sul do país se tornavam cada vez mais iguais fisicamente aos jovens do Centro, já que as diferenças culturais entre ambos haviam sido eliminadas pelo consumo e pela lógica burguesa. Parece que há a mesma linha crítica quando o poeta se refere ao Brasil, de forma que um jovem da Favela do Rio de Janeiro seria bastante semelhante a um jovem do Centro da cidade.
O diálogo entre as duas nacionalidades nos faz então questionar como é possível que níveis de desenvolvimento tão distantes pudessem ser aproximados pelo escritor. Porém, acredito ser inegável que, com o passar dos anos e com cada vez mais intensidade, nós, brasileiros ou italianos, continuamos a habitar esse mundo que Pasolini tanto criticava. Um mundo igualmente nocivo a todas as tradições e as diferenças, como o escritor denunciava, mas a que hoje não chamamos mais de padronizado e sim de globalizado.
Hierarquia (Pier Paolo Pasolini)
Se chego a uma cidade
de além-mar
Muitas vezes chego a uma cidade nova, levado pela dúvida.
Transformado da noite para o dia em peregrino
de uma fé em que não creio;
representante de uma mercadoria depreciada há tempos,
mas é grande, sempre, uma estranha esperança –
Desço do avião com o passo do culpado,
o rabo entre as pernas, e uma eterna vontade de mijar,
que me faz andar meio dobrado com um sorriso incerto –
É preciso livrar-se da alfândega e, muitas vezes, dos fotógrafos:
prática ordinária que cada qual cuida como uma exceção.
Depois o desconhecido.
Quem passeia às quatro da tarde
por canteiros cheios de árvores
e alamedas de uma desesperada cidade aonde europeus pobres
vieram para recriar um mundo à imagem e semelhança do seu,
impelidos pela pobreza a fazer do exílio uma vida?
Com um olho em minhas coisas, em minhas obrigações –
Depois, nas horas vagas,
começa minha busca, como se também ela fosse uma culpa –
Mas a hierarquia está bem clara em minha cabeça.
Não há Oceano que resista.
Nessa hierarquia os últimos são os velhos.
Sim, os velhos, a cuja categoria começo a pertencer
(não falo do fotógrafo Sardeman que com a mulher
já íntima da morte me acolhe sorrindo
no estudiozinho de sua vida inteira)
Sim, há uns velhos intelectuais
que na Hierarquia
se põem à altura dos mais belos michês
os primeiros a ocupar os pontos mais cobiçados
e que como Virgílios conduzem com popular delicadeza
alguns velhos são dignos do Empíreo,
dignos de estar ao lado do primeiro garoto do povo
que se dá por mil cruzeiros em Copacabana
ambos são o meu guia
que me levando pela mão com delicadeza,
a delicadeza do intelectual e a do operário
(quase sempre desempregado)
a descoberta da invariabilidade da vida
necessita de inteligência e de amor
Vista do hotel da Rua do Rezende Rio –
a ascese precisa do sexo, do pau –
aquela estreita janela do hotel em que se paga o quartinho –
se olha por dentro o Rio, num aspecto de eternidade,
a noite de chuva que não traz frescor,
e molha as ruas miseráveis e os destroços,
e as últimas cornijas art nouveau dos portugueses pobres
milagre sublime!
E assim Josvé Carrea é o Primeiro na Hierarquia,
e com ele Harudo, vindo menino da Bahia, e Joaquim.
A Favela era como Cafarnaum sob o sol –
Percorrida por córregos de esgoto
os barracos amontoados
vinte mil famílias
(ele na praia me pedindo cigarro como um prostituto)
Não sabíamos que aos poucos revelaríamos uns aos outros,
prudentemente, uma palavra após a outra
dita quase distraidamente:
eu sou comunista, e: eu sou subversivo;
sou soldado num destacamento especialmente treinado
para combater subversivos e torturá-los;
mas eles não sabem;
as pessoas não se dão conta de nada;
só pensam em viver
(me fala do subproletariado)
A Favela fatalmente nos esperava,
eu grande conhecedor, ele guia –
seus pais nos acolheram, e o irmãozinho pelado
recém-saído de trás do oleado –
ah, sim, invariabilidade da vida, a mãe
me falou como Maria Lìmardi, preparando a sagrada
limonada para o hóspede; a mãe branca mas ainda de carnes jovens;
envelhecida como envelhecem as pobres, e no entanto menina;
sua gentileza, e a de seu companheiro,
fraternal com o filho que só por sua vontade
era agora uma espécie de mensageiro da Cidade –
Ah, subversivos, procuro o amor e encontro vocês.
Procuro a perdição e encontro a sede de justiça.
Brasil, minha terra,
terra de meus verdadeiros amigos,
que não se ocupam de nada
ou se tornam subversivos e como santos são cegados.
No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade
imagem do mundo que de velho se faz jovem,
ponho os velhos, os velhos burgueses
pois um velho popular da cidade permanece jovem
não tem nada a defender –
anda vestido de regata e calças aos trapos como Joaquim, o filho.
Os velhos, minha categoria,
quer queiram ou não –
Não se pode escapar ao destino de possuir o Poder,
ele se põe por si
lenta e fatalmente na mão dos velhos,
ainda que tenham as mãos furadas
e sorriam humildemente como mártires sátiros –
Acuso os velhos de terem de todo modo vivido,
acuso os velhos de terem aceitado a vida
(e não podiam não aceitá-la, mas não há
vítimas inocentes)1
a vida, acumulando-se, produziu o que ela queria –
acuso os velhos de terem feito a vontade da vida.
Voltemos à Favela
onde ou não se pensa em nada
ou se quer ser mensageiro da Cidade
lá onde os velhos são pró-americanos –
Entre os jovens que jogam bola mal
diante de elevações encantadas sobre o frio Oceano,
quem quer alguma coisa e o sabe foi escolhido ao acaso –
ignorantes de imperialismo clássico
de qualquer delicadeza quanto ao velho Império a explorar
os Americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos
sempre acesos por seu sexo como bandidos por uma fogueira de gravetos –
É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e outro subversivo;
aquele que arranca os olhos
pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados.
Joaquim nunca poderia ser diferente de um sicário.
Por que então não amá-lo se o tivesse sido?
Também o sicário está no vértice da Hierarquia,
com seus traços simples apenas esboçados
com seu simples olho
sem outra luz que aquela da carne
Assim no topo da Hierarquia
encontro a ambiguidade, o nó inextricável.
Ó Brasil, minha pátria desgraçada,
destinada sem escolha à felicidade
(de tudo são donos o dinheiro e a carne,
ao passo que você é tão poético)
dentro de cada habitante seu, meu concidadão,
há um anjo que não sabe nada,
sempre dobrado sobre seu sexo,
que se move, velho ou jovem,
para pegar em armas e lutar
indiferentemente pelo fascismo ou pela liberdade –
Oh, Brasil, minha terra natal, onde
as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –
para nós, velhos, readquirem sentido –
respondendo à graça de delinquentes ou de soldados
à graça brutal.
Sartre.
