“Ambientalista” do STF libera Belo Monte

ALEGRIA DE POBRE e índio dura pouco. Depois de uma semana de interrupção por decisão do TRF de Brasília, a hidrelétrica de Belo Monte ganhou ontem à noite mais uma liminar permitindo sua continuação. Desta vez, quem assina a ordem é o ministro Ayres Britto, tido e havido como o maior ambientalista do Supremo e com um histórico de proteção a direitos coletivos e difusos.

Antes de xingar Ayres Britto, lembre-se de suas posições tradicionalmente progressistas, da anencefalia às células-tronco à união homoafetiva, e de seu voto histórico a favor dos índios no julgamento de Raposa-Serra do Sol. Lembrou? Pronto, pode xingar agora.

O presidente do STF deferiu um pedido da Advocacia-Geral da União pela continuidade da obra por julgar que o TRF descumpriu decisão do Supremo ao embargá-la. O objeto da pendenga é uma ação movida pelo Ministério Público do Pará em 2005, que pede a nulidade do licenciamento de Belo Monte por considerar que os índios deveriam ser ouvidos pelo Congresso Nacional antes de o Ibama conceder qualquer licença.

Para ninguém achar que os procuradores estão caçando pelo em ovo, o que o MPF de fato faz com frequência, a necessidade de oitiva dos índios foi apontada pela própria Funai no parecer técnico que atesta a viabilidade da obra — desde que cumpridas certas condicionantes. Ou seja, havia (e há) uma demada real por parte das comunidades afetadas.

Ao se pronunciar em favor da obra, a então presidente do STF, Helen Ellen Gracie, concordou que havia problemas jurídicos, mas em nome da “ordem econômica” mandou seguir com a barragem até que se julgasse o mérito. O MP recorreu, entrou com nova ação no TRF, perdeu após um julgamento esquisito, recorreu de novo, ganhou, a AGU chiou. Agora, Ayres Britto emula Ellen Gracie e manda seguir com Belo Monte até que se julgue o mérito da ação do MP.

Antes que você xingue o poeta sergipano de novo, lembro que ele agiu da mesma forma com Raposa: mandou suspender a operação da PF que tirava os arrozeiros da terra indígena e, no mérito, decidiu contra os arrozeiros.

A diferença, aqui, é que Belo Monte será um fato consumado quando se julgar o mérito. Depois de construída a usina e empatados R$ 23 bilhões, quem é o ministro do Supremo que vai dizer que o licenciamento foi ilegal? Ayres não será, já que ele se aposenta em dois meses. Vão deixar na mão do ex-AGU Tóffoli?

 

Ártico já tem o maior degelo ha história

A desgraça em tempo real: a linha azul mostra a extensão de gelo marinho (área so oceano com pelo menos 15% de mar congelado) no Ártico medida em 2012 (crédito: NSIDC)

QUANDO A REPÓRTER Aline Ribeiro, da revista Época, publicou dois domingos atrás um infográfico profetizando que a perda de gelo no Oceano Ártico em 2012 seria maior que em 2007, segundo análise da Universidade de Illinois, achei que ela estava fazendo uma aposta correta, porém arriscada: a estação de degelo vai até meados de setembro, e não importa onde esteja a curva de derretimento em agosto, ela pode mudar de direção muito depressa. Eu estava no Oceano Ártico em agosto do ano passado, a 950 km do polo Norte, e todos esperavam que a extensão mínima em setembro fosse ficar menor que em 2007, mas na última semana de degelo as condições meteorológicas mudaram e um pedaço de mar recongelou (embora a espessura de gelo estimada tenha sido a menor da história até então).

Pois bem: as dúvidas acabaram. O Centro Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, em Porto Alegre, acaba de divulgar que a superfície de gelo marinho em 2012 já é a menor desde que as medições co satélite começaram, em 1979. E isso com mais 20 dias de degelo pela frente. O Centro Nacional de Dados sobre Gelo e Neve dos EUA, uma espécie de Inpe polar que dá a “taxa oficial”de degelo todo ano, ainda não soltou nenhum comunicado à imprensa. Mas o que circula entre os glaciologistas desde sábado é que ninguém acredita mais que variações meteorológicas possam reverter a situação.

Então temos aí mais um item para a listinha do apocalipse, somando-se à onda de calor no hemisfério Norte, à seca recorde nos EUA que levou para as picas o preço do milho, à seca no Nordeste do Brasil, à cheia recorde na Amazônia que se seguiu a uma seca recorde em 2010, que por sua vez aconteceu ao mesmo tempo que a seca recorde na Rússia que também levou para as picas o preço dos grãos.

De que evidência mais essas pessoas precisam?

Ele quer salvar o Ártico (mas precisa combinar com os esquimós)

TODA VEZ que os aldorrebelos da vida xingam o Greenpeace de “ONG holandesa” eu dou uma risadinha por dentro e penso em Kumi Naidoo. O diretor-executivo da organização, uma das duas pessoas que mais mandam nela (a outra, pasmem, é uma carioca), é um negão* sul-africano do tamanho de um urso, dono de uma coleção de batiques e de nenhum barbeador, que foi membro do Congresso Nacional Africano e lutou contra o Apartheid ao lado de Jacob Zuma. É difícil imaginar alguém menos holandês neste mundo, e fácil imaginar o quanto Kumi deve perturbar os brancos de papete do Greenpeace com seu discurso de erradicação da pobreza e inclusão social.

Neste momento, Kumi está numa briga de foice contra a Shell, a multinacional – esta sim, holandesa – que se prepara para furar seu primeiro poço de petróleo no oceano Ártico, numa região do litoral do Alasca que até alguns anos atrás era coberta de gelo marinho a maior parte do ano e não é mais graças ao petróleo que a Shell, entre outras empresas, vende por aí para que eu, você e todos os nossos amigos possamos andar de carro. É o que Millôr Fernandes chamaria de “uma coisa redonda”, e que os cientistas preferem chamar pelo nome mais antipático de retroalimentação positiva: a queima de hidrocarbonetos esquenta o planeta, o que derrete o Ártico, o que abre novas áreas para a exploração de mais hidrocarbonetos, o que esquentará mais o planeta e derreterá mais o Ártico. O Greenpeace está tentando impedir que a Shell se lance em sua aventura polar, queimando o filme da empresa (às vezes de forma bem engraçada) com seus consumidores e acionistas, como se donos de carro tivessem escolha e algum acionista de empresa de petróleo fosse contra a exploração de petróleo.

A ação faz parte de uma campanha maior do Greenpeace para salvar o Ártico, que Kumi lançou em junho durante a Rio +20 (vou te dar uns minutos para se lembrar dessa conferência) numa entrevista coletiva com o dono da Virgin, Richard Branson, e a atriz Lucy Lawless, AKA Xena, a Princesa Guerreira (que aos 50 ainda bate um bolão). O objetivo é mobilizar a opinião pública para transformar o chamado Alto Ártico, a área do oceano glacial ainda coberta por gelo marinho, numa área protegida internacional, livre de pesca, extração de óleo e outras atividades econômicas.

Para quem acha que isso é delírio de hippies, permita-me lembrar que há um precedente: em 1991, um continente inteiro, a Antártida, foi declarado área de proteção ambiental, e todas as atividades econômicas propostas ali, congeladas por 50 anos. No Ártico o buraco é mais embaixo (ou em cima), claro, porque a maior parte da região está sob jurisdição de meia dúzia de países (EUA, Canadá, Rússia, Noruega, Dinamarca), e ninguém, em especial os russos, que dia desses tentaram tomar posse do fundo do mar do Polo Norte, abre mão de sua soberania. Mas a extrema fragilidade do ambiente ártico, seu papel na regulação do clima da Terra, sua fauna carismática (que vai do delicioso bacalhau ao tristonho papagaio-do-mar, do urso polar à beluga) e uma beleza que só quem já teve o privilégio de ir para lá consegue apreender, mais do que justificam a tentativa.

Num momento em que o movimento ambientalista mergulha em seu período de maior irrelevância em 40 anos – tendo salvo as baleias, a Amazônia e contado com uma ajudinha de um tsunami e a incompetência dos engenheiros japoneses para salvar o mundo da energia nuclear –, o Ártico é a penúltima causa na qual grupos de pressão como o Greenpeace podem fazer alguma diferença (a última são os oceanos além de jurisdições nacionais, tema sobre o qual o GP estranhamente não faz escândalo).

O diabo é como Kumi e seus greenpeacers farão isso sem serem acusados, com justiça, de agir como uma “ONG holandesa”. No ano passado, meu amigo colecionador de batiques foi preso com Lawless (“lawless” presa, sacou?) e outros ativistas após tentarem escalar uma plataforma da Cairn Energy, uma empresa escocesa que fazia perfurações exploratórias na Baía de Baffin, entre a Groenlândia e o Canadá. O Greenpeace argumenta, com razão, que vazamentos de óleo naquela região produziriam desastres de grandes proporções, inclusive para o modo de vida tradicional inuíte, já que os 56 mil groenlandeses vivem basicamente daquilo que o mar lhes fornece.

Acontece que os groenlandeses estão babando pelo dinheiro do petróleo, e todos com quem eu conversei que falavam alguma coisa de inglês compartilhavam uma raiva imensa do Greenpeace. Afinal, raciocinam, quem esses caras pensam que são para dizerem que nós precisamos viver de pescar camarão e caçar foca para o resto da vida? Com que direito eles negam às populações do Ártico uma opção de desenvolvimento econômico e não fazem a mesma coisa, digamos, com a Statoil no Mar do Norte?

Fiz essa pergunta a Kumi da última vez que nos encontramos, no Rio. Sua resposta: “nós somos contra qualquer exploração de petróleo”. OK, legal, eu também, mas isso não responde à pergunta. Para ser justo, não é só gente morena que sofre bullying do Greenpeace por causa de petróleo: os brancos de olhos azuis das areias betuminosas do Canadá também apanham. Mas insisto: por que dois pesos e duas medidas com a Groenlândia e o Mar do Norte? Claro, os esquimós, como os brasileiros, podem se beneficiar do dinheiro do petróleo da maneira norueguesa (usando a riqueza para se desenvolver de forma sustentável) ou da maneira venezuelana. Mas a decisão tem de ser deles. Os americanos continuarão dirigindo SUVs mesmo que não saia uma gota de óleo do Ártico (de fato, a maior parte do óleo americano nas próximas décadas sairá dos próprios EUA continentais, durma com este barulho). O Greenpeace sabe disso.

À parte o problema groenlandês, mais ao sul, transformar o Alto Oceano Ártico num santuário parece uma ideia factível, até porque o mundo não precisa do petróleo extra que possa ser descoberto por lá (em parte, graças ao pré-sal, o que pode produzir o efeito curioso de Lula dizer daqui a um tempo que salvou o Ártico). Isso, porém, não vai eliminar a maior ameaça ambiental à região: a mudança climática. Segundo dados do National Snow and Ice Data Center, dos EUA, que acompanha em tempo real a cobertura de gelo marinho, 2012 baterá 2007 como o ano de maior perda de gelo no polo Norte. Nem o negão do Greenpeace pode impedir isso.

PS: Juro que não combinei nada com ele, mas enquanto eu escrevia este post, ontem à noite, Kumi Naidoo escalava a Prirazlomnaya, a primeira plataforma de petróleo do mundo construída especialmente para resistir ao gelo marinho, que a petroleira russa Gazprom instalou no Oceano Ártico, no Mar de Pechora. Leia aqui o blog de Kumi sobre a ação.

 

* Kumi nasceu em Durban e é de família indiana, mas os sul-africanos dividem a si mesmos em “brancos” e “pretos”, e os indianos se colocam na segunda categoria.

Como o gás natural derrubou as emissões dos EUA. E por que não dá pra confiar demais nele

Plataforma da Cabot Oil and Gas em Springville, PA

A MAIOR revolução energética do século 21 não foi planejada. Ela está acontecendo longe dos centros de pesquisa avançada e mais longe ainda da mesa de negociações de clima das Nações Unidas. Seu palco é um cu-de-mundo chamado Susquehana, um condado de estradas de terra e caipiras tementes a Deus na divisa entre os Estados da Pensilvânia e de Nova York, nos EUA.

Desde 2007, essa região tem sido palco de uma febre de exploração de gás natural, estocado a 800 m abaixo da superfície numa camada de rochas conhecida como folhelho Marcellus, ou Marcellus shale, em inglês. Trata-se de um antigo mar raso que se estendia por um terço de Nova York, metade da Pensilvânia e ia até o atual Ohio, conhecido hoje pelo singelo apelido de “Arábia Saudita do gás”. O Marcellus é uma das formações onde a indústria dos hidrocarbonetos americana tem aplicado uma técnica conhecida como fraturamento hidráulico, ou “fracking”, que permite acessar óleo e gás em formações rochosas não-convencionais.

A técnica foi criada por um texano teimoso chamado George Mitchell, em 1999. Mitchell já sabia que folhelhos continham muito gás, mas ninguém até então sabia como extraí-lo, já que ele fica preso em fendas minúsculas na rocha. Disposto a abrir a fechadura dos folhelhos, Mitchell passou 20 anos testando maneiras de reativar as fendas ricas e gás. Já estava quase falido quando descobriu a fórmula: água, areia e químicos surfactantes injetados a alta pressão em poços horizontais de quilômetros de extensão.

O sucesso do “fracking” foi tão estrondoso e tão rápido que passou longe do radar dos analistas de clima e energia e do IPCC. Em cinco anos, derrubou o preço do gás natural nos EUA de US$ 15 o milhão de BTUs para US$ 2 (no começo deste ano). O país, que preparava o retrofit de vários portos para importar gás liquefeito do Qatar, hoje estuda um novo retrofit desses mesmos portos para exportar gás da Pensilvânia e do Texas a partir de 2014. E tudo isso considerando que Nova York, que abriga a fatia do leão das jazidas do Marcellus, ainda tem uma moratória ao “fracking” em vigor.

Outra maneira de medir o sucesso do fraturamento hidráulico é seu impacto nas emissões dos EUA. O gás barato tem desestimulado as termelétricas a carvão, e o presidente Barack Obama resolveu surfar nesta onda e baixar, no começo do ano, uma regulação da EPA (Agência de Proteção Ambiental) limitando as emissões das usinas a carvão. Aqui entra a genialidade política de Obama, faturando em cima de algo que já estava mais ou menos no script. A participação do carvão na matriz energética caiu de 51% em 2005 para 43% em 2011, e a de gás subiu no mesmo período de 14% para 24% , segundo um relatório da Agência de Informação sobre Energia dos EUA divulgado na semana passada.

Segundo me contou David Victor, professor da Universidade da Califórnia em San Diego e um dos poucos teóricos das relações internacionais que levam o aquecimento global a sério, de 2006 a 2011 as emissões de CO2 dos EUA caíram em 186 milhões de toneladas. Para você ter uma ideia do que isso significa, é como se o Brasil tivesse seguido o receituário do Greenpeace e zerado as emissões na Amazônia. É claro que não foi só mérito do gás: tivemos também uma crisezinha econômica nos últimos anos. Mas o sinal que o “fracking” manda é poderoso, especialmente aos burocratas da Convenção do Clima, que passaram os últimos 20 anos parolando sem conseguir realizar o que os capiaus furadores de poço da Pensilvânia fizeram em 5, seguindo apenas seus bolsos.

O mundo está salvo, então? Podemos ir embora? Mais ou menos. Como toda boa festa, a do gás de folhelho também tem convidados barraqueiros. Nos EUA, eles atendem principalmente por três nomes: Tony Ingraffea, Bob Howarth e Mark Ruffalo. Os dois primeiros são professores da Universidade Cornell. O último, bem, é um cara que fica verde e quebra tudo quando passa raiva.

Ruffalo virou ativista antifracking depois de comprar uma casa nas Catskills, montanhas idílicas a noroeste de Nova York de onde vêm os rios que abastecem a metrópole e que estão no mapa da indústria do gás. Howarth e Ingraffea fizeram uma série de contas e descobriram que as emissões de sistemas de gás natural são maiores que as do carvão, pelo menos nos primeiros 20 anos. Isso porque os poços fraturados passam semanas “vomitando” metano juntamente com água depois da perfuração. O vazamento é pelo menos duas vezes maior do que em poços convencionais, perfurados sem água. Como o metano é muito mais eficiente que o gás carbônico em reter radiação infravermelha (e aquecer a Terra), a multiplicação de poços pode aumentar perigosamente as emissões de metano dos EUA, a ponto de anular os ganhos com a redução de CO2.

Isso não seria um problema no longo prazo, já que o metano tem também uma vida curta na atmosfera. Acontece que os próximos anos serão cruciais para a humanidade, já que as emissões globais teriam de alcançar seu pico em 2020, no máximo. Um tratado internacional contra o CO2 tem chance zero de dar conta dessa janela de oportunidade. Uma das maneiras de ganhar tempo, defendida pelo próprio governo dos EUA, é cortar emissões de fuligem e metano, que juntos respondem por 40% da elevação da temperatura. É difícil ver onde o “fracking” se encaixa nessa redução.

Mesmo que Howarth e Ingraffea estejam errados em seus cálculos, o affair do gás de folhelho traz dois recados importantes para a comunidade internacional: primeiro, a mudança climática não será combatida de cima para baixo sob auspícios da ONU. O gás da Pensilvânia é um trunfo do modelo americano: não faça nada na arena internacional e espere um “fix” tecnológico para o problema. Segundo, é arriscado pôr todos os ovos em uma cesta só: além do risco de emissões de metano, o mesmo “fracking” também está sendo usado para extrair petróleo no Texas e na Dakota do Norte, o que pode também aumentar as emissões totais de CO2 e anular o ganho com a redução no carvão mineral. Ou seja: o mercado não pode ser deixado tão livre quanto o Partido Republicano almeja, se a ideia é produzir algum tipo de bem comum.

R$ 113 bilhões e mais uma chance perdida

UM AMIGO inglês me escreveu ontem um e-mail engraçado. “E aí, quanto disso vai para pesquisa?”, perguntou, mandando embaixo o link para uma matéria do Financial Times sobre o “pacote de estímulo de US$ 66 bilhões de Ms. Rousseff”. Dei uma risadinha e respondi: “Você deve estar confundindo o Brasil com a Coreia. Nosso pacote é só para fazer estrada e ponte”. Meu amigo não desistiu: “Mas, puxa, e os cientistas, não estão reclamando? Porque todos os países que aprovaram pacotes de estímulo à economia incluíram um dinheirão para pesquisa…”

Esses ingleses são uns ingênuos, pensei. Não sei como conseguiram dominar o mundo por dois séculos. Mas depois, claro, veio a depressão. Não, nossos cientistas não estão reclamando. Talvez porque eles tenham se acostumado a NUNCA verem a pesquisa incluída na conta dos investimentos do governo. Não esperavam nada, não ganharam nada.

Por um lado, não dá para ser contra o pacote de subsídio às privatizações da mocr…, digo, da presidenta. Conceder estradas, ferrovias, portos e aeroportos é um grande passo na resolução de um (desculpem o clichê) gargalo de infraestrutura que é muito real no país. Faz a iniciativa privada trabalhar e botar a mão no bolso. E rompe mais um pouquinho com o ideário esquerdizante tosco que ainda domina alguns setores do governo.

Por outro lado, o pacote é mais uma chance desperdiçada por um governo que insiste em ver ciência, tecnologia e educação como gasto — na contramão do resto do mundo, como apontou candidamente meu amigo britânico. Uma parte muito pequena desses 113 bilhões recomporia o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, cortado por Dilma em 22%. Com uns caraminguás a mais, Dilma poderia iniciar um crash-program em inovação tecnológica — energias limpas, por exemplo, ou tecnologia espacial para a agricultura, ou biotecnologia, você escolhe — que poderia ajudar a qualificar o crescimento do país no médio-longo prazo. Com apenas US$ 400 milhões, Barack Obama fez o Arpa-e, que visa devolver os EUA à linha de frente das tecnologias de energia. Não é que falte dinheiro no Brasil: nesta semana, a Petrobras anunciou um investimento de R$ 3 BIlhões para P&D em quatro anos, com dinheiro do petróleo.

Um programa como o Arpa-e no Brasil poderia turbinar setores estratégicos para o nosso crescimento limpo, em linha com os compromissos que nós juramos adotar na Rio +20. Mas a esta altura não há mais ninguém que se lembre da Rio +20 em Brasília. O pacote de Dilma, por sua vez, é novamente (lembrem-se do IPI zero) a antítese da sustentabilidade: ao destravar a logística, vai facilitar ainda mais o crescimento do agronegócio desmatador, que já está montado no maior pacote de crédito da história (R$ 114 bilhões) e num Código Florestal enfraquecido. Não é à toa que as privatizações foram saudadas con gusto por Kátia Abreu e a CNA.

E os nossos cientistas, onde estão que não estão invadindo o Palácio do Planalto neste momento? Ficaram tão acostumados assim a perder? Ou não conseguem pensar em um uso para, digamos, 10% do pacote de logística de Dilma? O que vocês fariam com R$ 11 bilhões?

 

Código Florestal: só acaba quando termina

QUEM NÃO AGUENTA mais ouvir falar de Código Florestal atire o primeiro correntão. Pouca gente se lembra daquele que já foi O assunto mais polêmico deste Brasil varonil, o babado do momento, the talk of town, antes do Mensalão e da eleição passarem por cima até da CPI do Cachoeira e daquela gatinha da Andressa. Pois bem, senhoras e senhores, o código está de volta, arrebatando multidões e dando vários cabelos brancos à ministra Izabella Teixeira. Hoje parlamentares da bancada do trator, maioria na comissão mista que examina o texto da MP do código, deram mais uma volta na bancada dos abraçadores de árvores e aprovaram quatro destaques que aumentam ainda mais o teor de látex da já mui flexibiizada lei (deixo a vocês imaginarem o que eles vão fazer com tanto látex). O governo jurou vingança.

Vamos recapitular: os ruralistas queriam mudar o código porque em 2008 o maluco do Carlos Minc resolveu ter o desplante de baixar um decreto determinando que a lei (de 1965) fosse cumprida. Fez-se um relatório ruim, aprovado por uma comissão de maioria ruralista. O governo chiou, porque não queria anistia a desmatadores. Aprovou-se em maio do ano passado na Câmara, por 410 votos, uma nova versão do texto, que… bem, anistiava desmatadores. O Senado mexeu, melhorou. Voltou para a Câmara. Piorou de vez. Dilma vetou parte e baixou uma MP, a 571, para recompor os buracos do veto com o texto do original do Senado. O Congresso agora aprecia a MP, numa comissão formada por… ruralistas.

A comissão produziu um relatório mais ou menos salomônico, que cedia aos ruralistas entregando um pouquinho mais de áreas de preservação permanente (APPs) que deveriam ser recuperadas à produção, aliviando para a espécie em extinção (mas ainda boa de lobby) dos médios proprietários, mas preservando a essência do Artigo Primeiro, que evita que a lei ambiental vire uma lei rural. Aí veio o recesso. E aí vieram os destaques. Mais de 300 deles. Quase todos de ruralistas, e quase todos para enfraquecer a lei.

Centenas de destaques foram derrubados em bloco. Sobraram 37. Quatro foram aprovados hoje. O mais grave deles é o que acaba com a necessidade de APP para cursos d’água intermitentes, ou seja, para rios que secam em parte do ano. Oi? Mas… e os rios do Nordeste, não são quase todos intermitentes? Sim. E o Nordeste não atravessa hoje sua pior seca em mais de três décadas? Hm, sim. E falta de mata ciliar não ajuda a secar rio? Sim! Mas não é um escárnio o Congresso Nacional aprovar uma coisa dessas? Sim.

O governo também achou, pelo visto, e segundo me informou uma fonte com bom trânsito no Planalto, parou de negociar. A continuação da votação dos destaques, marcada para ocorrer na manhã desta quinta, teria sido suspensa ontem até 28 de agosto. Aparentemente o governo quer trucar (mais uma vez) os ruralistas e devolver o teor do texto votado na comissão. Senão…

Pois é: senão o quê? O governo já provou que não tem números e que não controla a base nesta matéria. Dilma vai fazer o veto do veto? Pode ser. Aí o veto do veto vai voltar para apreciação pelo Congresso ruralista. Aí vem o veto do veto do veto, e enquanto isso ninguém paga multa, ninguem recompõe floresta e tudo fica exatamente como na teoria da Rainha Vermelha, mudando para não sair do lugar.

Precisava tanto drama para isso?

A Groenlândia está derretendo. Mas não como você imagina

Icebergs gigantes se desprendem da Corrente de Gelo de Upernavik, um dos glaciares estudados pelo grupo dinamarquês (Foto: Science)

Muita gente se acostumou a incluir o derretimento acelerado do manto de gelo da Groenlândia juntamente com a morte e os impostos na lista das grandes certezas da vida. Um estudo publicado na edição de hoje da revista Science sugere que é assim, mas não é bem assim. Na verdade, o degelo dá mostras de que está desacelerando neste momento.

Calma, leitor. Os climatologistas não piraram nem a indústria do petróleo está por trás disso. Mas um grupo de cientistas da Dinamarca e dos EUA concluiu, examinando três décadas de fotografias aéreas do noroeste da ilha, que a maior parte da perda de gelo da Groenlândia acontece em pulsos e “de baixo para cima”, por assim dizer: o degelo superficial, decorrente da resposta do manto às temperaturas do ar mais elevadas, é irrelevante. O que importa mesmo é o que acontece no ponto de contato entre o mar e as terminações das grandes geleiras da região.

O grupo liderado por Kurt Kjaer, da Universidade de Copenhague, analisou centenas de fotos, cruzadas com dados de altimetria a laser coletados nos últimos anos pela Nasa, para montar um mapa de elevação do noroeste da Groenlândia, mostrando como variou a espessura do gelo. Eles identificaram dois grandes episódios de perda: um entre 1985 e 1992 e outro, mais dramático, entre 2005 e 2010. Embora o derretimento superficial tenha crescido, ele ainda é literalmente uma gota d’água no oceano se comparado a esses “pulsos”. Portanto, é precipitado extrapolar uma tendência para calcular a contribuição da Groenlândia para a elevação total do nível do mar neste século.

“É um sinal periódico, o que significa que você tem uma perda de gelo imensa num período de 5 a 8 anos e um período estável, seguido por um outro evento de 5 a 8 anos. Não é um sinal linear e não tem uma tendência”, diz Shafaqat Abbas Khan, da Universidade Técnica da Dinamarca, co-autor do estudo.

Abbas é um jovem de origem paquistanesa que eu conheci no ano passado em Copenhague e que tem um emprego que me mata de inveja: todo verão ele é despejado de um helicóptero sobre geleiras em derretimento acelerado, faz uma série de medições com GPS em poucos minutos e pula de volta no helicóptero antes que o movimento do gelo o empurre no abismo. “Depois de um tempo você se acostuma, vira só mais um trabalho”, minimiza.

Sua especialidade é medir o chamado “repique isostático”, em tradução livre, o levantamento da crosta da Groenlândia em resposta ao alívio de peso causado pela perda de gelo. Parece incrível que essa “espreguiçada”da ilha possa ser medida, mas basta ter um bom GPS.

O que me impressiona em Abbas é que ele é um cético do clima. Cético no bom sentido da palavra: um cientista que questiona o tempo todo as suposições por trás do próprio trabalho. Como lida com observações e não com modelagem,o geofísico se recusa em fazer previsões sobre o colapso do manto e sobre o consequente aumento do nível do mar no mundo — apesar de se declarar chocado com o rebaixamento que observa ano após ano nas geleiras que visita. Ele diz que não é possível afirmar, como alguns colegas têm sugerido, que a Groenlândia já tenha ultrapassado o ponto de não retorno, algo que provavelmente aconteceu 125 mil anos atrás, quando estima-se que a ilha tenha derretido quase completamente. “Quando esse cara começar a derreter, aí sim eu vou ficar preocupado”, me disse uma vez, apontando num mapa um rio de gelo várias vezes mais largo que o Amazonas, conhecido apenas como Geleira 79, no nordeste groenlandês.

A descoberta do derretimento em pulsos (que o grupo de Abbas e Kjaer chama de “perda de gelo dinâmica”) não significa que o aquecimento global não tenha culpa no cartório — ao contrário, já que o principal suspeito de causar o fenômeno é o aumento periódico da temperatura do mar nos fiordes de Kalaallit Nunaat (como os groenlandeses chamam seu país). Vários cientistas já vinham chamand atenção para isso. Mas ela serve como um alerta para os pesquisadores da complexidade da natureza e da dificuldade de prever seu comportamento, e como baliza para os modeladores climáticos.

O grupo dinamarquês lança, ainda, um alerta: o degelo superficial teve participação quase zero no episódio de 1985-1992, mas causou 33% da perda nas margens das geleiras no de 2005-2010, o que sugere uma sensibilidade cada vez maior do manto à elevação da temperatura do ar. Tudo que Kalaallit Nunaat não precisa agora é de um golpe nos dois flancos.

Os sectários e os do pé virado

FAZ EXATOS DOIS ANOS que eu recebi o primeiro convite do Carlos Hotta para cometer um blog que discutisse meio ambiente no Brasil. Eram tempos interessantes no país: o debate sobre o Código Florestal pegava fogo no Congresso e a eleição presidencial era disputada por uma ambientalista — mas todo mundo sabia que quem iria levar seria sua antítese. Eram também tempos interessantes para mim: saía após seis anos da editoria de Ciência da Folha de S. Paulo para voltar a Brasília, minha savana de origem, justamente para acompanhar mais de perto o debate ambiental.

A combinação não deu certo na época por razões contratuais. Mas os tempos ficaram interessantes mais uma vez, então cá estamos: bem-vindos ao Curupira.

Este blog empresta seu nome da criatura mítica de pés virados que, no imaginário caboclo, funciona como uma espécie de fiscal do Ibama: impõe quotas de caça, proíbe o abate de filhotes e fêmeas prenhes, pune quem desmata além do necessário. O curupira, porém, é mais pedagógico que o Ibama: em vez de uma multa que o infrator jamais pagará, impõe-lhe como castigo a loucura: perder-se ou desaparecer na mata.

Assemelha-se nisso a outro demônio do desenvolvimento sustentável, a sanguinária caipora (do tupi kaa-pora, ou “morador do mato”), cujas histórias, contadas pela minha babá nos já longínquos anos 80, nunca falharam em me fazer pensar duas vezes antes de estilingar um passarinho ou entrar no mato. Cheguei a considerar esta figura medonha para o título do blog, mas lembrei-me de um detalhe: a caipora, como alguns fiscais do Ibama, é corrompível. Basta o cidadão botar um fumo de rolo numa pedra e ela esquece sua “job description” e alivia para o criminoso. Fiquemos, pois, com o curupira.

Escrevo este blog convicto de que alguma coisa se perdeu na discussão sobre meio ambiente na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que o Código Florestal e a conferência de Copenhague trouxeram a temática para o horário nobre do debate público, culminando numa eleição presidencial, criou-se uma polarização estúpida entre “ambientalistas” e “ruralistas” ou entre “ambientalistas” e “desenvolvimentistas”, como se a defesa do meio ambiente fosse uma questão ideológica ou partidária, como se nela houvesse “dois lados”.

Essa bestagem fez vítimas tanto à esquerda quanto à direita no Brasil. Na esquerda, como o demonstrou a abertura das Olimpíadas de Londres, a defesa do meio ambiente é enxergada como “marinismo”, “oportunismo eleitoral” ou “fantasia”. Quando acaba o argumento, é um “instrumento de dominação dos países ricos, que já desmataram tudo” etc. Coisas que a gente espera da esquerda, que vive mesmo de pregar rótulos nos outros.

Mas a direita, pelo menos neste país, costumava pensar com um tico mais de sofisticação. E virou modinha entre os “intelectuais de direita”, com o perdão do oximoro, atacar a defesa do meio ambiente como sendo um instrumento de dominação do mundo da… esquerda! Assim, falam do “aquecimentismo global” como uma conspiração anticapitalista, sem mencionar entre as fileiras “aquecimentistas” (como nunca se cansou de lembrar meu amigo Rafael Garcia) notórios comunistas como Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. Quando acaba o argumento, usam o mesmíssimo tigre de papel da esquerda: os “países ricos” e as “ONGs estrangeiras”. Que preguiça.

Sempre tão orgulhosa de sua independência de pensamento, a direita no Brasil acabou papagaiando o mais tosco fundamentalismo norte-americano, que conseguiu transformar a ciência numa questão de crer ou não crer. É preciso fazer uma pausa para a reflexão e lembrar, como diz o cientista americano Tom Lovejoy, que “conservação” e “conservador” têm a mesma etimologia.

Os ambientalistas exageram? Dimais da conta. Erram sempre que deixam de lado evidências e usam argumentos religiosos. Um exemplo é a maneira irracional como boa parte do movimento ambientalista tratou os transgênicos — demonizando a tecnologia em vez de olhar caso a caso. Outro é a reação também atávica à energia nuclear. Em ambos os casos, o ambientalismo se afasta de quem deveria ser sua maior aliada, a ciência, e aferra a um vago princípio da precaução, cuja aplicação absoluta é impossível.

Mas talvez os ambientalistas sejam, no fim das contas, o setor menos sectário da sociedade. Evidência disso é a coisa mais bonita que já se escreveu sobre o assunto no Brasil:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem comum de uso do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Este é o “caput” do Artigo 225 da Constituição de 88 e será o mantra deste blog. Como o curupira, os constituintes não escolheram “lados”. Tinham objetivos mais altos em mente.

PS: Foi apertar o botão de “publicar” e eu lembrei que o Scienceblogs Brasil já tem uma Caipora. Ou melhor, uma Caapora, dos zoólogos Luciano Moreira Lima, Rafael Marcondes e Guilherme Terra (que vai entrar na minha lista de aptônimos), a quem peço desculpas por um quase-plágio involuntário e por eventuais ofensas à sua entidade mitológica. Vou me lembrar de levar um rolo de fumo na próxima vez que for fazer uma trilha.

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