Mostre o amor – mas antes mande o carvão
A IMPRENSA BRITÂNICA traz hoje uma história comovente: os três principais partidos políticos do Reino Unido, os governistas Liberal (Thories) e Liberal-Democrata (Lib-Dem) e o oposicionista Trabalhista (Labour), assinaram um compromisso conjunto para transformar o combate à mudança climática mais uma vez numa política de Estado. Juntos, os adversários se comprometeram a buscar um acordo climático legalmente vinculante e que limite o aquecimento global a 2 graus Celsius; a trabalhar para ajustar o orçamento de carbono das ilhas britânicas, uma instituição do governo trabalhista, à Lei de Mudança Climática que os Thories fizeram de tudo para enfraquecer; e a banir para sempre das terras de Sua Majestade qualquer usina termelétrica a carvão que não sequestre o próprio carbono – o que os ingleses chamam de “unabated coal”.
O movimento, batizado de Green Alliance, é incomum porque une o premiê David Cameron, que está num vale de popularidade, o vice-premiê Nick Clegg, um ex-darling da esquerda cujo pragmatismo em se juntar a Cameron talvez lhe tenha custado a carreira, e o possível futuro primeiro-ministro, o trabalhista Ed Miliband. Mal comparando, seria como de Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves se juntassem para pedir o fim das hidrelétricas na Amazônia (deixo ao leitor a tarefa de dizer quem é esquerda e quem é direita neste caso). Ele vem na esteira de uma campanha chamada Show the Love (“Mostre o Amor”), movida por uma coalizão de ONGs britânicas para celebrar o Dia dos Namorados, que no hemisfério Norte é hoje. A campanha consiste em chamar atenção da população para lugares que as pessoas amam e que estão ameaçados pela mudança do clima. Uma de suas principais peças é um vídeo fofo no qual personalidades como o ator Stephen Fry recitam um soneto de Shakespeare.
A aliança suprapartidádia britânica deve ser comemorada, já que o Reino Unido tem sido tradicionalmente uma das principais vozes a defender o aumento de ambição no combate ao aquecimento global. Essa liderança se perdeu entre os governos de Gordon Brown e David Cameron, e fez muita falta. Com os bretões querendo mostrar serviço, seus vizinhos e eternos rivais gauleses ganham um respaldo importante para pressionar por um acordo no fim do ano em Paris.
Acontece que em política nada vem de graça. A promessa dos líderes partidários do Reino Unido de se livrar do carvão ocorre num contexto em que a chapa desse combustível fóssil já estava esquentando de qualquer forma. Como quase tudo em política, o anúncio só foi feito porque não traz custo nenhum a nenhum dos três.
Há décadas a Europa vem fazendo movimentos para se livrar do carvão mineral. Primeiro por causa da decadência da mineração no Reino Unido, onde as camadas sedimentares do Carbonífero vêm sendo exploradas intensamente desde que James Watt inventou sua máquina a vapor. O carvão causa chuva ácida, o smog que matou gente a rodo em Londres no século passado e o aquecimento da Terra. Os europeus são líderes em tecnologias de energia renovável. Têm desde os anos 1990 um programa de comércio de emissões por termelétricas (sim, o Protocolo de Kyoto rendeu frutos interessantes). Para eles, estava claro que havia limites ao futuro do carvão.
Isso foi acelerado com a tecnologia do fraturamento hidráulico para extrair gás de folhelhos nos Estados Unidos. A partir de 2005 ou 2006, o agora famoso “shale gas” (que muita gente ainda insiste em traduzir como “gás de xisto”) fez o preço do gás natura despencar nos EUA. O resultado foi a substituição do carvão na geração de energia, por razões puramente mercadológicas. A participação do carvão caiu de quase 40% para 24% na matriz elétrica americana. E tocou o sino da morte para esse mineral que tantas alegrias e tristezas nos deu desde o século 18: Barack Obama, amparado pelo “shale gas”, decidiu regular as emissões de usinas térmicas nos EUA para desestimular a entrada de novas usinas a carvão na rede.
O carvão mineral foi virando um mico para investidores. Os excedentes dos EUA e da Europa começaram a ir para a Ásia, em especial Índia e China. Mas aí foi a vez de os chineses botarem suas turbinas eólicas e seus painéis solares no mercado, anunciando um compromisso de pico e declínio de suas emissões em 2030. A China ainda responderá pela fatia do leão das 9 bilhões de toneladas de carvão que serão consumidas no planeta até 2019, segundo a Agência Internacional de Energia. Mas a partir da próxima década a situação desse combustível tende a mudar. Sinal disso é que o fundo soberano da Noruega, montado com dinheiro de petróleo, já anunciou desinvestimento em 32 mineradoras de carvão.
É claro que as potências carvoeiras não vão deixar isso barato e já estão dando um jeito de resolver o problema delas – mandando os ativos encalhados para o Terceiro Mundo, como sempre. Nas últimas semanas, ambientalistas na Europa descobriram um plano infalível na UE para exportar tecnologia de carvão para países africanos (link aqui tão logo eu o encontre). Do jeito que anda, o Brasil daqui a pouco estará na lista.
O governo brasileiro, como se sabe, tem apostado em termelétricas a gás e óleo para tentar mitigar o risco de racionamento causado pela falta de água nos reservatórios das hidrelétricas. Do ponto de vista lógico, a prática tem tanto sentido quanto o costume sul-africano de estuprar uma virgem para curar a infecção por HIV.
No impulso de “diversificar a matriz”, o novo mantra da eletrocracia nacional para garantir “segurança energética”, o governo deu para trás na promessa de fechar o Brasil ao carvão mineral. Aumentou preços mínimos para permitir que o combustível se tornasse competitivo nos leilões e deu subsídios para permitir que os projetos de carvão se viabilizassem. Com cada vez mais carvão barato e indesejado circulando pelo mundo e cada vez menos água nos reservatórios das hidrelétricas brasileiras, a tendência é que o carvão cresça e se multipllique na matriz nacional, como sugerem Carlos Rittl e Ricardo Baitelo neste artigo.
Para evitar que isso aconteça é preciso regulação. Uma meta para emissões do setor de energia em Paris, aliada a um imposto sobre carbono, ajudaria a direcionar a tal diversificação para o lado das fontes renováveis. O Brasil não comemora o dia dos namorados em fevereiro – nem precisa do carvão que podem querer nos empurrar de presente nesta data tão amorosa.
O racionamento e suas metáforas
O Canal Energia traz hoje uma notícia sobre a avaliação da consultoria PSR de que a “afluência” em março e abril terá de ser equivalente a 100% da média para evitar que o risco de racionamento de energia elétrica no país chegue também a 100%. “Afluência”, no jargão dos barrageiros, significa água chegando dos rios nos reservatórios das usinas hidrelétricas no Sudeste e no Centro-Oeste, que são as caixas d’água do país. Salvo em hipótese de intervenção divina, a chance de que isso ocorra é 0%. Como Deus não existe (algo que é facilmente demonstrável pela existência do Estado Islâmico e do Eduardo Cunha), em algum momento entre o alalaô e o coelhinho da Páscoa o ministro Eduardo Braga aparecerá em rede nacional de rádio e televisão anunciando que o gato caiu do telhado.
A essa altura, e espero que antes de primeiro de abril, o governo paulista também já terá sido forçado a vir a público dizer que, er…, vejam, vamos passar mesmo cinco dias sem e dois com água. O epicentro da indústria e do agronegócio nacionais estará, assim, privado de dois insumos vitais, cuja conservação tem sido tratada, por essa mesma indústria e por esse mesmo agronegócio, como uma “externalidade”. Num país que já estaria em crescimento zero sem essa dupla pancada, o efeito de mais essa crise sobre inflação, empregos, segurança e estabilidade política pode ser apenas imaginado. Eu é que não queria ter cargo eletivo em 2015.
Para que as vazões dos rios que alimentam os reservatórios ficassem na média em 2015, a estação chuvosa que começou em outubro teria de ter tido precipitações muito acima da média. Isso porque nem toda a água que cai do céu vai para os rios; parte dela é absorvida pelos solos, que estão muito secos: lembre-se de que desde 2012 o Centro-Sul vem recebendo menos água do que deveria, o que fez o governo acionar termelétricas fósseis a rodo e de forma permanente para tentar evitar o apagão inevitável, torcendo por um milagre. Numa conta feita pelo climatologista Carlos Nobre para o Sistema Cantareira, que poderia ser mais ou menos generalizada para o Sudeste, a precipitação teria de ser pelo menos 60% maior do que a média entre fevereiro e abril para que os reservatórios pudessem chegar ao fim de 2015 com o volume morto minimamente reencarnado.
Até aqui, porém, Giorgio, nada no comportamento desta triste temporada nos permite antever o dilúvio manauara que o amazonense* Eduardo Braga e seus eletrocratas esperam que caia nas latitudes mais altas do país. Como indicam dados de um assustador relatório do Cemaden (Centro de Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) sobre a situação de São Paulo, as chuvas de outubro a dezembro foram 40% menores que a média histórica. Janeiro foi seco, apesar das enchentes em São Paulo.
Muita gente tem corrido a apontar o dedo para Dilma e Alckmin: dizem que os dois são desonestos, mentirosos, péssimos planejadores, empurraram o racionamento com a barriga para poder faturar a eleição e negaram-se a adiantar um programa de economia de energia que poderia ou não ter-lhes custado os novos mandatos, mas que teria poupado o país de uma conta que virá salgada em 2015 porque será cobrada toda à vista. Tudo isso é verdade, e espero que PT e PSDB, para usar a frase célebre do meu amigo Zé Dirceu, “apanhem nas ruas e nas urnas”. Só que isso não é toda a verdade. O que o apagão-secadão de 2015 traduz é uma incapacidade dos governos de lidar com uma nova realidade climática no país. E também simboliza, numa escala menor, a opção errada que o mundo fez ao não agir contra as mudanças climáticas enquanto o custo da ação era manejável.
O ERRO É MAIS EMBAIXO
Dilma e Alckmin foram induzidos a erro por uma questão de “mindset”, por assim dizer. Ocorre que o planejamento energético e de abastecimento no Brasil segue uma tradição de gerações de hidrólogos que professam a fé no chamado estado estacionário de vazão. Trata-se de um conhecimento empírico segundo o qual tudo aquilo que se observou no passado também se aplica ao presente e ao futuro. Tirando uma seca extrema ou outra, que se repetem de tantos em tantos anos, ou um ano de extremo de chuva ou outro, que também se repetem de tantos em tantos anos, os rios brasileiros pulsam com constância quase matemática, registrada em décadas e décadas de observações meticulosas de réguas de nível, guardadas em antigos alfarrábios. O clima, para essa escola de pensamento, é algo dado e constante. Com oscilações, mas constante. É por esse credo que rezam alguns hidrólogos do Centro de Pesquisas em Energia Elétrica da Eletrobras, interlocutores privilegiados do pessoal que decide as coisas no governo.
O erro dessa turma tem sido ignorar que o próprio fundamento sobre o qual suas observações se baseiam – a constância do clima – não vale mais. As mudanças climáticas, que ainda são objeto de controvérsia entre pesquisadores do Cepel, mandaram o estado estacionário para o vinagre. Os planejadores de energia não enxergaram isso porque as lentes pelas quais eles olham o mundo, os rios e a chuva não foram feitas para detectar os tons em geral sutis da mudança climática. Faltou-lhes preparo epistemológico. Daí nunca terem dado bola para os alertas do IPCC, por exemplo – que, justiça seja feita, também têm muita incerteza sobre o total de precipitação no Brasil ao longo deste século, embora o sinal de temperatura modelado e verificado nas últimas décadas seja inequívoco.
A incerteza agora é o novo normal. Isso é uma péssima notícia para tomadores de decisão, mas é preciso quantificá-la e incluí-la no planejamento. “Não gosto de falar em segurança hídrica, porque dá ideia de previsibilidade. Prefiro falar em gestão de risco”, diz o hidrólogo Francisco Assis, da Universidade Federal do Ceará.
Talvez o drama que aflorará no Brasil nas próximas semanas e meses ensine alguma coisa aos formuladores de políticas públicas sobre a realidade da mudança climática e a necessidade de gerenciar riscos. A proposta de financiar a compra de painéis solares para geração doméstica de energia é uma dessas boas medidas que chegam tarde, se chegarem. Mas antes tarde do que nunca. O problema é se ano que vem a chuva voltar a normalizar e a lição do apagão-secadão de 2015 for esquecida, como foi a do apagão de 2001, sem uma mudança no software mental dos planejadores de água e energia.
* Sim, manauaras, eu sei que ele é nascido no Pará. Mas ele é problema de vocês.
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PS: Depois de um longo período de inatividade, este blog retorna. Não sei com que frequência ainda, mas certamente maior do que a de 2014.