(Poesia de Pier Paolo Pasolini, 2015; tradução Maurício Santana Dias)
Os professores-pesquisadores Maria Betânia Amoroso (Unicamp), Mariarosaria Fabris (USP) e Michel Lahud (Unicamp) também escreveram sobre as relações entre Pasolini e o Brasil.
“A viagem de Pasolini ao Brasil” faz parte de uma série de reflexões que compõem a minha pesquisa de doutorado, “A importância de Pasolini no jornalismo italiano dos anos 1970”, desenvolvida na Unicamp e financiada pela FAPESP.
Nos últimos tempos, o nome do intelectual italiano Antonio Gramsci tem sido citado, assim como o de Marx, com grande frequência no Brasil. A ascensão de um governo de direita e de seus seguidores, de viés assumidamente conservador, parece sustentar como base para sua legitimação popular o método de difamação de tudo aquilo que não está de acordo com a sua perspectiva. Dessa forma, tratar como ameaças a pluralidade de pensamento e a existência de ideologias é algo que tem feito parte de tal estratégia . Mas por que será que intelectuais de esquerda, como Gramsci, incomodam tanto assim? A provocação desse questionamento, essencial à sobrevivência da reflexão de tipo humanista, me levou a esse texto-manifesto de Gramsci, “Odeio os indiferentes”, de 1917. Nele, o intelectual reage à apatia política existente em momentos de crise, convocandosutilmentea população a tomar partido e a assumir responsabilidade pelos acontecimentos históricos. Essa leitura ressou para mim muitas relações entre a Itália de 1917 e o Brasil de 2019, sobretudo por concordar que, diante de retrocessos, não podemos ficar indiferentes. E se a leitura de Gramsci é algo que incomoda, então certamente é Gramsci que irei ler, traduzir e compartilhar cada vez mais.
Odeio os indiferentes. Acredito, assim como Federico Hebbel, que “viver quer dizer ser partidário[2]”. Não podem existir apenas homens, estranhos à cidade. Quem vive de verdade não pode não ser cidadão e não tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da
história. É a bola de chumbo de um inovador, é a matéria inerte em que os entusiasmos
mais esplêndidos frequentemente se afogam, é o pântano que cerca a velha cidade
e a defende melhor do que os muros mais sólidos, melhor do que o peito de seus
guerreiros, porque deglute os assaltantes em seus poços limosos, e os dizima e
os abate e por vezes os faz desistir do feito heroico.
A indiferença age potentemente na história. Age passivamente, mas age. É a fatalidade; é aquilo com que não se pode contar; é aquilo que estraga os programas, que inverte os planos mais bem construídos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a estrangula. O que acontece, o mal que recai sobre todos, o bem possível que um ato heroico (de valor universal) pode gerar não se deve tanto à iniciativa dos poucos que agem, mas à indiferença, ao absenteísmo de muitos. O que acontece não acontece porque alguns querem que aconteça, mas porque a massa dos homens abdica à sua vontade, deixa que façam, deixa que se agrupem os nós que depois só a espada poderá cortar, deixa que promulguem leis que depois só a revolta poderá revogar, deixa que cheguem ao poder homens que depois só um motim poderá derrubar.
A fatalidade que parece dominar a história não é outra coisa que não a aparência ilusória dessa indiferença, desse absenteísmo. Alguns fatos amadurecem à sombra; poucas mãos não supervisionadas por nenhum controle tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados por visões restritas, escopos imediatos, ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não sabe, porque não se preocupa com isso. Mas os fatos amadurecidos dão em algum lugar, a teia tecida à sombra chega a um fim, e então parece que a fatalidade está a abater tudo e todos, parece que a história não é nada além de um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, do qual todos são vítimas, quem quis e quem não quis, quem sabia e quem não sabia, quem estava ativo e quem era indiferente. E esse último se irrita, querendo fugir das consequências, querendo deixar claro que ele não queria isso, que ele não é responsável. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas ninguém ou poucos se perguntam: se eu também tivesse cumprido com meu dever, se tivesse tentado fazer valer minha vontade, meu ponto de vista, teria acontecido o que aconteceu? Mas ninguém ou poucos se culpam por sua indiferença, por seu ceticismo, por não ter estendido seu braço e suas atividades aos grupos de cidadãos que, justamente para evitar tal mal, combatiam, à procura do bem a que se propunham.
Sobre acontecimentos já concluídos, a maioria dessas pessoas prefere falar em fracassos ideais, programas arruinados em definitivo e outras amenidades similares. Recomeçam assim a se ausentar em relação a qualquer responsabilidade. Não que não vejam as coisas com clareza, que não sejam capazes de às vezes apresentar boas soluções aos problemas mais urgentes ou àqueles problemas que, por exigirem mais preparação e tempo, são igualmente urgentes. Mas essas soluções permanecem amplamente infecundas, essa contribuição à vida coletiva não é animada por alguma luz moral. Ela é produto da curiosidade intelectual e não de um sentido pungente de responsabilidade histórica que quer todos ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum tipo.
Odeio os indiferentes também por me entediarem com seu choramingo de eternos inocentes. Peço as contas a cada um deles sobre como cumpriram a missão que a vida lhes impôs e lhes impõe cotidianamente, sobre o que fizeram e especialmente sobre o que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar minha piedade, que não devo dividir com eles as minhas lágrimas. Sou partidário, vivo, já sinto pulsar nas consciências viris da causa que escolhi a cidade futura que essa causa está construindo. E nela a cadeia social não pesa sobre poucos, nela cada coisa que acontece não é por acaso, por fatalidade, mas pela ação inteligente dos cidadãos. Não há nela ninguém que esteja na janela só olhando enquanto poucos se sacrificam, sangram em sacrifício; e aquele que estiver na janela, em uma emboscada, quererá usufruir do pouco bem que o trabalho de poucas pessoas tentou realizar e descontará a sua desilusão insultando o sacrificado, o sangrado, porque não conseguiu cumprir seu objetivo.
Vivo, sou partidário. Por isso
odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.
11 de fevereiro de
1917.
[1] Tradução a partir da versão
publicada no livro Odio gli indifferenti
(Milão: Chiarelettere Editore, 2018 [2011]).
[2] Uma curiosidade: na citação utilizada por Gramsci, em italiano, a palavra que aparece é partigiano. Historicamente, esse termo se tornou mais conhecido com a Resistência Italiana ao fascismo. Durante as ocupações ocorridas de 1939 a 1945, na Segunda Guerra Mundial, partigiano era aquele que combatia contra os exércitos fascistas. Porém, no contexto em que o texto de Gramsci foi escrito, em 1917, tal termo foi utilizado no sentido de tomar parte, tomar partido a favor de determinada causa, em oposição à ideia de ser indiferente a algo [nota da tradutora].
