A não-notícia do século: Obama salvou o planeta

Obama toma sua primeira medida concreta contra o aquecimento global.  (Foto Charles Dharapak, AP)

Obama toma sua primeira medida concreta contra o aquecimento global.
(Foto Charles Dharapak, AP)

 

O que faz um político quando está cheio de problemas, premido por uma crise econômica, acusado de jogar sujo contra opositores e que acaba de ser pego com a boca na botija mandando espionar os cidadãos de seu próprio país? Muito simples: salva a humanidade e revoluciona o panorama energético do planeta. Isso se esse político cheio de problemas se chamar Barack Hussein Obama.

Em um discurso de cerca de 40 minutos ontem, estrategicamente feito a uma plateia amigável de estudantes universitários de Washington DC, o presidente dos EUA anunciou seu aguardado plano para combater a mudança climática. Para os ambientalistas e a comunidade científica, que esperam um movimento de liderança dos EUA no assunto desde o fim da década de 1990, foi uma fala histórica, recheada de referências à ciência do clima e ao papel da inovação como propulsora de novas indústrias, que geram valor e empregos enquanto cortam a poluição. Obama não tergiversou nem mesmo sobre nomes: chamou os negacionistas do clima de “sociedade da Terra plana” e as areias betuminosas do Canadá de “tar sands”, esquecendo o nome que o marketing fóssil inventou para essa fonte altamente poluente de petróleo – “oil sands”. Arrancou aplausos da moçadinha presente ao convescote, mas também da União Americana de Geofísica, da imprensa britânica, de cientistas do clima que vêm sofrendo bullying dos céticos e de jornalistas americanos como Andrew Revkin, do New York Times. (Post Scriptum: leia aqui a análise de Michael Levi, do Council on Foreign Relations, sobre o que está nas entrelinhas do plano de Obama).

O anúncio feito pelo presidente tem três eixos, mas um principal: o Executivo não vai esperar pelo Congresso e decidiu impor limites de emissão de CO2 a todas as usinas termelétricas a carvão dos Estados Unidos. São mais de 1.600 plantas, que geram hoje 40% da energia do país. Elas serão reguladas por um ato da EPA, o Ministério do Meio Ambiente americano, seguindo uma determinação da Suprema Corte de seis anos atrás. Isso mesmo: o presidente dos EUA poderia ter tomado essa decisão há seis anos, mas só Obama desperdiçou quatro em seu primeiro mandato na esperança de que o Congresso, dominado pelo lobby fóssil, aprovasse uma lei baixando esses limites.

Obama também anunciou um pacote de estímulo às energias renováveis, aquelas que a nossa presidenta aqui embaixo gosta de chamar de “fantasia”. O americano quer dobrar a capacidade instalada de eólica e solar do país, produzindo energia renovável para 6 milhões de lares até 2020 e determinando ao Departamento de Defesa – o maior consumidor de energia dos EUA – que instale 3 mil megawatts (mais ou menos uma usina de Jirau) em renováveis em suas bases. “Eu quero que a América ganhe essa corrida, mas não dá para ganhar se não entrarmos nela.” Aplausos.

O discurso foi tão bom, e Obama é um orador tão cativante, que alguns comentaristas americanos entraram na torcida e se esqueceram de algumas coisinhas básicas. Primeiro, que o presidente não estava “preocupado com seu legado” ou “com os filhos dos nossos filhos”, como ele disse estar. Estava cumprindo uma promessa de campanha que havia feito não agora, mas em 2008. Portanto, o plano infalível da Casa Branca para salvar o mundo chega com cinco anos de atraso.

Depois, tem o diabo daquela frase que os americanos adoram: too little, too late. Embora o plano de Obama de fato ponha os EUA no rumo de cumprir a “meta” anunciada em Copenhague de cortar 17% das emissões do país em relação aos níveis de 2005, tal meta é menor do que o compromisso assumido e depois desassumido pelo Tio Sam no finado Protocolo de Kyoto Parte 1. Nunca é demais lembrar que, se quisermos ter pelo menos 50% de chance de limitar o aquecimento global a 2oC neste século, precisamos chegar a 2020 emitindo 44 bilhões de toneladas de CO2 equivalente; o cumprimento à risca de todas as metas de Copenhague (não só as americanas) deixar-nos-ia 5 bilhões de toneladas acima desse limite, e no rumo de um aquecimento de 3oC. O esperado imposto sobre o carbono nos EUA, que poderia afetar toda a economia do país, passou longe desta vez.