Dacia Maraini (Fiesole, 1936) sempre esteve atenta às questões feministas de seu tempo. Desde o primeiro romance, L’età del malessere, publicado em 1963, até o livro mais recente, Tre donne: una storia d’amore e disamore, de 2017, é possível observar a presença de protagonistas femininas enfrentando as dificuldades de fazer parte de um mundo pouco simpático à sua existência. Além dessa preocupação explícita na produção literária de Maraini, a qual compreende romances, contos, poemas, peças de teatro, roteiros e livros infantis, a escritora italiana também se dedica ao tema em sua produção ensaística. Assim, em “Porque as mulheres se rebelam hoje em dia” (1973), deparamo-nos com suas reflexões não ficcionalizadas sobre as mulheres na sociedade italiana dos anos de 1970. Esse texto, publicado em resposta ao escritor Goffredo Parise, ocupou um lugar privilegiado no grande jornal italiano Corriere della Sera. A coluna em que circulou, Tribuna Aperta, era reservada a importantes escritores-intelectuais da época e, nesse sentido, a publicação do texto de Maraini cumpre um papel significativo ao ocupar esse espaço com as discussões sobre o feminismo. Nós que hoje o lemos, à distância de mais de 40 anos, reconhecemos ali as marcas dos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970, que tratavam questões de sexualidade, raça e classe social de maneira menos crítica e não interseccional, como faz o feminismo contemporâneo. Porém, ainda é possível vermos ressoadas em nosso próprio tempo e em nosso próprio país muitas dessas mesmas questões que Maraini apresenta, ainda que ressignificadas por reflexões diversas e novos debates.
Porque as mulheres se rebelam hoje em dia (1973) [1]
Se eu fizesse um discurso do tipo: “Oh, os operários, mas que tanto eles têm para protestar? Eu conheço um operário, um belo rapaz loiro de olhos azuis, cheio de orgulho e de coragem, que trabalha suas 8 horas diárias sem reclamar tanto. Tem um Fiat Seiscento, se veste com certa elegância, vai ao cinema quando quer, nas férias de verão vai à praia. É feliz. Conheço outro que trabalha como mecânico, é bonito, jovem, cheio de vida, trabalha muito sim, mas daí no domingo veste uma calça jeans, uma camisa florida e vai para o jogo carregando seu rádio de pilha e sua vitrola portátil. Tem até um Honda. É verdade que para consegui-lo teve que fazer alguma maracutaia, mas não grande coisa. E não perdeu sua virilidade, seu orgulho, seu bom humor. Esses são os operários que conheço, modernos, independentes, nada de ficar choramingando, fazendo pose ou romantizando. Acima de tudo, eles não têm o complexo do explorado. Vivem bem, são sérios, sabem rir, sabem se divertir, sabem também trabalhar, mas sem reclamar. E se eles se prostituem, isso os torna mais atraentes. Ao contrário dos outros, que resmungam, protestam, se juntam e se fazem eternamente de vítimas. Que chatice!”
Se eu fizesse um discurso desse tipo, todos diriam que eu sou uma apática política[2] da pior espécie, diriam que vejo os problemas sociais de forma pessoal. E certamente me acusariam de ter um raciocínio “feminino”, isto é, irracional e particularista.
Pois esse mesmo discurso sobre os operários que faço como hipótese, Goffredo Parise faz de verdade, falando das mulheres. De maneira particularista e irracional, com a mesma indiferença tranquila em relação ao conjunto do problema. Estou me referindo ao artigo intitulado “Femminismo”[3], publicado aqui neste jornal.
Esse discurso de Parise é, infelizmente, muito comum entre os homens de todas as classes sociais. Frequentemente os escuto julgar de maneira decisiva: “Qual a necessidade do feminismo? Vocês já são praticamente iguais a nós homens. Façam o que quiserem, se comportem como preferirem, que mais vocês estão pedindo? Veja, eu sou mais feminista do que vocês. Eu amo as mulheres, as reverencio, as estimo, até as venero. Mas, por favor, não façam tanto alarde, não comecem a ideologizar porque isso estraga vocês. Vocês ficam instantaneamente feias e chatas”.
Se Parise, que há algum tempo escolheu o papel de defensor do contra, soubesse quão comum é esse discurso, talvez ele ficasse um pouco mais constrangido.
O feminismo é algo muito mais complicado e mais profundo do que aquele “cuidado para não engordar” a que ele se refere. O feminismo não nasce de uma genérica lamentação pelas próprias desgraças. Todos têm suas próprias desgraças e é importante saber guardá-las pra si mesmo. Mas nesse caso se trata de algo muito mais grave. Trata-se de metade da humanidade ter estado em situação de submissão por milhares de anos nas sociedades patriarcais que existiram ao longo da história. E a sociedade atual não é menos patriarcal do que as outras, apesar da sua aparente “liberalidade”.
O fato de hoje existirem mulheres aparentemente independentes e livres que talvez mandem em seus maridos não significa que a submissão segundo os homens tenha acabado. A liberdade não é um fato individual. E uma mulher não pode ser livre enquanto outros milhares de mulheres estão em estado de submissão.
A exploração não se torna menor. A grande maioria das sociedades desse mundo não teriam ido em frente se não tivessem vivido à custa de milhões de donas de casa que se matam de trabalhar 12 horas por dia sem remuneração de nenhum tipo, sem assistência médica, sem nem ao menos o reconhecimento social pelo trabalho que fazem.
A essa altura poderiam dizer: se está tão ruim assim, por que todas essas mulheres não protestam, não se rebelam? Por que continuam ali bondosas e contentes, satisfeitas consigo mesmas e com o mundo? A resposta é que a opressão criou na mulher uma forma nociva de passividade e fatalismo. A mulher não nasce passiva, mas se torna, para se adequar a um modelo de comportamento social.
Os opressores, no entanto, encontraram um ótimo sistema para aprisionar a mulher à sua própria opressão ao transformar sua passividade em dado fisiológico, em natureza. Enquanto a mulher não entender que sua passividade é um resultado histórico e não um destino natural, ela não se libertará da sua “inferioridade” psicológica em relação ao homem.
Isso não quer dizer que a mulher deva se masculinizar. Uma mulher-macho é a imitação ruim de um homem. Ela deve simplesmente se tornar um ser humano completo, munida de relações com o mundo, as quais são necessárias para se estar dentro, e não fora, da história. Recusar a passividade não significa recusar o amor ou a doçura. Pelo contrário, recusar a passividade significa desejar que a doçura seja uma escolha, não uma imposição.
O amor, segundo os movimentos de libertação da mulher, é algo vivido em duas pessoas, com o mesmo empenho e a mesma participação, recusando a agressividade de uma das partes e a aquiescência da outra; recusando a oposição tradicional ativo-passivo, sádico-masoquista, fazer-ser feito etc. O amor, como se entende hoje, se parece muito com uma agressão, com uma apropriação, com uma ofensa do homem à mulher. É por isso que muitas mulheres sensíveis e orgulhosas recusam o orgasmo, e se tornam frígidas. É uma recusa implícita do amor como uma forma de “se render” à brutalidade.
Os movimentos de libertação da mulher querem fazer renascer na mulher o sentimento de integridade humana. Querem que a mulher deixe de se considerar um ser incompleto, passivo, frágil, disponível, mutilado. Um ser humano pela metade, em resumo, de acordo com o conceito freudiano.
Mas ao mesmo tempo recusam o modelo “masculino” tradicional. Não é imitando o homem que a mulher vai se libertar, mas sim tomando consciência da sua realidade histórica, social e psicológica.
Não se fica livre da opressão fingindo que ela não existe, como acontece com muitas mulheres que fizeram carreira no mundo dos homens e odeiam ouvir falar dos problemas da emancipação feminina. Elas “conseguiram”, então pensam que a tarefa acaba por aí. Mas a liberdade, como dito antes, não é algo privado. Nenhuma mulher é realmente livre enquanto há outras mulheres em estado de servidão. Somos mulheres. Somos diferentes porque tivemos uma história diferente. Mas a nossa diferença não é uma vergonha. É a nossa realidade, da qual devemos partir em cada reivindicação de direitos.
Não é só uma questão de creches, igualdade salarial, remuneração para as donas de casa. É uma questão de aprender a ver com os próprios olhos os próprios problemas. É uma questão de falar com a própria voz. De pensar com a própria cabeça. Para isso, é importante se isolar e se organizar por conta própria. Não por ódio aos homens ou por desconfiança em relação às organizações políticas em que os homens dominam. Mas para nos acostumarmos com o ato de pensar sobre nossa própria situação de opressão.
E sobre aquilo que Parise disse, que as mulheres não seriam uma classe, se ele tivesse refletido um pouco mais teria percebido que isso é muito mais complexo, confuso e menos claro do que geralmente se pensa. Porque é verdade que existem as mulheres pobres e as mulheres ricas, mas é raro que as mulheres ricas, até mesmo as muito ricas, sejam ricas por conta própria. Em geral, são ricas por causa dos maridos ou dos pais. Ou seja, as mulheres usufruem da riqueza sem de fato produzi-la. Em outras palavras, são sustentadas e, portanto, não são livres. O próprio Parise escreve a propósito de uma delas: “Seu único privilégio é ser genialmente uma puta”.
As mulheres burguesas vivem essa estranha contradição: tem dinheiro à sua disposição, mas não o possuem de verdade. Há algo de ridículo, de irreal, de absurdo na mulher burguesa rica. Tudo o que ela faz ou diz soa sempre falso. E por quê? O ridículo vem do fato de que ela usufrui do poder sem compartilhar desse poder; antes, permanece decisivamente excluída dele.
A mulher pobre, a mulher do povo, nunca é ridícula porque sua relação com o mundo, ainda que limitada, é real. Porque mesmo ela, assim como seu marido, produz. A mulher burguesa que não faz nada e vive sustentada pelo marido é um absurdo social, uma alienação viva. Vêm daí suas neuroses. Daí a falsidade do seu intelectualismo, quando ele existe, que incomoda justamente os verdadeiros intelectuais.
Quando se fala em classe, no que diz respeito às mulheres, se entende essa situação particular em que, sejam mulheres pobres, sejam mulheres ricas, ambas têm em comum a dependência em relação a um homem.
Que existam mulheres que pela força do caráter ou pela “genialidade de puta” saibam dominar seus maridos, apesar da dependência econômica, porque são “mais bonitas, mais sensíveis, mais inteligentes, mais elegantes, em uma palavra muito mais ‘simpáticas’, mesmo se o marido for um coitado”, como escreve Parise, isso não muda nada.
Até mesmo entre os escravos, houve quem cativasse o coração do patrão e acabasse conseguindo o que queria. Mas fazer isso não acabava com a escravidão, nem com a sua, nem com a dos outros escravos.
É provável que a essa altura Parise me diga que sou uma fanática, uma chata, que seria melhor eu ficar quieta porque estou parecendo ingênua e “pasionaria”[4].
E eu lhe responderia que é essa ingenuidade e essa passionalidade que quero reivindicar como algumas das melhores características femininas, que devem ser cultivadas e não reprimidas.
[1] Publicado no jornal Corriere della Sera, em 10 de julho de 1973. Está recolhido também na coletânea Giornalismo Italiano 1968-2001, na coleção I Meridiani (organização de Franco Contorbia; Milão: Mondadori, 2009) [nota da tradutora].
[2] Em italiano, Maraini utiliza o termo qualunquista. Historicamente, o qualunquismo está relacionado ao movimento autodenominado apolítico posterior à Segunda Guerra Mundial, o qual pretendia se desvincular tanto do fascismo, quanto do comunismo, defendendo a possibilidade de uma posição indiferente e apática politicamente das pessoas comuns. No vocabulário cotidiano, passou a referenciar negativamente aqueles que, pela desconfiança nos meios políticos e institucionais, acabam se aproximando a posicionamentos conservadores [nota da tradutora].
[3] “Femminismo” foi publicado por Goffredo Parise no jornal Corriere della Sera, em 20 de maio de 1973 [nota da tradutora].
[4] La Pasionaria foi o pseudônimo utilizado pela ativista antifascista espanhola Dolores Ibárruri (1895-1989). O termo passou a ser utilizado na língua italiana para referenciar mulheres de luta, atuantes em atividades políticas e ideológicas [nota da tradutora].
Ontem, dia 26 de outubro de 2018, tive a honra e a alegria de participar de um encontro do Mulherio das Letras. Esse grupo de mulheres, que se auto-organizou em 2016/2017 para dar voz à literatura lida e escrita por mulheres, é um dos movimentos mais lindos que já vi acontecer no Brasil. E poder estar pessoalmente com essas tantas mulheres foi uma experiência que iluminou minha jornada e renovou minha fé na vida. Então, eu gostaria de compartilhar aqui com vocês o que eu apresentei lá ontem. Eu queria dizer para todas nós, mulheres, que sabemos que nossa luta nunca foi fácil, mas que nossa força renascerá sempre que precisarmos ser resistência. Às vésperas do segundo turno das eleições brasileiras, eu queria lembrar cada mulher que eu conheço, e cada mulher que vocês conhecem, de que floresceremos quantas vezes forem necessárias! Meu amor por todas vocês <3
As Mulheres dos Estudos Literários
Cláudia Tavares Alves
Outubro Literário: Mulherio Europa em verso e prosa
Università degli Studi di Perugia – Italia
26/10/2018
Bom dia. Gostaria de agradecer ao cuidado da organização, sempre tão prestativa, e à escuta de vocês aqui hoje. Pensando em como eu poderia começar esta apresentação, me dei conta de que seria possível partir de muitos pontos diferentes para abordar o tema das Mulheres nos Estudos Literários. Eu poderia, por exemplo, começar me apresentando, dizendo que sou doutoranda na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que estudo literatura há 11 anos, e que atualmente estou na Itália fazendo um estágio de pesquisa sobre o escritor Pier Paolo Pasolini. Ou eu poderia começar dizendo que tenho um blog de divulgação científica sobre Literatura, o Marca Páginas, vinculado a um portal de blogs da Unicamp, e que nele mantenho uma série de publicações que se chama, justamente, as Mulheres dos Estudos Literários. Eu poderia também citar alguma escritora mulher que se dedicou a pensar sobre seu próprio fazer literário ou a teorizar a produção literária existente, e daí pegar um gancho para pensar a relação das mulheres com a Literatura. Quem sabe eu poderia ainda começar pela situação caótica e horrenda que estamos vivendo em nosso país e como, enquanto mulheres brasileiras, temos visto nossos direitos mais básicos serem ameaçados por um candidato à presidência. E que pouco importa não estarmos fisicamente no Brasil nesse momento de instabilidade política, continuamos sendo brasileiras onde quer que estejamos.
Apesar dessas tantas possibilidades, escolhi começar minha apresentação dizendo que hoje estou aqui não só como Cláudia Tavares Alves, mas também como alguém que conversou e ouviu companheiras da área dos Estudos Literários e que, por isso, acredita que tem algo a dizer sobre o assunto. Estou aqui como uma mulher que foi silenciada e que viu serem silenciadas diversas outras mulheres ao longo desses 11 anos de estudo e pesquisa. Estou aqui como alguém que teve que lidar durante todo esse tempo com a sensação de incapacidade, de inferioridade e de não merecimento por ocupar os lugares que ocupa e que sabe que, infelizmente, seu caso não é único nem isolado. Por isso, ainda que falando em nome de outras mulheres, é difícil não conjugar esses verbos na primeira pessoa do singular: essas experiências foram sentidas no meu corpo, na minha pele, na minha mente. E mesmo que elas não tenham acontecido exclusivamente comigo, como pude confirmar com os depoimentos que recolhi, é sempre difícil despir-se das próprias experiências individuais para falar em nome de alguma coletividade.
Mas talvez a primeira e mais importante coisa que preciso dizer antes de desdobrar esse ponto é que, de todos os inícios que imaginei, nenhum deles poderia ser imparcial ou apolítico. Estar aqui hoje, ao lado de mulheres extremamente fortes e capacitadas, é um gesto político que não podemos perder de vista. Hoje, na Itália e no Brasil, somos vozes políticas que ressoam, que lutam, que resistem. Um encontro de mulheres para falar sobre Literatura em suas diversas manifestações só pode ser um gesto político e, nesse sentido, precisamos nos lembrar de que estamos reunidas hoje por nós mesmas, e também pelas outras tantas mulheres que não puderam estar aqui.
E pensando nas Mulheres dos Estudos Literários, não consigo evitar a ideia de que temos feito tantas coisas apesar de. Apesar do machismo, dos espaços reduzidos, do silenciamento, da insegurança, do pouco incentivo e investimento, hoje temos uma rede de mulheres lendo, escrevendo, traduzindo, estudando, produzindo conhecimento de alta qualidade. Se historicamente precisamos lembrar que nosso lugar foi por muito tempo reservado a trabalhos domésticos, hoje, pelo contrário, somos maioria no Ensino Superior[1]: ocupamos 57,2% das vagas das universidades brasileiras. Esse número, entretanto, não corresponde ao número de professoras universitárias: nesse caso, somos ainda 45,5% do total de docentes de Ensino Superior em nosso país. Um número bastante baixo se pensarmos que, na Educação Básica, 80% são de professoras do sexo feminino.
Esses números foram divulgados pelo INEP (Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa), em 2016, e, para além dos dados quantitativos, tive contato com uma série de depoimentos que me fizeram perceber como não foram tantas as professoras mulheres que em geral tivemos na graduação no que se refere a crítica, teoria e história literária. Mesmo sendo uma área ligada a Letras, na qual majoritariamente vemos mulheres se graduando, a Literatura, por algum tempo, foi um território tomado por homens. Por isso foi e ainda é bastante comum que professoras sejam referenciadas, em geral, apenas como professoras, enquanto que os professores homens podem ser professores, escritores, intelectuais, renomados e reconhecidos por seus sobrenomes.
E o que dizer ainda das mulheres que foram e são sutilmente apagadas da história? Penso, por exemplo, em quantas de nós chegamos a ler Gilda de Melo e Sousa ou Viviana Bosi, grandes pensadoras e professoras universitárias de Literatura. Com certeza, não na mesma proporção com que lemos Antonio Candido e Alfredo Bosi. É claro que não estou aqui diminuindo a importância desses críticos literários devido ao seu gênero masculino, mas me pergunto há algum tempo por que será que lemos tão poucas mulheres em todas as etapas de nossa formação escolar e universitária. Me pergunto, por exemplo, por que quando me formei, em 2006 no Ensino Médio, minhas referências literárias de escritoras estavam reduzidas a Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles. Isso porque sempre fui uma aluna que gostava de Literatura, tive boas condições econômicas para adquirir livros e me interessava em ler para além das leituras obrigatórias. Quantas das minhas colegas pararam em Machado de Assis e Graciliano Ramos, e nunca souberam dos livros incríveis que foram escritos também por escritoras mulheres?
Atualmente, com as ondas do feminismo e os movimentos sociais que têm trazido para as esferas institucionais esse tipo de debate, podemos perceber um certo esforço em querer modificar esse cenário. Para pensarmos em exemplos concretos, trago a lista de leituras obrigatórias proposta pelo vestibular da Unicamp. Ele é historicamente considerado inovador e progressista no sentido de priorizar a capacidade de reflexão crítica dos candidatos. Além disso, tem sua própria lista obrigatória de leituras, a qual é uma das mais atentas às discussões atuais e busca sempre inovar e dialogar com as questões contemporâneas. Pudemos ver, recentemente, a inserção das canções do álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap Racionais MC’s, como leitura literária obrigatória. Essa escolha, com certeza, representa uma quebra importante de paradigmas dentro do que pode ou não ser considerado Literatura.
Porém, já se deram conta de que a primeira vez que uma obra literária escrita por uma mulher esteve nessa lista foi em 2016, com o conto “Amor”, de Clarice Lispector? E por mais que exista um esforço em alterar essa situação, ela não melhora tanto assim com o passar dos anos. Antes de 2016, a lista era composta por 9 livros escritos por homens e nenhum por mulheres. Depois de 2016, a lista passou a ser composta por 12 leituras e apenas um conto escrito por uma mulher foi incorporado a ela.
Para as listas de 2019 e 2020, já anunciadas, a situação apresenta uma melhora que deve ser considerada. Dentre as 12 leituras obrigatórias, agora temos 3 escritas por mulheres. Em 2019, além do já mencionado conto de Clarice, temos o livro de poemas A teus pés, de Ana Cristina César, e os diários de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Para 2020, permanecem Ana Cristina César e Carolina Maria de Jesus, sai Clarice Lispector, e acrescenta-se Júlia Lopes de Almeida, com o romance A falência.
Confesso que eu não conhecia a escritora Júlia Lopes de Almeida antes da lista do vestibular e, assim como eu, acredito que muitas outras pessoas também não a conhecessem. Conversando com alguém que estudou justamente o romantismo brasileiro em sua pesquisa de Doutorado, percebi que nem mesmo ele conhecia a escritora desse período. Então, de alguma forma, a presença desse livro na nova lista de leituras obrigatórias o reinsere na história literária brasileira, à medida que reconhece a importância de um livro esquecido por grande parte da nossa historiografia literária.
Acredito que esse movimento pode ser entendido de pelo menos duas maneiras distintas, mas complementares. A primeira a partir da ideia de que existe um movimento político de inserir a leitura dessas mulheres nas listas dos vestibulares, de forma que as próprias universidades passem a pautar os conteúdos escolares e acabem gerando dessa forma uma reação em cadeia. Ao levar os livros dessas escritoras para as salas de aula do ensino fundamental e médio, ainda que pela obrigatoriedade do vestibular, mais gente estará lendo mulheres.
A outra maneira seria entender que estamos, dentro das universidades, mais atentas a esse tipo de produção literária, e que, por isso, conforme conhecemos mais Literatura produzida por mulheres, mais encontramos boa Literatura escrita por mulheres. Então, a inserção dessas escritoras se deve à qualidade estético-literária dessas obras, que estavam até então esquecidas pela crítica e pelo público leitor, enão ao gênero a que elas estão vinculadas.
A meu ver, essas duas interpretações se complementariam e de maneira nenhuma a primeira anularia a pertinência da qualidade da segunda. Vejam, é consenso que não foram só os homens que escreveram e escrevem boa Literatura. Mas se não conhecermos a Literatura feita por mulheres, se não tivermos oportunidades para lê-las, não poderíamos sequer julgar sua qualidade.
A professora e pesquisadora Regina Dalcastagnè, em parceria com o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), tem levantado dados alarmantes, aos quais me deterei brevemente apenas para ilustrar o nível de disparidade existente. Com a pesquisa Personagens do romance brasileiro contemporâneo, foi constatado que, entre o período de 1990 e 2004, nos quase 300 romances pesquisados, apenas 27,8% das obras foram escritas por mulheres. Os 72,2% dos escritores homens eram ainda, em sua grande maioria, brancos, de classe média e habitantes do eixo Rio-São Paulo. Esse dado talvez nos ajude a entender por que, no mesmo período e baseando-se nos mesmos romances pesquisados, apenas 37,8% das personagens eram mulheres e por que cerca de 16% desses livros não apresentavam nenhuma personagem mulher significativa[2]. É ainda chocante que, em um segundo momento dessa mesma pesquisa, que compreende o período de 2005 a 2014, entre os quase 200 romances pesquisados, esses dados se alteram muito pouco: 29,4% de autoras mulheres e apenas 34,6% de personagens femininas[3].
Se as mulheres escritoras são minoria e, por isso, são pouco lidas, e ainda não são representadas nos livros que lemos, como então nos sentirmos motivadas a ocupar esse lugar de escrita e de estudo? Não nos vimos, por muito tempo, representadas nas leituras que nos foram impostas e também nas leituras que pudemos escolher. Além disso, quantas mulheres ao longo dos anos foram incentivadas a serem escritoras? Acredito que pouquíssimas. Em contrapartida, nunca tivemos tantas mulheres escrevendo e se movimentando no meio literário como hoje – e a existência do Mulherio e desse evento nos últimos anos é uma prova maravilhosa de que esse espaço existe e pode ser diferente.
É por todos esses motivos que posso dizer que estamos diante de um movimento que se complementa e faz a roda girar, possibilitando uma mudança dessa situação. E à medida que políticas públicas, como as das listas dos vestibulares, colocam em jogo mais escritoras mulheres, mais escritoras mulheres se sentem representadas e aptas a escreverem e publicarem suas obras. E assim, felizmente, a literatura produzida por mulheres ganha força no cenário literário brasileiro.
Quanto à área dos Estudos Literários, a situação também é ainda hoje um campo de ressignificação constante. Ouvi de mais de uma amiga, assim como ouvi de mim mesma por muito tempo, que a carreira acadêmica na área de Literatura não foi sequer desejada por pensarmos que essa área não seria para nós. O que significa, então, quando mulheres nem sequer cogitam uma possibilidade profissional por acreditarem que não servem, que não se encaixam naquela posição social? Com que frequência, aliás, ocorre essa espécie de autossabotagem em que, antes mesmo de considerarmos que não teremos capacidade para alcançar algo, dizemos a nós mesmas, em silêncio, que determinado lugar simplesmente não nos pertence? A construção social é tão forte, e estamos tão imersas nas escolhas que nos seriam óbvias, que não conseguimos mais conceber o que estão nos dizendo que é impossível de realizarmos.
Mas afirmo mais uma vez que estamos aqui hoje reunidas para lembrarmos umas às outras, cada qual com sua própria caminhada, que somos sim uma rede de mulheres extremamente capacitadas para fazermos o que quisermos. Estamos ocupando espaços que até pouco tempo atrás eram pouco imagináveis porque estamos nos vendo espelhadas em outras mulheres que conseguiram, que são brilhantes, que merecem estar onde estão porque têm capacidade de sobra para ocupar as posições que ocupam. E quando vemos outras mulheres nessas posições em que gostaríamos de estar, o impossível se torna possível.
Hoje, depois de tantos anos formulando e lidando com essas inquietações, faço questão de estar atenta à produção literária e crítica feita por mulheres. Mas é fato que grande parte desse acompanhamento se dá de maneira não institucionalizada, para além do universo acadêmico. O que quero dizer com isso é que é preciso que eu faça um esforço para chegar à Literatura e à crítica literária produzida por mulheres, pois nós ainda ocupamos um espaço reduzido na academia. Uma série de iniciativas, como o próprio Mulherio, nos ajudam a acessar esse tipo de conteúdo produzido por mulheres. Além disso, a pesquisa formal, nas bibliotecas, e a informal, em passeios despretensiosos por livrarias, não me deixam perder de vista que a cada homem que tenho a chance de ler, pois seu livro está exposto na vitrine, existe provavelmente uma mulher contemporânea a ele que não teve oportunidades igualitárias de ter seu trabalho divulgado.
E com isso retorno aos nossos dias presentes e penso que, quando o trabalho das mulheres em geral é diminuído até mesmo por um candidato à presidência do Brasil – e, infelizmente, isso provavelmente não o fará perder uma eleição –, estamos diante de um cenário pouco animador. Pesquisas realizadas recentemente, em 2017 e 2018, pela agência de empregos CATHO, mostram que ainda somos pior remuneradas em todas as áreas profissionais. Mulheres com ensino superior ganham ainda hoje um salário 43,5% menor do que homens ocupando exatamente os mesmos cargos. Além disso, somos minoria em cargos importantes e de gestão, e apenas aproximadamente 25% dos cargos de presidência são ocupados por mulheres. Nem mesmo na área da Educação, onde, como já vimos, somos maioria no ensino básico, essa disparidade salarial deixa de existir: as mulheres ainda recebem 9% a menos do que os homens[4].
E obviamente nada disso está relacionado à nossa menor capacidade de atuação. Pelo contrário, as experiências de trabalho tendem a ser melhores com mulheres ocupando cargos importantes, justamente porque precisamos nos preparar muito mais para fazer o que precisamos fazer, já que sabemos que seremos mais cobradas e mais questionadas por qualquer deslize cometido. E precisamos ainda demonstrar mais seriedade e compromisso com o trabalho, pois estamos sujeitas ao assédio moral e sexual recorrentes em ambientes de trabalho, inclusive dentro das universidades.
É diante desse cenário alarmante, entretanto, que nos refazemos. Somos mulheres, conhecemos desde sempre a força que nos habita e nos encoraja. Nossa própria existência é um ato constante de resistência e, por isso, os percalços de um mundo difícil de mudar não nos assusta. Estamos cercadas de boas companhias: boas companheiras de luta, boa literatura feita por mulheres, boas professoras, pesquisadoras e estudantes que hoje configuram uma geração que se questiona sobre as reflexões que tentei apresentar aqui hoje. A geração de crianças e adolescentes meninas que vem por aí, por sua vez, está chegando ainda mais consciente de que ninguém poderá limitar sua existência.
Eu gostaria então de terminar minha apresentação com a leitura de um poema escrito pela poeta italiana Piera Oppezzo, falecida em 2009, que está recolhido no livro Donne inpoesia, de 1976. Fiz essa tradução há alguns meses quando a legalização do aborto não foi aprovada pelo Senado, na Argentina. Eu queria dizer para nossas hermanas, assim como eu gostaria de dizer aqui para todas nós hoje, que nossa existência como mulheres é a nossa maior força e que é com os nossos medos, com os nossos fracassos e os nossos erros, que reconstruímos essa nossa força. Com ela, nos reinventamos e reinventamos, inclusive, nossa própria esperança de que, um dia, um mundo menos desigual floresça. Obrigada.
O grande medo, de Piera Oppezzo
A história da minha pessoa
é a história de um grande medo
de ser eu mesma,
contraposto ao medo de me perder de mim mesma,
contraposto ao medo do medo.
Não poderia ser diferente:
na apreensão se perde a memória,
na submissão, tudo.
Não poderia
a minha infância,
saqueada pela família,
me permitir uma maturidade estável, concreta.
Nem a minha vida isolada
me permitir algo menos frágil
do que este debater-me entre ânsias e incertezas.
À infância, eu sobrevivi,
À idade adulta, eu sobrevivi.
Quase nada em comparação à vida.
Eu sobrevivi, no entanto.
E agora, entre as ruínas do meu ser,
Alguma coisa, uma utopia imóvel, está para florescer.[5]
O ano é 2018, século 21. Apesar da imensa distância espaço-temporal e também das diferenças entre as sociedades, vira e mexe eu me pego pensando em uma obra datada do século 2. São declarações como “Os livros que não trazem a verdade sobre o regime de 1964 têm que ser eliminados”[1] e notícias como “Livros de direitos humanos são rasgados na biblioteca da UnB”[2] que me transportam à introdução da obra Agrícola, de P. Cornélio Tácito, escrita por volta do ano 98 d.C.[3]
Tácito nasceu por volta do ano 56 e faleceu no ano 118 d. C. Ele foi um importante historiador de sua época e sua obra, que retrata o período do Império romano, nos chegou em grande parte conservada[4]. A obra da qual sempre me lembro intitula-se A vida de Júlio Agrícola (De uita Iulli Agricolae) e narra, conforme o título sugere, a biografia de seu sogro, Júlio Agrícola. Bem, tentando não me afastar demais do porquê tal livro me vem à mente, faço um breve resumo de seu contexto de produção.
Trata-se do início do principado de Trajano, em Roma, quando Tácito finalmente sente-se livre e seguro para escrever sem correr perigo por causa do conteúdo da obra que pretende produzir. No texto, antes de apresentar a personagem principal, o autor faz uma reflexão sobre a escrita da história, mais especificamente, de textos biográficos e autobiográficos. Segundo ele, desde tempos muito remotos, homenagear a vida daqueles considerados ilustres na sociedade era um costume bastante comum. Mas Tácito nos conta que, em seu ofício de historiador, durante muito tempo encontrou dificuldades para compor uma homenagem a Agrícola, um homem que julgava exemplar naquele contexto. Essa personagem central da obra viveu durante os principados de Nero e de Domiciano: dois imperadores que comumente são vistos como os mais cruéis da história do Império romano[5]. Ainda na abertura da obra, Tácito explica também sobre a impossibilidade de compor sua obra à época de Domiciano e relembra o que houve com aqueles que se atreveram a escrever:
Nós lemos que quando Trásea Peto e Helvídio Prisco foram louvados por Aruleno Rústico e Herênio Senecião, respectivamente, isso se tornou motivo de pena capital. E não se enfureceram só contra os próprios autores, mas também contra seus livros. Delegou-se aos triúnviros a tarefa de queimar as memórias dos mais ilustres espíritos, no comício do fórum. Certamente, pensavam ter também coibido com aquele fogo a voz do povo romano, a liberdade do senado e a consciência do ser humano. Sem contar os filósofos que foram expulsos e toda a nobre arte levada para o exílio, para que nada se encontrasse de honesto em parte alguma. Fornecemos, sem dúvida, uma grande prova de paciência, e tal como a geração antiga viu o extremo da liberdade, do mesmo modo nós vimos o extremo da escravidão e até o acordo entre o falar e o ouvir foi suprimido por meio de inquéritos. Também teríamos perdido com a voz a própria memória, se em nosso poder estivesse tanto o esquecer quanto o calar[6].
Aruleno Rústico e Herênio Senecião, seguindo a tradição literária, escreveram obras em homenagem a duas personalidades conhecidas na história romana por sua oposição à autoridade do imperador e à falta de liberdade de expressão do senado[7]. Ambos foram punidos com a morte. Seus livros, e talvez outros mais, foram queimados em público. Tudo isso porque representavam condutas de personagens que em certa medida questionavam a autoridade única do imperador e denunciavam a corrupção de seus pares. O fogo, como Tácito nos diz, também deveria silenciar a voz do povo, suas ideias, sua consciência. A liberdade de pensamento também foi censurada, expulsando-se dali os filósofos. Ou seja, havia uma grande preocupação em limitar os discursos circulantes. Pode-se dizer que a Literatura (e, consequentemente, o pensamento em circulação) só poderia representar aquilo que passasse pelo crivo do imperador[8].
Por um lado, quando eu vejo notícias como as que mencionei no início deste texto, não consigo deixar de pensar que, infelizmente, há mais de 2000 anos obras são lançadas ao fogo, a fim de apagar a pluralidade de visões em determinados momentos históricos. Nem era preciso ter ido tão longe para encontrar testemunhos desse tipo, tantas outras vezes isso já aconteceu na história da humanidade[9]. Por outro lado, eu fico feliz e me fortaleço ao pensar em como a Literatura dispõe de força, valor político e atua como resistência. Não é à toa que os livros tornam-se vítimas concretas e simbólicas daqueles que pretendem contar uma história única. Tácito passou quinze anos em silêncio para preservar sua vida. Ao primeiro sinal de abertura, não deixou de relatar o autoritarismo existente outrora e as consequências daqueles que escreviam obras livres de uma adulação ao imperador. Fez de sua obra, portanto, memória daqueles que perderam suas vidas e também resistência, ao incluir na história os nomes daqueles que mereciam ser lembrados[10].
As manchetes que citei me fazem pensar nesse texto porque ali algumas palavras me chamam a atenção. Propõe-se eliminar livros que não contêm a verdade sobre um momento histórico há muito estudado e documentado. Mas qual verdade, afinal? Livros sobre direitos humanos são rasgados… a quem isso interessa nesse momento? A que tipo de políticas interessa suprimir obras, e mesmo seus autores, ao longo da História?
O nosso mundo e a nossa história são feitos de narrativas. De pontos de vistas. São sempre tempos lamentáveis aqueles em que vozes são silenciadas, concreta e simbolicamente. Mas a literatura resiste e, por meio dela, podemos também nós sempre resistir e buscar a liberdade de pensamento e de expressão. Afinal, a “arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós”[11].
Em tempo: este texto é sobre livros, mas não pode deixar de lembrar e lamentar a perda de tantos registros culturais, de obras de artes e de documentos que se perderam com o incêndio de museus importantes em nosso país. Museus que, negligenciados e abandonados pelo investimento público, foram consumidos pelo fogo junto com memórias do passado. Nos últimos três anos, o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa e o Museu Nacional tornaram-se vítimas desse fogo institucionalizado.
[3] Antes de continuarmos, é importante ressaltar que a leitura de obras antigas requer atenção a diversos conceitos e ao funcionamento próprio daquela sociedade para que não sejamos anacrônicos. Além disso, mesmo a ideia de História, como disciplina, é muito diferente daquela que temos hoje, bem como os procedimentos de sua escrita, questões que escapam ao espaço deste post. Para mais informações a esse respeito, indicamos a tradução completa e anotada dessa obra, disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/271127/1/Lima_DanielleChagasde_M.pdf.
[4] Mais sobre o autor e outros historiadores romanos em FUNARI, P. P.; GARRAFONNI, R. S. Historiografia:Salústio, Tito Lívio e Tácito. Coleção Bibliotheca Latina. Campinas: Editora Unicamp, 2016.
[5] Tácito escreveu sobre o principado de Nero na obra Anais (Annales), nos livros 13 a 16.
[6] Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 2. Tradução do latim de minha autoria. Temos outro testemunho antigo sobre este fato: Suetônio, que escreveu a obra AVida dos doze césares, também menciona esse ocorrido na biografia de Domiciano.
[7] Trásea Peto foi um senador romano cujo comportamento é lembrado como símbolo da oposição a Nero. Lutou por seus ideais até a morte. Helvídio Prisco foi exilado pelo imperador na mesma época. Para saber mais, indicamos os Anais e as Histórias, de Tácito.
[8] Domiciano não foi o único imperador a agir desta forma. O imperador Tibério também condenara o historiador Cremúcio Cordo, cujos escritos não lhe agradaram; sua obra foi queimada, conforme relatam Tácito (Anais, 4.34-5) e Suetônio (Vida de Tibério, 61.3).
[9] Em diversos momentos e sociedades, livros com discursos diferentes daquele dos regimes vigentes foram incinerados. O caso da biblioteca de Alexandria é bastante conhecido. Durante a Inquisição isso também ocorreu. Em 1933, livros foram queimados durante o Nazismo, na Alemanha. Mais recentemente, em 1973, Pinochet também ordenara queimar livros. Para mais eventos do tipo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_de_livros.
[10] Assim Tácito nos conta: Pois, se por quinze anos, um grande espaço de tempo da vida humana, muitos foram mortos por circunstâncias fortuitas e os mais diligentes pela crueldade do príncipe, poucos, por assim dizer, somos não só sobreviventes a outros, mas também a nós mesmos. Fomos arrebatados do meio da vida tantos anos, durante os quais viemos em silêncio, jovens até a velhice, velhos até quase o próprio fim de sua geração. Mas eu não lamentarei ter composto, mesmo com tom grosseiro e rude, a memória da servidão passada e o testemunho dos êxitos do presente (Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 3.2).
Rosmarie Waldrop é uma importante poeta norte americana. Nascida na Alemanha pouco antes da Segunda Guerra Mundial, passou sua primeira infância em meio a bombas e doutrinação ideológica nazista. Pequena demais para concordar ou discordar, viu tudo com um certo distanciamento. Adulta, retornou ao tema buscando entender, assim como toda a sua geração, o que se passara na Alemanha de seus pais; como a naturalização do horror nazista fez com que o Holocausto se escondesse atrás da rotina e da burocracia. Waldrop mudou-se para os Estados Unidos durante o pós-guerra, onde se casou com o também poeta Keith Waldrop. Na América, ela abandonou a língua alemã e passou a escrever em inglês, reforçando o distanciamento que precisava para revisitar o seu passado de forma crítica e consciente.
Parte dos seus poemas versa sobre a necessidade de investigarmos as camadas históricas da nossa sociedade, enfrentando memórias e acontecimentos que preferiríamos ignorar. Em um momento no qual discursos de ódio parecem se normalizar no Brasil, além de um apoiador confesso da tortura e da ditadura militar (algo impensável há alguns anos) liderar as pesquisas para presidência da república, revisitar o passado parece um exercício mais do que necessário; parece um dos únicos caminhos para salvarmos a nossa democracia e repensarmos o pacto democrático que a sustentou desde o fim da ditadura.
Árvore da memória
Rosmarie Waldrop, no livro Split Infinites
Tradução Marcelo Lotufo
E EM SEGUNDO LUGAR, na Alemanha
Meu primeiro dia na escola , setembro de 1941, dia show de bola. O tempo não passava, mas era conduzido ao cérebro. Me ensinaram. A saudação nazista, brincar de flautista. Quão firmemente entrincheiradas, as velhas teorias. Já usando papel, caneta e tinta. Sim, eu disse, estou aqui.
Eu tinha seis ou sete anões, a branca era de neve, o príncipe estava em guerra. Hitler no rádio, seguido por Léhar. Sentidos impingiam-se. Apagões, sirenes, colchões no chão, visitantes ou fantasmas furtivos.
E mamãe furiosa. Sirenes. Silvos. O gato. Minha irmã gritou como nunca. Sua amiga. Com medo de olhar. O que eu sabia sobre trabalho forçado ou trabalho de parto? Dos interiores profundos do corpo? Eu tinha aprendido a andar de bicicleta.
O gato preto. A neve branca, a flor azul. Uma ameaça de uma cor diferente. Movimento uniforme em velocidade inultrapassável. Nada fastidioso. Nada necessário o preenchimento de substâncias no âmago profundo.
Mãe, eu gritei, extremamente. E o lobo. Passando pela neve eu estava dentro de casa em, lã puxada sobre os meus olhos. O lobo. O menino que não gritou ‘olha o lobo’ também morreu. Aberturas crepusculares.
Testa honesta. Cabelos negros. Mãos parcimoniosamente sobre os joelhos. Uma menina polonesa. Na Alemanha? Na guerra? Movendo-se velozmente pelo ar entre nós, uma imagem contínua. Chega de medo de gato preto, sinos (assassinos, ferinos), de sirenes, silvos de bombas.
*
Uma longa vida aprendendo sobre o capítulo anterior. Que minha alma está de calça jeans, minha mãe dando à luz, meu banco de esperanças na Alemanha, leste de expectativas, oeste de ainda esperando. Na cama com um antídoto.
Comendo da árvore. Folhas caindo antes da queda. Por um buraco na memória. A fruta enruga novos problemas, mas não extingue. O pomar há muito abandonado.