Por último, mas não menos importante, não vi muita gente por aí comentando o óbvio: Obama só se comprometeu com tudo isso porque seu país está montado no maior jackpot de combustíveis fósseis da história da humanidade: o tight oil, que tornará os EUA o maior produtor de óleo do mundo em 2020, e o gás de folhelho (xisto), que começará a ser exportado, de tão abundante, e que nos últimos cinco anos já transformou a matriz energética americana. Mais barato e menos poluente, o shale gas já tem entrado pesadamente no lugar do carvão nas novas térmicas, e foi corresponsável pela derrubada das emissões do país em 2012. O carvão tem amigos poderosos no Congresso dos EUA, mas é um cachorro agonizante. Está tão em desuso nos EUA que vem sendo exportado a preço de banana (quer dizer, pelo menos ao preço que a banana tinha antes do Mantega) para a Europa. Obama não respondeu onde vai enfiar o petróleo, mas enfatizou mais uma vez que o shale gas é uma fonte energética “de transição”. Com tanta energia pronta para ser extraída de seu subsolo, nosso Nobel da Paz afronegão pôde chutar o saco dos carvoeiros com relativa segurança.

Mas é claro que ninguém aqui, nem eu mesmo, na minha inocência, achava que Obama pudesse sozinho resolver a crise do clima. O diabo é que, em política, o gesto vale mais que o conteúdo. E o gesto do presidente terá provavelmente um efeito redentor sobre as desacreditadas negociações internacionais do clima na ONU, que têm um acordo marcado para 2015. Os EUA foram além de não atrapalhar: estão tomando a liderança do processo agora. Pegaram o bonde andando e já invadiram a cabine do motorneiro, como todo mundo achou que eles fariam quando tivessem o ferramental tecnológico certo. Uma passagem absolutamente genial do discurso de Obama de ontem foi um tremendo ovo de serpente lançado sobre a comunidade internacional: o americano pediu “livre comércio para as tecnologias limpas”. Em português claro, te cuida, China, porque nós vamos começar a fabricar essas traquitanas aqui e inundar o mundo com elas sem barreiras tarifárias. Cada vez mais, o fórum onde as questões ambientais mais importantes do mundo serão decididas deixará de ser a convenção do clima e passará a ser a OMC. É bom que seja assim.

Um pequeno colchete

[É tentador comparar o discurso de Obama com o de Dilma Rousseff, também feito ontem – titubeante, improvisado, autoritário e, como se viu, errado – em resposta igualmente a um clamor da população e a um Congresso que se descolou da sociedade. Dilma prometeu resolver o problema dos transportes urbanos dando R$ 50 bilhões para o PR (ex-faxinado), e sua proposta sobre o dinheiro do pré-sal terminou de matar o Fundo Clima, que poderia bancar o desenvolvimento de energias renováveis no Brasil. Mais uma vez, o patropi viu uma oportunidade real de desenvolvimento industrial real passar na frente e não agarrou. Em breve seremos clientes de tecnologias energéticas norte-americanas. A menos que o tema entre na pauta da próxima manifestação.]

 

 

Esquimós na pindaíba

Vitus Nielsen, ex-caçador que precisou passar a viver do anzol depois que o gelo diminuiu

Vitus Nielsen, ex-caçador que precisou passar a viver do anzol depois que o gelo diminuiu

Finn Pedersen mudou-se para a Groenlândia em 1985, para dar aulas de inglês e dinamarquês numa aldeia de 150 pessoas. Aposentado há um ano e casado com uma nativa, não pensa em voltar mais para a Dinamarca. “Tenho a melhor vista do mundo aqui.”

O “aqui” ao qual ele se refere é Upernavik, uma cidade de 2.500 almas construída num rochedo e cercada de centenas de quilômetros de nada. É o penúltimo aglomerado urbano antes do polo Norte e o último que merece tal designação (para os padrões groenlandeses de aglomerado urbano, claro). Viver aqui é uma operação logística complexa: não existe água encanada, não há hotéis nem restaurantes e tudo o que se come precisa ser caçado, pescado ou importado da Europa por navios cargueiros que às vezes ficam seis meses sem atracar por causa do gelo marinho (mas cuja frequência tem aumentado na mesma proporção em que o gelo diminui). Uma vez a cidade calculou mal seu estoque de papel higiênico. Em poucas semanas, acabou o filtro de café no supermercado. Em mais algumas, as pessoas pararam de devolver os livros para a biblioteca.

Até dez anos atrás, só se chegava a Upernavik de helicóptero, um Sikorsky S-61 N de 20 lugares que serviu na guerra do Vietnã. “Era uma aeronave muito sensível, barulhenta e insegura”, resume Pedersen. Frequentemente o mau tempo – uma constante nas altas latitudes – impedia o bicho de pousar na ilha de Upernavik e forçava os passageiros a voltar à origem do voo. Hoje existe um aeroporto no alto do morro e a Air Greenland consegue fazer voos mais ou menos regulares no verão, três vezes por semana, com duas escalas e a um preço que me impede de sentar para contar. Turistas, só de vez em nunca, a bordo de navios de cruzeiro.

Esta cidade é um dos lugares do planeta mais diretamente afetados pela mudança climática. E isso não é necessariamente ruim para seus moradores: os efeitos são mistos, com ganhos de um lado compensando perdas de outro. Pedersen conta que, nos últimos dez a 15 anos, muitas famílias que viviam da caça precisaram mudar de ramo e começar a pescar. Como o gelo tem ficado muito fino e instável, não é mais possível usar trenós puxados por cachorros durante boa parte do ano para avançar pelo mar congelado e caçar focas e baleias. O resultado é que manter os cães ficou caro demais para pouco retorno com a caça. Quem era caçador deu os cachorros e virou pescador, como Vitus Nielsen, um senhor simpático a quem Pedersen me apresenta num pequeno ancoradouro da ilha. O próprio Pedersen foi obrigado a dar seus cinco cachorros. Comprou um quadriciclo, que usa para andar pela cidade.

A pesca, em compensação, vai muito bem. A estatal Royal Greenland, que é praticamente dona do PIB da Groenlândia (o país ainda vive da pesca, sobretudo de camarão), comprou recentemente uma start-up, a Upernavik Seafood, e hoje opera em duopólio com uma cooperativa de pescadores local. Há processadoras industriais de pescado em vários assentamentos inuítes nos arredores, e o peixe chega em Upernavik pronto para ser embarcado para a Dinamarca. O halibute, estrela da economia local, continua sendo capturado no fiorde. Mas agora ele não está mais sozinho: o bacalhau, que prefere águas um tiquinho menos frias a sul de Upernavik, anda aparecendo em abundância no pedaço. E um salmonete chamado pelos locais de  “ammasit”, exclusividade do sul da Groenlândia, já deu as caras por aqui. “Há dez ou 15 anos você não encontrava ammasit nestas águas”, afirma o professor.

Não foram só eles. Começaram a aparecer jubartes, provavelmente nadando para o norte atrás de suas presas, e baleias-piloto, um tipo de golfinho preto conhecido por encalhar às dezenas no Pacífico. “O pessoal ficou feliz, porque, como era um animal novo, não tinha cota de caça”, lembra Pedersen.

Num lugar isolado como Upernavik, onde uma cebola custa R$ 3 (eu paguei) e a única agricultura é praticada por alguns moradores em vasos dentro de casa, a caça é indispensável para suprir vitaminas no inverno. E os groenlandeses atiram em tudo o que cruza seu caminho, inclusive ursos polares. “A carne é muito boa”, elogia o esquimó convertido. O petisco favorito é o mattaq, um toucinho de baleia comido cru e rico em vitaminas. Porém, a dieta local está cada vez mais dependente dos navios cargueiros, por conta de um segundo fator: o governo. Vitus Nielsen reclama de que várias restrições foram baixadas à caça de belugas (fala sério, você mataria uma fofura daquelas?) e narvais, e o preço da pele de foca despencou no mercado por causa dos limites à venda depois do embargo à pele canadense. Hoje um caçador recebe 250 coroas por pele, dinheiro que não paga duas garrafas de vinho vagabundo.

Antes de lamentar a sorte dos groenlandeses, cabe considerar que, até a 2a Guerra Mundial, os habitantes do país viviam praticamente na Idade da Pedra. Nos últimos 70 anos, eles tornaram-se perfeitos ocidentais, com as ressalvas ao ambiente onde vivem. Moram em casas confortáveis, não em iglus, e andam em barcos a motor, não em caiaques. Os groenlandeses já estão se adaptando às mudanças ambientais à sua volta. A crise econômica que arrebentou a Europa teve provavelmente um impacto muito mais sério sobre os empregos locais do que o sumiço do gelo marinho. Quanto a isso, a solução pode estar ironicamente na própria mudança climática. “No ano passado tivemos 20 navios de prospecção de petróleo por aqui”, diz Finn Pedersen. “Muita gente que ficou desempregada com a crise espera poder trabalhar nas plataformas. O governo esta pagando cursos para formar mão de obra qualificada.”

 

Categorias

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM