Geni e a pandemia
É, EU SEI, só apareço aqui uma vez por ano e só pra falar de Chico Buarque. Não me levem a mal; é que, além de ser o maior compositor que já caminhou sobre a Terra, manter a sanidade no Brasil de hoje demanda tratamento contínuo com doses elevadas de Chico Buarque.
Eis que dia desses estava ouvindo no rádio o Toni Ramos ser vacinado e fazendo juras de amor à ciência. Nada contra o Toni Ramos, mas muita gente ultimamente tem cantado loas a essa instituição tão vilipendiada. “É a Geni de hoje em dia”, pensei. E pimba: a Geni. Aí montei essa historinha com o que eu acho que vai acontecer com a ciência no Brasil quando o atual pesadelo pandêmico passar.
Geni e a pandemia
De tudo que é nego torto
De governo peso morto
Ela já levou pedrada
Teve corte nos fomentos
Perdeu seus equipamentos
E ficou quase sem nada
Ela inventou vacina
Viagra e penicilina
Vigiou fogo no mato
Avisou do clima quente
Verdade inconveniente
Separou mito de fato
E também foi amiúde
Melhorando a saúde
E nos dando mais porvir
Ela sabe o que é verdade
Por isso a sociedade
Vive sempre a repetir
Cala a boca da Geni!
Corta a bolsa da Geni!
Ela só quer badernar
Ela não quer produzir
Ela irrita qualquer um, maldita Geni!
Um dia surgiu furtivo
De um morcego, fugitivo
Um micróbio de Pequim
Contaminou edifícios
Entrou pelos orifícios
Quando a gente fez “atchim!”
O planeta apavorado
Se quedou paralisado
Pronto pra virar geleia
Mas de um palácio brilhante
Saiu algum governante
Dizendo: “tive uma ideia!”
“Aqui na nossa cidade
Tem uma universidade
Que eu queria implodir
Mas posso evitar a engronha
Se em vez de plantar maconha
Essa inútil nos servir”
Essa inútil era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela quer nos trancafiar
Não deixa a gente sair
Ela irrita qualquer um, maldita Geni!
Mas de fato, logo ela
Tão centrada, tão singela
Sequenciara o forasteiro
Cada gene lazarento
Que o tornava virulento
Ela conhecia inteiro
Acontece que a donzela
(e isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
“Se a Natália é comunista
Se o Atila é alarmista
Cês se virem com os seus bichos!”
Ao ouvir tal heresia
Até o Dória, quem diria
Foi beijar a sua mão
Juraram tomar consciência
E o repórter de ciência
Virou o Rei da redação
Faz vacina, faz, Geni!
Faz vacina, faz, Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você encanta qualquer um, bendita Geni!
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Num ritmo alucinante
Preparou imunizante
E testou frasco por frasco
Apesar do início lento
Vimos Milton Nascimento
Felizmente vacinado
E num ansiado dia
Derrotou-se a pandemia
Num país esfacelado
Ao vencer a peste abjeta
Pegou sua bicicleta
E saiu pra trabalhar
Mas nem bem cruzou a pista
O coro negacionista
Não deixou ela avançar
Cala a boca da Geni!
Corta a bolsa da Geni!
Ela só quer badernar
Ela não quer produzir
Ela irrita qualquer um, maldita Geni!
Bye, bye, Brasil
Este não é um post de ciência. A menos que seja.
Não, coração,
Não foi só apertar um botão
Teu crime não vai ter perdão
Quando o pesadelo passar
Tu vai aprender a votar
Podia até ser o Collor
Mas merda no ventilador
Você fez questão de jogar
O desmatamento explodiu no Pará
E agora tem óleo no mar
Talvez fique ruim pra pescar, meu amor
No Tocantins
O chefe dos parintintins
Morreu por falta de UTI
Foi gripe, alega você
“Seria pior com o PT”
Tua argumentação é uó
Estou me sentindo tão só
Mas não encosta em mim!
Pedir AI5 é ilegal
Tem milícia na capital
Você acha que isso é normal,
Meu amor?
A Damares
É uma maluca infeliz
Vetou requebrar os quadris
Não quer beijo gay nos gibis
Eu já tô fichado na Abin
Melhor nem passar por Manaus
Tem corpos dentro do hospital
O SUS lá já colapsou
Você jura que é tudo conspiração
Compara o Coiso a um leão
Não faz essa arminha com a mão,
Por favor
Baby, bye bye
Isola tua mãe e teu pai
Eu acho que vou desligar
Tua ficha jamais vai tombar
Eu vou escutar um Rennó
De você eu não tenho dó
Peguei gripezinha em Ilhéus
Mas já tô quase bom
A polícia do Ceará
Achou graça em se amotinar
E o Moro ainda foi apoiar
O horror! O horror!
Bye bye, Brasil
Será que a tua ficha caiu?
Você odeia índio, que eu sei
Não venha dizer que “talkei”
Esse verme é um fora-da-lei
Eu quero emigrar, podes crer
Só ver o Brasil na tevê
Sair do Twitter também
Eu não sou um homem de bem
Mas a ligação tá no fim
Já fui rastreado na Abin
A democracia acabou
Vê só o que você provocou
O teu fanatismo é uó
Estou me sentindo um bocó
Tentando te fazer pensar
Quando a quarentena passar
Falar umas verdades pra ti
Dizer que eu sobrevivi
Com a benção de Nosso Senhor
Tá faltando respirador.
A canção original e genial de Chico Buarque e Roberto Menescal você ouve aqui.
A foto é uma reprodução de TV pescada das internetes.
As leituras do ano de 2019
Ah, as listas de fim de ano.
Tão inescapáveis quanto treta política com parente no jantar de Natal, tão previsíveis quanto cachorro com medo de fogos e tão irresistíveis quanto a segunda taça de espumante. Pois lá vamos nós mais uma vez: seguindo a vetusta tradição iniciada neste condomínio pelo Átila Iamarino, posto aqui um breve comentário sobre os melhores livros que li neste ano, na esperança de que algum deles seja útil para alguém.
Em 2019, como muita gente, busquei refúgio mental na ficção, então há bem pouca coisa sobre ciência aqui. Em se tratando de obras tão diferentes entre si, não dá de fato para classificar em ordem de qualidade, exceto os dois primeiros e o último da lista.
Feitos esses alertas, vamos a ela.
*
1984, de George Orwell (Companhia das Letras, 2019)
O meu livro do ano de 2019 não é só uma leitura; é a correção de uma falha de caráter, como já escrevi alhures. É inconcebível como eu consegui chegar à idade adulta sem ter lido 1984. O consolo foi enfim fazê-lo no primeiro ano da era Bolsonaro, quando pinceladas da distopia descrita por Orwell aparecem todos os dias no noticiário.
Para as duas pessoas que ainda não leram essa obra-prima, o livro conta a história de Winston Smith, um funcionário público que habita a Londres pós-guerra nuclear, então parte de Oceânia, um superpaís que compreende parte da Europa e as Américas. Oceânia é um regime totalitário perfeito, governado pelo Grande Irmão, uma figura de cuja existência Winston duvida (e nisso consiste um de seus atos de rebeldia contra o sistema). Seus cidadãos são vigiados 24 horas por dia por teletelas, TVs que transmitem propaganda oficial e captam toda a vida íntima da população. A cultura e o amor livre são criminalizados, o ódio ao dissenso é estimulado – com os críticos do regime ganhando um passeio de ida ao Ministério do Amor, a versão orwelliana da Ponta da Praia – e toda a tecnologia que deveria ser empregada na melhoria da qualidade de vida da população é usada para montar a quintessência do aparato de vigilância, a Polícia das Ideias, capaz de detectar pensamentos-crime.
O Partido governante de Oceânia se mantém no poder por graça da falsificação constante não apenas da realidade, mas principalmente do passado. Edições passadas de jornais são permanentemente reescritas para moldar a memória ao que quer que o regime considere adequado naquele momento. Os fatos desaparecem e sobra apenas a narrativa. A elite do partido pratica o chamado “duplipensamento”, que consiste em acomodar na cabeça visões antagônicas de mundo, eliminando o referencial do real (num exemplo hipotético, defender a santidade da família tendo sido casado quatro vezes e admitindo usar verba de gabinete para “comer gente”).
Orwell não viveu para ver o zapzap do Filipe Martins nem os cursos de filosofia do Olavão. Sorte dele.
A trégua, de Primo Levi (Abacus, 2013)
Em janeiro de 1945, o campo de extermínio de Auschwitz é liberado pelo Exército Vermelho, revelando-se a extensão das atrocidades daquilo que viria a ser conhecido como holocausto. Os sobreviventes, quase todos doentes que não puderam ser evacuados pelos alemães numa marcha fatal durante a fuga, foram levados para campos soviéticos na Polônia. Entre eles estava um jovem químico judeu chamado Primo Levi, que narra nesse livro assombroso sua jornada de mais de um ano de volta à sua Turim natal.
A trégua é continuação do clássico É isto um homem?, a narrativa de Levi de seu período em Auschwitz. É um relato dos primeiros momentos do pós-guerra, numa Europa que ainda não sabe o que fazer com a liberdade recém-conquistada. Levi e as pessoas com quem ele cruza no caminho parecem o tempo todo divididos entre o alívio pelo fim do terror nazista e o pânico de perceber que não há ninguém tomando conta do lojinha. A Polônia pós-ocupação é a tradução perfeita da anarquia, e a sobrevivência não é de forma alguma garantida. Nesse cada um por si, onde não existe nem mesmo dinheiro mais, triunfam ladrões e espertalhões, como se numa constatação de que, no fundo, o problema é a natureza humana.
Levi narra sua viagem francamente surrealista da polonesa Katowice à Itália via Ucrânia e Rússia, com longas marchas por estepes inabitadas tomadas por destroços de guerra e soldados alemães desertores sendo acolhidos pelo Exército Vermelho, que não consegue reproduzir nos territórios liberados o totalitarismo que impera em casa: o campo de refugiados em Katowice é uma prisão, mas qualquer um entra e sai dela a hora que quiser. Os comboios de prisioneiros são ora um troféu para exibir à burocracia em Moscou, ora um fardo com quem os militares precisam dividir a pouca comida que têm e por quem eles acabam se sentindo responsáveis – e até criando afeição. Tragicômico e impossível de largar.
A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2013)
A jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch ganhou o Prêmio Nobel por transformar em alta literatura o princípio mais elementar do jornalismo: ouvir histórias de pessoas. Num trabalho que durou mais de uma década, Aleksiévitch ouviu mulheres que lutaram no Exército Vermelho ou nas brigadas de partisans que resistiram e por fim repeliram a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial. Foi atrás das sobreviventes e deixou que elas falassem – em alguns casos, histórias que eram mantidas em segredo até das famílias das combatentes. O resultado é a primeira narrativa feminina da guerra, que mostra uma dupla situação-limite: a do combate e a de ser mulher no combate, com dificuldades que vão das mais triviais (no começo não havia uniformes adaptados a mulheres) até as mais profundas (convencer os pais e os comandantes de que combater os nazistas era um imperativo moral e de que elas eram tão aptas quanto um homem – ou mais aptas, como mostraram as snipers soviéticas, terror do Exército alemão).
A obra de Aleksiévitch ganhou as telas neste ano. Seu Vozes de Tchernóbil, com relatos de sobreviventes e familiares de mortos no desastre nuclear, inspirou personagens da série Chernobyl, da HBO. Leia o livro e assista à série.
O oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro (Companhia das Letras, 2019)
(Disclaimer: o autor é meu amigo, o que depõe contra ele, mas não contra a obra.)
Anos atrás, visitei Sidarta Ribeiro em Natal e caí na besteira de criticar Freud na frente do neurocientista brasiliense. Sidarta abriu o computador e começou a mostrar uma série de dados experimentais que confirmavam insights do pai da psicanálise sobre a origem e as funções cognitivas do sonho. Um ponto do sermão ficou na minha memória: os dados de neuroimagem que confirmam a afirmação freudiana de que sonhos são restos diurnos embaralhados no cérebro.
Neste livro monumental, Ribeiro amplia a reabilitação de Freud, mas vai além: mostra como o sono e os sonhos ajudaram a moldar a cognição humana, resumindo décadas de pesquisas sobre o tema, inclusive os estudos pioneiros dele próprio e de seus colegas.
Sem poupar o leitor das evidências neurocientíficas e da descrição dos experimentos que embasam sua argumentação, Ribeiro afirma que os sonhos foram objeto de seleção natural ao ajudarem a consolidar memórias e ao produzir simulações de estados físicos para as quais mamíferos possam se preparar estando num ambiente seguro e em repouso. O caçador pré-histórico sonha com o mamute abatido, a presa sonha com o leão. A produção dessas simulações mentais deram aos sonhos o caráter oracular que lhes era atribuído na antiguidade.
Com uma erudição enorme e algum humor, transitando por episódios autobiográficos e por tretas pesadas entre rivais científicos, o Oráculo conduz o leitor a um passeio pela história humana, narrando casos de sonhos e sonhadores famosos, de reis da Mesopotâmia a guerreiros lakota do Oeste americano. Dialoga também com a insônia, esse mal da vida contemporânea que priva a um número crescente de pessoas do sonho. E convida-o a retomar o hábito antigo de fazer “sonhários” – lembrar-se de seus sonhos e registrá-los. Por fim, Ribeiro molha o tornozelo do leitor no campo emergente do uso terapêutico de drogas psicodélicas, que induzem estados semelhantes ao sonho. Tema para mais um livro.
O novo iluminismo, de Steven Pinker (Companhia das Letras, 2019)
O novo calhamaço do psicólogo canadense autor de Como a mente funciona é uma defesa dos princípios que nos deram o mundo tal qual o conhecemos hoje: a razão, a ciência, o humanismo e o progresso. Já resenhei a obra aqui e não vou ficar me repetindo. Apenas recomendo-a.
Ao longo do ano passado e deste apareceram críticas ao livro de Pinker. Os críticos dizem, não sem razão, que ele faz uma apologia do capitalismo e da ordem liberal, varrendo para debaixo do tapete a desigualdade extrema produzida por essa mesma ordem – que está na origem dos movimentos neofascistas que vicejam de Washington a Brasília. Mas o ponto central do livro segue válido: a tétrade iluminista tem uma longa lista de bons serviços prestados à humanidade – inclusive a pesquisa médica que permitiu que boa parte das pessoas vivas hoje não tenha morrido de diarreia ou alguma infecção bacteriana banal na infância. E que o legado iluminista precisa ser defendido diante da maré obscurantista que parece tomar conta do mundo.
O clube dos jardineiros de fumaça, de Carol Bensimon (Companhia das Letras, 2018)
O livro da gaúcha Carol Bensimon sobre uma história de amor ambientada na região produtora de maconha na Califórnia ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance de 2018 – e mereceu. A obra fala de Arthur, um professor que resolve plantar maconha em casa em Porto Alegre para ajudar no tratamento de câncer da mãe e por uma série de razões vai parar em Mendoncino, no chamado Emerald Triangle, a versão americana do Polígono da Maconha. Ali conhece Tamara, uma garçonete com uma vida amorosa pregressa conturbada, e seu pai, Dusk. Arruma um trampo numa plantação podando camarões. Trava contato com o lado bandido do cultivo. E é meio isso.
Não acontece muita coisa na história, mas a ambientação de Bensimon (com um leve subtexto antiproibicionista que permeia todo o livro em forma de histórias da guerra contra as drogas) é tão perfeita e seus personagens são tão humanos que o livro se torna mais viciante que aquele skunk que você fumou em Amsterdã e com o qual sonha até hoje.
Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Zahar, 2018)
O buzz, afinal, tinha razão de ser. Em 2018, dois professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, viraram best-sellers no Brasil com um livro que buscava explicar o que eles chamam de “recessão democrática”, a ascensão de autocratas que fazem uso dos mecanismos da democracia para chegar ao poder e então subvertê-la. O livro fora feito, evidentemente, pensando no caso de Donald Trump, mas a eleição de 2018 e a ascensão de Jair Bolsonaro forneceram à dupla um estudo de caso em tempo real.
Como as democracias morrem mostra como autocratas eleitos da estirpe de Trump, Bolsonaro e Viktor Orbán implantam regimes antidemocráticos sem recorrer ao método old school do golpe militar. O controle da mídia, a perpetuação no poder, a entrega do Estado a compadres e a erosão das liberdades, porém, são os mesmos de qualquer ditadura.
O livro apresenta um teste rápido de identificação de autocrata, que consiste em uma combinação de um ou mais dentre quatro fatores. Jair Bolsonaro se enquadra em todos: 1) Rejeitar, no ato ou o discurso, as regras democráticas do jogo (como fez Bolsonaro quando disse que não aceitaria nenhum resultado diferente de sua vitória); 2) Negar a legitimidade de oponentes (“vermelhos na ponta da praia”, “fim de todo ativismo”, vocês escolhem); 3) Tolerar ou encorajar a violência (“não te estupro porque você não merece”, “Ustra vive”); e 4) Indicar disposição para restringir liberdades de oponentes e da mídia (“Brasil sem Folha de S.Paulo”, ameaças à concessão da Globo, fim da publicação de editais em jornais para sufocar o Valor). A democracia no Brasil não está ameaçada; ela já foi comprometida.
Pornopopeia, de Reinaldo Moraes (Objetiva, 2008)
Marcos Nobre uma vez disse que Reinaldo Moraes inventou a prosa paulistana. Não sei se é verdade – talvez Oswald de Andrade pudesse ter outra opinião. Mas certamente Moraes inventou a prosa em paulistano. Se alguém duvida tratar-se de um idioma próprio, basta ler Pornopopeia. O narrador e protagonista do livro, Zeca, é um paulistano que se expressa em paulistano castiço, com todas as abreviações (“Sossô”, “computinha”) e todos os italianismos (“que bronhão, amice!”) a que tem direito.
Cineasta fracassado, morando na produtora que montou de favor num imóvel do do cunhado em Higienópolis, Zeca se mete numa confusão homérica enquanto procrastina para fazer um frila em plena guerra da polícia com o PCC, em 2006. É um personagem sem superego nenhum, que está sempre em busca do próximo rabo de saia, da próxima carreira de pó, do próximo baseado e da próxima “breja”. É um tiozão canalha e egoísta que resume sua vida a satisfazer seus sentidos – do qual o leitor não sabe se sente raiva, pena ou inveja.
A quem quiser se aventurar, um alerta: Pornopopeia é um livro sem censura. Nenhuma. Os excessos de Zeca, hilários, podem chocar muita gente, e desconfio de que o autor dê risadinhas internas a cada cena em que os leitores fazem uma careta e dizem “mas não é possível!” ou “caralho, que nojo!”.
Miles, an autobiography, de Miles Davis e Quincy Troupe (Simon&Schuster, 1989)
Esqueça a música por um instante. A autobiografia deliciosa de Miles Davis (que teve uma única edição brasileira) é, antes de qualquer coisa, um livro sobre racismo. Dono de uma carreira longeva, que foi da Segunda Guerra até sua morte, em 1991, Miles participou de momentos decisivos na história da música ocidental, do surgimento do bebop até os excessos eletrônicos dos anos 1980, passando pelo que talvez seja sua grande contribuição, o cool jazz. Nesse período, também testemunhou mudanças na relação da sociedade americana com os negros, da vigência das leis de segregação no sul até a conquista dos direitos civis.
Mesmo vindo de uma família abastada de East Saint Louis (seu avô, Miles Davis, foi o primeiro negro a ter uma fazenda no Estado, e seu pai, Miles Davis II, era um conceituado dentista), Miles experimentou a segregação racial e fez do orgulho negro a tônica de sua vida (além de uma birra injustificada com o genial Chet Baker só porque este era branco). Há passagens dramáticas, como a prisão em Nova York após uma briga com um policial branco que aparentemente não tinha entendido que o crioulo que ele tentava enquadrar na saída de um teatro era o mesmo sujeito cujo nome brilhava no letreiro do teatro. E outras hilárias, como a ocasião em que Miles foi visitar sua amante, a atriz francesa Juliette Gréco, no hotel Waldorf-Astoria, acompanhado de um colega músico. “Não acreditaram quando dois crioulos apareceram no hotel numa Ferrari, e você deveria ter visto a cara do filho da puta do recepcionista quando os mesmos crioulos pediram para ligar para a suíte daquela atriz francesa famosa e ela os mandou subir”, relembra Miles, em sua prosa peculiar, na qual motherfucker pode ser tanto “filho da puta” quanto simplesmente “cara”, bad em geral conota alta habilidade ou beleza e bad as a motherfucker é um elogio reservado a pouca gente, como John Coltrane (“Trane was bad as a motherfucker”), Wayne Shorter ou Prince.
Para quem gosta de jazz, é um livro para ler com o Spotify ligado e passear por cinco décadas da história do estilo, ouvindo a discografia de Miles e seus companheiros, gigantes como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Charles Mingus e Bud Powell.
Máquinas com eu, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 2019)
Não costumo ler ficção científica. Peguei esse livro do McEwan para ler numa viagem longa de avião torcendo o nariz, só porque ele pesava pouco na mochila – e devorei. A história é sobre as relações entre um londrino desocupado, sua vizinha universitária e um androide que ele compra num surto de curiosidade e que, claro, revela-se autoconsciente e cheio de dramas existenciais. O drama se passa em 1982 e parte de uma premissa genial: Alan Turing, pai da computação, não se matou nos anos 50 após ser condenado a um tratamento para “curar” sua homossexualidade. Portanto, a revolução dos computadores e da inteligência artificial acontece décadas antes.
O livro de McEwan é assombroso pelas reflexões que capta no Zeitgeist sobre inteligência e aprendizado de máquinas, mas também pelos conflitos humanos que ele explora magistralmente em sua obra e que escritores de ficção científica nem sempre conseguem. Para os fãs do escritor britânico, uma dica: o tema da reparação está muito presente.
A Zona morta, de Stephen King (Suma de Letras, 2017)
Se houvesse o equivalente literário daquele quadro “Gosto, sim, e daí?” do João Marcelo Bôscoli, Stephen King seria minha escolha. O povo sério chama o escritor americano de “subliteratura”, estereotipada, cheia de clichês e com personagens rasos. Eu prefiro chamar de “magistral”. Atire o primeiro absorvente no chuveiro quem não se arrepiou com Carrie, a estranha, O iluminado ou o recentemente refilmado It. King é indissociável da cultura pop contemporânea, a ponto de receber citações desde os Ramones (Pet Sematery) até os Simpsons (a redoma sobre Springfield)
Feito o nariz-de-cera, peguei Zona Morta para ler por diversão numa folga de meio de ano e acabei descobrindo paralelos arrepiantes com – sempre ele – o governo Bolsonaro. No livro de King, John Smith descobre que tem habilidades paranormais após sofrer um acidente que o deixou anos em coma. Ele pode ver o futuro ao encostar nas pessoas, o que se torna dramático após apertar a mão de um político em ascensão chamado Greg Stillson.
Stillson é uma caricatura do político perigoso – inescrupuloso, cruel, truculento e com grandes ambições. Os paralelos com Ricardo Salles ficarão evidentes para quem ler.
Pornô florestal
UMA VEZ que a Ancine não vai mais poder bancar putaria, venho preventivamente satisfazendo minha sede de pornô com uma coisa muito mais picante que Bruna Surfistinha: os dados de desmatamento do Inpe. Confesso, despudoradamente, que virei um voyeur do Terra Brasilis. Todos os dias, enquanto minha mulher não está olhando, abro o computador cheio de lascívia para ver aquele gráfico vermelho enooorme subindo sem parar. Coração palpitando, assisto via satélite e em tempo real a uma suruba de proporções épicas: um país inteiro fodendo a Amazônia. Morra de inveja, Reinaldo Moraes.
Como todo vício, a coisa começou devagar. Umas espiadinhas quinzenais em maio, quando a potente verga começou a subir depressa, embalada pelo Viagra de mil motosserras. Em junho a tara me pegou de jeito, quando descobri casualmente que o corte raso estava no rumo de ser um dos piores da série histórica; o peep-show ficou semanal. Agora, em julho, não largo o site de sacanagem nem durante as férias. Tô quase procurando tratamento.
Uma amiga jornalista, sabendo do meu fetiche, me ligou na noite da última sexta-feira (19) dizendo que estava no Terra Brasilis na página de alertas do sistema Deter-B, mas que achava estar fazendo alguma besteira na hora de filtrar o dado: afinal, na manhã de quinta o Observatório do Clima havia publicado no Twitter que o desmatamento em julho estava em 981 km2. Agora, 36 horas depois, estava em 1.209 km2. Certamente ela havia errado em algum lugar. Refiz a busca com minha experiente mão esquerda (sou canhoto) e… não, minha amiga não havia feito nada errado. Os alertas de desmatamento de fato haviam subido 228 km2 em um dia e meio – dez campos de futebol tombando por minuto. Julho de 2019 é disparado o mês com mais alertas desde que o Deter-B entrou em operação, em 2015/2016. Como sabemos, julho de 2019 ainda está a uma semana e meia do fim. No momento em que escrevo, manhã de sábado, estamos em 1.260 km2. Como reparou um gaiato no Twitter, a escala do gráfico do Inpe só vai até 1.300 km2.
O Deter-B é um sistema de alertas. Não serve para medir área desmatada, conta feita apenas uma vez por ano pelo seu irmão mais velho, o Prodes. O Deter é, como o nome indica, uma ferramenta para orientar a fiscalização do Ibama, então ele precisa ser rápido. O trade-off da velocidade é a resolução: suas imagens são um pouco míopes, então o sistema não é capaz de enxergar todo o desmatamento. No ano passado, por exemplo, o Deter-B apontou 4.572 km2 de alertas entre agosto e julho (o “ano fiscal” do desmatamento vai de agosto de um ano a julho do ano seguinte). O Prodes, divulgado em novembro, deu uma estimativa de 7.900 km2, depois corrigida para 7.500 km2. Até dia 19 de julho, o Deter estava apontando um agregado de 5.838 km2, que, no atual ritmo, passará fácil de 6.000 km2 até o fim do mês. Apenas como experimento mental, aplicando a mesma diferença de 64% vista no ano passado entre Deter e Prodes, chegaremos à beira dos 10 mil km2 de desmatamento na Amazônia no primeiro ano da Nova Era. Sério, se você está perdendo tempo no X-Videos, corra para o Terra Brasilis pra ver o que é sacanagem de verdade.
Na última vez que o desmatamento na Amazônia esteve em cinco dígitos, em 2008, ainda não existia Instagram, Obama ainda não era presidente e a Alemanha era apenas o país de quem a gente tinha vencido a Copa de 2002.
A causa da fodelança com nossas matas é autoexplicativa. Temos um Presidente da República eleito sob a promessa de detonar o meio ambiente, sob a promessa de castrar o Ibama, sob a promessa de perseguir ONGs e acabar com os direitos de povos indígenas e outras minorias. Esse presidente recebe conselhos de spin doctors ambientais e tem como ministro do Meio Ambiente um homem que pratica o duplipensamento e se orgulha de “meter a foice no Ibama”. Na real, com o panão que Brasília tem passado sucessivamente para o crime ambiental, espanto seria se o desmatamento não tivesse disparado.
Se você foi um dos 58 milhões que elegeram esse senhor achando que ele não estava falando sério, que o que importa mesmo é “tirar o PT” ou, sei lá, que usar verba de gabinete para “comer gente” é cool, sinto muito, queride: sua digital e seus fluidos corporais estão lá, no surubão do correntão, em cada pau tombado e cada hectare grilado na Amazônia. Tomara que seu conje descubra.
Em defesa do governo Bolsonaro, é preciso reconhecer que o presidente e seus ministros não esperaram o desmatamento sair de controle para alvejar o mensageiro. Desde antes de assumir o cargo, o improbo que ocupa o Ministério do Meio Ambiente já vem tentando botar no rabo do Inpe, dizendo ora que o Deter-B “não consegue distinguir desmate legal de ilegal”, ora que seus dados “não servem para orientar a fiscalização” (o que é meio como dizer que geladeiras não servem para conservar alimentos), ora que eles não servem para “prevenir” desmatamento. Ergo, é preciso comprar na iniciativa privada – claro – um sistema de alertas “diários”. (Considerando que o Ibama pouco foi a campo na Amazônia desde janeiro, e não é por falta de vontade de seus agentes, um sistema de alertas diários serviria apenas para alimentar o voyeurismo de tarados como eu.) O ministro tem dito em entrevistas que o desmatamento já vem subindo desde 2012, como se houvesse uma força alienígena misteriosa elevando a taxa e o governo não tivesse nenhuma responsabilidade sobre a tendência.
Mas o condenado do Meio Ambiente tem companhia no coro anti-Inpe. Sua supervisora de estágio, a ministra da Agricultura, disse que o dado do Deter tinha “problemas técnicos”. E o general chefe do Gabinete de Segurança Institucional grasnou que “o dado é manipulado”. Para não ficar atrás dos subaltas, visto que em tese tem o pinto maior, o Presidente da República não se limitou a criticar o dado: já partiu para o ataque pessoal, sentenciando que o diretor do Inpe está “a serviço de alguma ONG”. A leviandade, que afronta o artigo 8º da Lei 1.079/50, ganhou resposta à altura no dia seguinte.
O que me deixa particularmente chocado não são os zurros de praxe de Bolsonaro, mas o silêncio sepulcral do setor que em tese mais tem a perder caso o Brasil se consolide no papel de pária ambiental do mundo: o agronegócio. O comportamento de suas lideranças, de seus ideólogos e de seus representantes eleitos nos sete primeiros meses de governo Bolsonaro me dá a certeza de que o tal “agro moderno” que o Brasil tentou vender durante os últimos 15 anos nunca passou de um ogro arcaico esperando para tomar o poder e restaurar a ordem pré-1988. Todos os sinais dados pelo governo com seu discurso e seus atos antiambientais sugerem que a produção rural no Brasil não pode prescindir da derrubada de florestas e de um ou outro índio morto. O agropop, ao se calar, aparentemente está consentindo com isso.
Luiz Cornacchioni, da Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), que fez uma solitária defesa pública do Código Florestal que Bolsonaro tentou destruir duas vezes, inclusive ao arrepio do Congresso, talvez seja a tal exceção que prova a regra. A Sociedade Rural Brasileira, que não muito tempo atrás se pintou de verde para se diferenciar dos radicais da bancada ruralista, tomou o lado do ministro do Meio Ambiente (egresso de seus quadros) quando oito ex-titulares da pasta contaram em público o segredo de polichinelo de que o rapaz está desmontando a governança ambiental do Brasil. A ministra da Agricultura, como vimos, vai a Bruxelas jurar que o agro brasileiro é plenamente sustentável e, ao pousar no Brasil, completa a frase com um “sustentável nos termos que eu definir”. A bancada ruralista no Congresso está possivelmente distraída demais com os orgasmos múltiplos que o Planalto lhe propicia para olhar com alguma objetividade para o noticiário.
Os produtores-executivos da pornochanchada amazônica devem estar pensando que os compradores das commodities brasileiras são idiotas que vão engolir bangue-bangue, repressão a ONGs, devastação galopante e o eventual dado manipulado ou censurado de desmatamento em plena era do Google Earth. Têm razões para pensar assim, porque o mercado mais exigente do Brasil, o europeu, está se comportando como tal ao fechar um acordo comercial que ficou empacado por 20 anos na semana em que os jornais anunciavam a escalada da destruição. A mensagem que fica para aquele agro que estava pensando em sair do armário da omissão é: “pra que se desgastar e falar alguma coisa, se a gente está ganhando tudo?”
É uma aposta alta no estado estacionário, colegas. Eu, no vosso lugar, não gostaria de estar na ponta errada de um retrocesso civilizatório, mas cada um, cada um; ainda somos livres até mesmo para nos aliarmos a liberticidas. Ocorre que o mundo gira e a Lusitana roda: Merkel e Macron podem até ter pagado de patetas diante de Bolsonaro na semana do fechamento do acordo, mas a guerra ainda não está ganha. A opinião pública no Brasil engole cada vez menos a balela do desmatamento necessário; os PVs europeus, empoderados após a eleição, e os agricultores franceses, protecionistas até a medula, estão querendo fazer com vocês, como dizíamos nos anos 80, o que o cavalo fez com a égua. Esta vai ser uma sacanagem definitivamente interessante de assistir.
Arquitetura da destruição
Se os cem dias de governo de Jair Bolsonaro fossem um filme, um bom candidato seria um documentário sueco clássico dos anos 1990: Arquitetura da Destruição, do cineasta Peter Cohen. O filme mostra como Adolf Hitler fez o que fez na Europa movido por um profundo – embora bem zoado – senso estético.
Pintor frustrado, que teve entrada recusada na Academia de Arte de Viena, Hitler sofreu influência torta dos ideais clássicos de beleza e bravura louvados por Richard Wagner na ópera Rienzi. O libreto conta a história do tribuno romano que desafia a nobreza (a “velha política”) para conduzir o povo a um futuro brilhante. Hitler buscou erguer na Alemanha esse futuro brilhante, espelhado num passado glorioso imaginário. Para isso, seria preciso destruir a antiga ordem, eliminar as “raças decadentes”, os doentes e deformados, os loucos (os outros, claro) e a “arte degenerada”. Em seu lugar surgiria uma sociedade harmoniosa e perfeita.
Parte desse esforço seria implementado com a remodelagem de Berlim, encomendada ao arquiteto Albert Speer e que nos deu os horrorosos edifícios monumentais de inspiração grega do nazismo. Outra parte viria da destruição das cidades dos inimigos. Mais de uma vez Hitler flertou com a ideia de aniquilar Paris, o que só não fez em 1940 por achar que Berlim ficaria muito mais bonita. Para Moscou o plano era mais radical: afogar a cidade, transformando-a numa represa.
O bolsonarismo é movido por similar, digamos, pulsão estética. Quase 58 milhões de eleitores votaram num projeto político cujo objetivo declarado é destruir “tudo o que está aí”: a ordem política “corrupta”, a elite intelectual “degenerada” e “gayzista”, a esquerda, que tão bem encarna o papel dos judeus como inimiga do povo brasileiro, e seus co-conspiradores na imprensa. Não faltam tampouco no imaginário bolsonarista as “raças decadentes”: os beneficiários do “bolsa-farelo”, tratados a tiros de sniper no Rio de Wilson Witzel; os quilombolas, que “não servem nem para procriar”; e os indígenas, os “indolentes” do general Mourão, que não podem mais viver “como animais num zoológico” e precisam ser “integrados” à sociedade brasileira.
Menos claro é o que a revolução militar-olavista-neoliberal-evangélica quer construir depois de botar tudo abaixo. Bolsonaro nunca especificou qual era seu projeto de país, mas, para sermos justos, tampouco o eleitor lhe perguntou. Autocrata por autocrata, pelo menos Hitler tinha vantagem neste aspecto.
No desconfortável papel de Paris e Moscou, as cidades marcadas para morrer, está provavelmente a Constituição de 1988. Na posse, Bolsonaro jurou, hahaha, respeitar a Constituição. (Não houve um tirano eleito na história da humanidade que não tenha feito a mesma promessa.) No entanto, a remodelagem da administração federal, entregue a arquitetos de reconhecido talento como Ônix Lorenzoni e o saudoso Eduardo Vélez, conta uma história bem distinta. Embora poucas violações diretas à Carta tenham sido cometidas até aqui, certamente seu espírito está sob ataque. Isso possivelmente é mais deletério para a democracia brasileira do que estupros pontuais, que de resto sempre podem ser detidos no Supremo.
A Constituição de 88 foi, como já escreveu o jornalista Marcelo Leite, uma das raras ocasiões em que o Brasil rebelou-se contra si próprio. Numa catarse da sociedade recém-liberta de uma ditadura de 21 anos, os constituintes mergulharam numa espécie de orgia democrática. Consagraram princípios muito avançados de participação social, vedação à discriminação e direitos difusos. Por exemplo, pouca gente se dá conta, mas há uma vinculação explícita da ordem econômica (art. 170) à função social da propriedade (parágrafo III) e à defesa do meio ambiente (VI). Ou seja, a sustentabilidade no Brasil é previsão constitucional. (A turma que tem saudades da escravidão nunca gostou disso e tem agido nos almoços de terça e no Congresso para minar esses princípios.) Há um artigo inteiro (225) dedicado a garantir o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, que é “direito de todos”. Há um artigo inteiro (231) sobre povos indígenas. Tem um monte de problemas? Claro. Envelheceu? Em vários aspectos. Paris também tem problemas e Paris também envelheceu. Não é por isso que precisa ser patrolada. E é isso o que o governo eleito vem fazendo em áreas como direitos humanos, meio ambiente, participação social, educação e redução das desigualdades.
Quando Bolsonaro golpeia a espinha dorsal da proteção aos direitos indígenas, por exemplo, está represando o rio Moscva para obliterar a Carta Magna. A determinação do presidente de não demarcar mais “um milímetro sequer” desses territórios evidentemente viola a Constituição, mas a ação do governo é muito mais insidiosa – e grave – do que isso: quebrou-se por Medida Provisória a ligação do índio com a terra, ao se mandar a Funai para o Ministério do Proselitismo Evangélico da menina-que-veste-rosa e entregar as terras ao Ministério da Bancada Ruralista, nas mãos de um pistoleiro de filme de Eduardo Coutinho. A política indigenista oficial leva o racismo ao coração do Executivo. Os constituintes não previram que um líder eleito pudesse fazer isso.
Da mesma forma, o infame Decreto 9.759, publicado na última sexta-feira, que extingue todos os colegiados da administração federal criados por decreto, é uma bomba V2 sobre a Torre Eiffel. Trata-se de mais um caso de decisão política tomada de orelhada, sem análise técnica e sem nenhuma justificativa que não seja demonstrar poder e animar a militância. O episódio lembra a crueldade do fim do convênio com Cuba no Mais Médicos, que deixou centenas de milhares de pessoas sem atendimento nos rincões, ou a “despetização” de Ônix na primeira semana na Casa Civil, quando fez um expurgo tão radical que ficou sem gente parar operar o ministério. O ministro do liquidificador chuta quando diz que são 700 colegiados a serem extintos e mente quando afirma que a medida visa eficiência e economia – a imensa maioria dos cargos de conselheiro é sem remuneração. O que se busca é reduzir a participação social no governo e aparelhar os conselhos que forem “desextintos”, nomeando seus membros entre os fiéis de alguma das massas do teratoma político bolsonarista. Mais um princípio de 88 se desfaz, numa lembrança sinistra do artigo 1º da Constituição de 1967: “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.
Na área ambiental a destruição avança em ritmo de Blitzkrieg. Em cem dias o governo cumpriu seu objetivo inicial de promover o fechamento branco do Ministério do Meio Ambiente, neutralizando-o sem precisar passar pelo desgaste de fundi-lo à Agricultura, como se desejava.
Como nos EUA de Donald Trump, Bolsonaro botou à frente do ministério um lobista de um setor regulado – no caso, o agronegócio –, que tem agido de acordo. Os primeiros passos foram dados na reestruturação do governo, com a pulverização das atribuições do MMA entre outras pastas: águas e saneamento para o antigo Ministério das Cidades, Código Florestal para Agricultura, licenciamento para a Secretaria de Governo, mudança climática e controle do desmatamento para lugar nenhum. O ministro, como seu chefe um mentiroso compulsivo, foi questionado pela imprensa sobre a extinção da área de clima na primeira semana de governo e disse tratar-se, ao contrário, de uma “promoção”, prometendo que criaria uma coordenação especial para o tema em seu gabinete. Não criou, e descobriu-se depois que o setor estava desde o início condenado: a equipe de transição considerava o setor um “cabide de empregos” e domínio de “organismos incontroláveis”, eufemismo para ONGs que o governo não conseguiria sufocar.
O titular do Meio Ambiente, assim como o das Relações Exteriores, não acredita em mudança climática: considera-a uma “discussão acadêmica” e chegou a dizer, no dia seguinte a dez mortes causadas por uma chuva extrema no Rio, que as pessoas que estão “com o pé na lama” têm problemas mais “tangíveis” do que clima com que se preocupar. O que importa mesmo, segundo ele, é cuidar de lixo e esgoto, agendas sobre as quais, de resto, sua governança é limitada.
Na fiscalização ambiental mais uma promessa de campanha de Bolsonaro foi cumprida: acabar com a “indústria da multa”, que é como o presidente chama o Ibama e o ICMBio. Começou com o questionamento do contrato de aluguel de veículos para a fiscalização do Ibama e terminou com a criação de uma burocracia extra (no governo cujo mantra é “desburocratizar”) para impedir a cobrança de multas. Não faltou nem a punição exemplar ao fiscal que ousou multar em 2012 o então deputado Jair Bolsonaro, que teve seu auto anulado na mão grande e depois perdeu o cargo. Tudo com a conivência do presidente do órgão, que participou da equipe de transição e aparentemente botou a própria carreira à frente do setor que deveria proteger.
Igualmente bovino foi o presidente do Instituto Chico Mendes, que neste fim de semana calou-se enquanto o ministro humilhava servidores do instituto em um evento com (quem mais?) ruralistas no Rio Grande do Sul. O ICMBio, lembremos, foi uma autarquia destinada à extinção pelos planos da equipe de transição. Já havia aceito alegremente a censura prévia às suas comunicações. Agora escuta ameaças de processo administrativo a seus funcionários por não estarem um evento para o qual não foram convidados. Reagirá da mesma forma quando, digamos, as Florestas Nacionais forem retiradas de sua governança e passarem para o Ministério da Agricultura?
Atualização: algumas horas depois da publicação desde post, o presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard, pediu demissão, na esteira do episódio narrado acima. Eberhard decidiu não sacrificar seu passado e não aguentar mais assédio moral. Resta saber se será seguido por outros funcionários do ministério e se tomará alguma providência judicial contra o ex-chefe.
É assim, agredindo, mentindo e tergiversando, que os Sturmbannführer ambientais bolsonaristas vêm não apenas tornando letra morta o artigo 225 da Constituição como subvertendo o próprio princípio da ação legal do Estado nessa área: as investidas contra os agentes e contra dispositivos consagrados de fiscalização, como a destruição de equipamentos, sugerem que o infrator ambiental é, por princípio, inocente, mesmo que seja apanhado com a proverbial vara na mão e baldes cheios de peixes numa área protegida, e que o agente fiscalizador é, por princípio, culpado. Mais do que os escândalos pontuais, as crueldades cotidianas do ministro e o acinte permanente de ter um condenado por fraude ambiental mandando na área ambiental, este é o fato mais grave. Porque entramos no território da perversão e da ficção, que tão bem caracterizou os regimes totalitários do século passado.
A esperança, se é que dá para falar de esperança, é que os estetas do caos também erram. Frequentemente se deixam arrebatar pelo mundo fictício que constroem e são surpreendidos quando a realidade reage. Hitler escolheu a época errada do ano para marchar rumo a Moscou e enfrentou a resistência espetacular do Exército Vermelho. Da mesma forma, seu plano de aniquilar Paris foi vencido pela boa e velha diplomacia. Se a história nos autoriza a esperar sempre o pior de autocratas do naipe de Bolsonaro, ela também nos deixa lições valiosas de como lidar com eles. É bom já ir botando-as em prática.
O negacionismo “light” do ministro do Meio Ambiente
PARA NÃO DIZER que o Brasil é uma fábrica incessante de más notícias, na última segunda-feira (4) o ministro do Meio Ambiente deu uma boa nova não só aos brasileiros, mas a toda a humanidade: o combate aquecimento global pode esperar mais um tempo. Quinhentos anos, para ser exato. Até lá, é uma discussão “acadêmica”. Ufa.
O atual titular da pasta que já foi ocupada por Rubens Ricúpero, Marina Silva e José Goldemberg foi entrevistado por uma bancada francamente amistosa no programa Pânico, na Jovem Pan. Lá afirmou que sua prioridade “não é ficar mandando grupo de 20, 30 pessoas viajando o mundo inteiro de executiva e ficando em hotel e comendo por conta do governo para discutir como vai estar o mundo daqui a 500 anos”. Segundo ele, o clima “deve ser tratado no âmbito da academia, pela imprensa, por técnicos”, e o poder público, para ser eficiente, precisa “cuidar de problemas tangíveis”.
Pausa para vocês lerem de novo e descomprimirem.
Esta é a primeira na história que um ministro do Meio Ambiente do Brasil despreza desse tanto a agenda que tem sido um dos pilares da política ambiental brasileira há 20 anos. São declarações tão chocantes que é difícil atribuí-las a mera ignorância. Parecem ser deliberadas, para produzir justamente indignação nos “ambientalistas”, na “esquerda”, nos marxistas-culturais-zoófilos-pedófilos ou quem quer que seja o inimigo imaginário da vez da patota governista. Se eu fosse teórico da conspiração, desses que que leem Olavo de Carvalho, diria que o ministro do Meio Ambiente é um “decoy”, como esses patos de borracha usados por caçadores: o governo o deixa lá, falando barbaridades na imprensa e atraindo toda atenção, enquanto a agenda ambiental de fato é operada pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, juntamente com seus fiéis escudeiros Valdir Colatto e Nabhan Garcia, mais o Hannibal Lecter, o Bane, o Curinga e o Thanos.
Eu me sinto até meio ridículo em ter de explicar ao ministro que, veja, o aquecimento global é um problema bastante tangível. No próprio dia em que ele dava sua entrevista, São Paulo atravessava seu verão mais quente em mais de 70 anos, com temperaturas máximas 3,4oC superiores à média histórica para o mês e um pico de calor de 35,1oC em janeiro. Todas as capitais do Centro-Sul tiveram calor anormal, com Floripa batendo 40oC – recorde absoluto desde o início das medições – e o Rio com 40,4oC e seu janeiro mais quente desde 1922.
Mas OK, esse documento não prova nada, diria aquele filme do Batman; afinal, é só um ano, né? Desvios da média acontecem o tempo todo por variabilidade natural do clima. Verdade. Mas aí a gente nota que esses desvios estão mais frequentes em várias regiões do país. Por exemplo, olhe os picos de temperatura máxima em Brasília neste gráfico já antiguinho do Instituto Nacional de Meteorologia (que não inclui o novo recorde de 37,3oC batido em 2017, ano sem El Niño):
Agora veja o número de noites quentes em Brasília (no Brasil as temperaturas mínimas, noturnas, subiram 2oC desde 1960, enquanto as máximas subiram 1oC):
E as máximas extremas em Palmas:
E em Manaus:
Em algumas regiões do país (mas atenção: não em todas), o próprio conceito de “média histórica”, também chamado de “normal climatológica”, mudou: entre 1961 e 1990 fez mais calor do que entre 1931 e 1960. Ou seja, o que era anormal passou a ser normal. Veja, por exemplo, os casos de São Paulo:
E do Rio de Janeiro (ou seria “Hell de Janeiro”?):
Claro, tudo isso pode ser apenas coincidência. Mas aí a gente se dá conta de que todas as maiores agências de meteorologia e climatologia do mundo, inclusive a Organização Meteorológica Mundial, divulgaram na última quarta-feira seus dados de temperatura de 2018, mostrando que:
- O ano passado foi o quarto mais quente desde o início das medições, em 1880;
- Os cinco anos mais quentes de todos os tempos foram os últimos cinco anos;
- Dos dez anos mais quentes de todos os tempos, nove ocorreram na última década.
E aí cabem duas perguntas: o Brasil está respondendo a uma tendência global? Os efeitos de um Brasil e de um mundo mais quentes já são nitidamente perceptíveis? A resposta a ambas é “sim”. Se você duvida, veja aqui como evoluíram os prejuízos por eventos climáticos extremos no Brasil apenas entre 2002 e 2012, segundo um estudo publicado em 2015 pelo Grupo de Economia Ambiental da UFRJ, pelo Observatório do Clima e por Oeco:
Mesmo considerando que uma das causas do aumento do impacto econômico é provavelmente o maior número de pessoas expostas devido a crescimento populacional e (mau) desenvolvimento urbano, o cruzamento dessa tendência com as tendências nacionais e globais de maior variabilidade climática e extremos mais extremos é bastante “tangível”. “Tangível” o suficiente para exigir do poder público ação imediata de adaptação à mudança do clima, em especial nas cidades. Se o ministro gosta tanto de meio ambiente urbano quanto diz, taí um excelente lugar para começar a agir.
A outra metade dessa laranja (mal aê, Flávio) é redução de emissões, o que o Brasil fez mais do que a maioria dos países do mundo ao cortar a taxa de desmatamento na Amazônia entre 2005 e 2012, e o que prometeu continuar fazendo com suas metas no Acordo de Paris.
O titular do Meio Ambiente, no entanto, professando uma versão “light” do negacionismo climático pelo qual seu colega Ernesto Araújo entrou para a infâmia, diz que o Brasil já fez o bastante nesse quesito e vai focar em outros temas: saneamento básico, lixo e inspeção veicular de ônibus e caminhões. Cruciais, certamente, em especial o primeiro. Mas a vida é uma cadela, ministro; priorizar esses assuntos em detrimento de outros da agenda ambiental não significa aumentar a eficiência da gestão, como o senhor apregoa: significa apenas deixar de fazer coisas.
O empossado justificou essa mudança de foco no ministério com outros dois argumentos que merecem exame. O primeiro:
“O Brasil contribui com 2,7% das emissões. A China, os EUA é 25[%], 30[%]. Nós somos 2, Eles são 30 cada um, 25 cada um. São ordens de grandeza completamente diferentes (…) O Brasil não é o patinho feio, tá muito longe de ser o patinho feio. O patinho feio são os países industrializados do primeiro mundo. Que não têm moral para colocar o dedo na cara do brasileiro e dizer ‘eu exijo que vocês façam isso ou aquilo’.”
O segundo:
“Essa agenda de qualidade ambiental urbana é uma situação concreta de ajuda ao combate à mudança climática: o efeito estufa dos lixões, o efeito estufa da falta de saneamento, o efeito estufa da falta de inspeção veicular nos veículos a diesel, tudo isso é contribuição com [o combate à] mudança climática.”
Na verdade, EUA e China contribuem com 13% e 24% das emissões globais, respectivamente. Mesmo com cerca de 3% das emissões do mundo, o Brasil é o sétimo poluidor climático do planeta e, portanto, muitíssimo responsável por deter suas emissões. Para citar apenas um exemplo, o controle ou o descontrole sobre o desmatamento na Amazônia e no cerrado podem ser a diferença entre o mundo cumprir e não cumprir a meta do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento global e, 1,5oC – na improvável hipótese de conseguirmos reduzir de maneira importante o uso dos combustíveis fósseis. Como a meta de 1,5oC requer 45% de corte de emissões globais em 12 anos, nenhum dos países do G20, que respondem por mais de 80% das emissões do planeta, pode deixar de contribuir com o esforço “prafrentemente.” Deitar nos louros das glórias passadas não vai impedir que Santos alague.
É evidente que o Brasil não pode fazer o esforço sozinho, mas ao fechar a secretaria de Mudança Climática do ministério o Novo ministro não ajuda a cobrar os “países industrializados do primeiro mundo”, que é para que servem as conferências do clima (surpresa, ministro: não é pra funcionário público “jantar no Plaza Athenée”, nem “viajar de classe executiva” que existem as COPs).
Vamos ao segundo argumento do ministro: lixo, esgoto e catalisador em ônibus fazem alguma diferença nas nossas emissões? A resposta é “sim”, mas não muito. Real, quase nada.
Vamos aos dados. Segundo o SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (aquela “turma” que fica “tumultuando”, nas palavras do ministro), o Brasil emitiu 2,070 bilhões de toneladas de CO2 equivalente em 2017, cerca de 3,4% do total global. O setor de resíduos, que inclui lixo e esgoto, representa 4% desses 2 bilhões de toneladas, ou algo em torno de 90 milhões de toneladas. Desse total, o lixo responde por 46 milhões de toneladas, e o tratamento de efluentes domésticos, por 21 milhões. Se o chefe do Meio Ambiente tivesse absoluto sucesso em zerar emissões desses dois subsetores, o que é virtualmente impossível, o Brasil ainda emitiria 2,003 bilhão de toneladas. Tem que fazer? Tem. É a coisa mais relevante a fazer? Os números falam sozinhos.
E a inspeção veicular? Faz igualmente pouca diferença no clima (tipo zero diferença), embora seja obviamente importante para a saúde. Ônibus e caminhões responderam em 2017 por 105 milhões de toneladas de CO2 equivalente, praticamente metade das emissões do setor de transportes – por sua vez o principal usuário de combustíveis fósseis no Brasil. Eles emitem um monte de porcarias junto com o gás carbônico (monóxido de carbono, particulados e outros). A inspeção veicular visa atacar não o CO2, mas essas outras porcarias assassinas, por meio da instalação de filtros e catalisadores. Programas de eficiência de motores, como o Rota 2030, fariam diferença real nas emissões do setor de transportes, embora a única solução real seja trocá-los por elétricos e biocombustíveis. Mas – adivinhe? – o Rota 2030 passou sem metas para veículos pesados. O ministro está disposto a comprar a briga com a Anfavea, o lobby mais poderoso de Brasília, e mexer no vespeiro do transporte de cargas? Se sim, aplaudirei de pé e, com a vênia da metáfora, marcharei junto.
Quem emite de verdade verdadeira no Brasil é o agronegócio. Segundo o SEEG, 71% das nossas emissões vêm desse setor, seja diretamente (24% do total nacional), principalmente pelo rebanho bovino, seja indiretamente (46% do total), pelo desmatamento. Todos os outros ministros do Meio Ambiente, sem exceção, de todos os partidos, buscaram atacar esse problema, com maior ou menor grau de sucesso. O atual ocupante do quinto andar do bloco B da Esplanada até agora tem fingido que a conversa não é com ele. Afinal, foi indicado pela ministra da Agricultura e foi diretor da Sociedade Rural Brasileira.
Como qualquer criança sabe, porém, negar o problema não o fará desaparecer. Nem agora, nem em 500 anos
Foto do alto: Gilberto Soares/MMA
Isso não se faz, Arnesto
CENTO E VINTE E DOIS ANOS depois dos estudos de Arrhenius, 80 anos depois de Guy Callendar expor sua tese sobre CO2 e aquecimento da Terra à Royal Society e trinta anos depois da criação do IPCC, ver o chanceler da República Federativa do Brasil chamando o aquecimento global de conspiração marxista desperta em mim aquela sensação “volte dez casas” após um lance infeliz de dados num jogo de tabuleiro. Como cantou Adoniran em seu Samba do Arnesto, fiquei “com uma baita de uma réiva”. Meu primeiro impulso foi tuitar para ele mandando um “puta maluco do caralho”. Mas aí o Pablo Ortellado ia ficar bravo e dizer que a culpa pelo Ernesto Araújo é de progressistas como eu, que não soubemos “engajar” o homem comum, mesmerizados que estávamos pelas nossas cervejas artesanais nos fins de semana depois das visitas à Livraria Cultura (duplo fracasso, já que não evitamos nem Bolsonaro, nem a falência da Cultura). Então, caro Arnesto, não o chamarei de “puta maluco do caralho” – embora desconfie, pela maneira como você usa a adversativa sempre que se toca no assunto, de que alguém próximo a você já tenha arriscado esse diagnóstico.
Direi, em vez disso, que a sua negação da mudança climática é o oposto do fervor nacionalista que você prega. Na real, é uma modinha importada do restolho do pensamento iliberal, que nem aqueles aviões obsoletos que a turma mandava antigamente para os países da África. Como tal, é profundamente antipatriótica. Bear with me.
O negacionismo do clima nunca floresceu de maneira orgânica no Brasil. Isso é coisa de gringo, sempre foi. Naomi Oreskes e Eric Conway, em seu imperdível Merchants of doubt, historiografam a origem do fenômeno. Começou com físicos pagos pela indústria do petróleo e do carvão para espalhar dúvida no público a respeito das evidências cada vez mais sólidas sobre impactos ambientais da ação industrial, como chuva ácida, a camada de ozônio e a mudança do clima, usando um manual de relações-públicas bolado pelo lobby do tabaco nos anos 1950. A imprensa americana, na sua obsessão por equilíbrio, passou duas décadas citando esses ideólogos da indústria como “outro lado” em suas matérias sobre a questão climática. Os negacionistas originais – Fred Seitz e Fred Singer – triunfaram em sua estratégia de abrir um “debate” e criar a impressão de que havia sérias divisões a respeito das causas e dos impactos do aquecimento global na academia. Não há: apenas 3% dos estudos sobre mudança do clima questionam as evidências. Mesmo assim, eles atrasaram por 20 anos o combate internacional à mudança do clima.
Além dos EUA, o negacionismo só é uma questão séria em dois outros países: a Austrália, maior exportador de carvão mineral do planeta, e o Reino Unido, quintal cultural da América e sede de big oils como a BP e a Shell. No resto do mundo trata-se essencialmente de um não-assunto na opinião pública, segundo o estudo Poles apart, da Fundação Reuters, liderado pelo jornalista britânico James Painter.
No Brasil, os combustíveis fósseis até muito recentemente tinham peso muito pequeno na economia. Além disso, sempre foram uma atividade estatal, daí a baixa influência do lobby das empresas privadas no discurso público sobre clima. Por muito tempo, jornalistas brasileiros puderam escrever sobre ciência do clima livremente, sem precisar publicar o “outro lado” de um cientista “cético” – até porque há poucos por aqui, e menos ainda que publicam sobre temas climatológicos. O negacionismo à brasileira vem de outro campo. Literalmente, do campo: da negação do setor rural em associar desmatamento a emissões de carbono e da baixa compreensão do público sobre a ligação entre consumo de carne bovina e poluição climática, como mostrou extenso trabalho da antropóloga dinamarquesa-americana-paulista Myanna Lahsen.
Mesmo no mundo anglo-saxão os negadores da mudança do clima comeram um dobrado no governo Obama, quando a Exxon Mobil parou de financiar organizações como o Heartland Institute, nos EUA, e quando três comitês independentes inocentaram os cientistas do clima do Reino Unido acusados de má conduta acadêmica no chamado “climagate”. Os autointitulados “céticos” amargaram uma derrota que muitos (este ex-criba inclusive) supuseram final em 12 de dezembro de 2015, quando 195 países adotaram o Acordo de Paris. Mas é claro que os rumores sobre a morte desse povo foram exagerados, por conta de um deslocamento no eixo do discurso que começara anos antes, com o movimento Tea Party, e terminaria com o “professor” Olavo de Carvalho, que certamente não está na bibliografia do exame do Rio Branco (mas não quero ficar dando ideia pro chanceler).
O que aconteceu foi que a mudança do clima passou a integrar fortemente a cesta das guerras culturais norte-americanas, juntamente com a teoria da evolução. Após a criação do Tea Party, chocadeira da alt-right, em 2009, negar o aquecimento global e as providências contra ele tornou-se uma espécie de teste de fidelidade da direita: o cabra não entrava no clubinho dos conservadores raiz se não tivesse Jesus no coração, um discurso forte contra imigrantes, contra a saúde universal, contra a ONU e o “globalismo” (opa!) e se não negasse a mudança do clima por três vezes.
Como resultado, iniciativas de controle de emissões do Partido Republicano (pouca gente lembra, mas a primeira proposta de lei de clima nos EUA foi bipartidária, elaborada pelo senador republicano John McCain e pelo democrata Joe Lieberman no ano 2000) foram escanteadas. Republicanos moderados, como próprio McCain e o ex-governador de Massachusetts Mitt Romney, passaram a dosar o discurso pró-clima ou a abjurá-lo tout court temendo perda de apoio.
É nesse contexto, de guerra cultural, que entra o negacionismo do “professor” Olavo, autoexilado nos EUA e incensado pelo nosso chanceler como o segundo “grande responsável pela transformação que o Brasil está vivendo”. Dificilmente o Faraó de Pinheiros teve algum contato com a literatura científica na área de clima; limitou-se a papagaiar o pacote ideológico da direita, que inclui o ceticismo climático, a restauração teocrática, o “antiglobalismo” e outras jenialidades – enfiando uma meia-dúzia de cus e pirocas no meio para levar os mirins do MBL ao delírio. Seus escritos aparentemente tiveram forte influência sobre os “garotos” de Bolsonaro, Carlos e Eduardo (aquele do cabo e do soldado), que em diversas ocasiões exibiram o identificador tribal do negacionismo e fazem a cabeça do pai sobre esse assunto.
Arnesto Araújo bebe da mesma fonte. Numa apresentação feita no Instituto Rio Branco em maio de 2015, ele qualificou a mudança climática como “polêmica” científica (ao lado de “darwinismo x design inteligente” e de “Plutão é planeta?”). Usou como apoio uma série de gráficos que são uma espécie de bingo do negacionismo: o da suposta discrepância entre balões e satélites e modelos de clima (que não existe; todas as bases de dados convergem, como pode ser visto aqui); o do infame “hiato” no aquecimento global desde 1988, que também nunca existiu; o gráfico de sempre mostrando o efeito das ilhas de calor urbanas (que obviamente explica boa parte do calor em Paris e São Paulo, mas não nos cafundós da Amazônia ou no polo Norte); e a sugestão de que a culpa é dos ciclos orbitais (que causaram glaciações e deglaciações, mas que não têm nenhuma relação com o aquecimento atual da Terra, como mostra, entre outros, este estudo europeu).
Com a eleição de Donald Trump, a portinhola do curral dos infernos se abriu e o que era fringe science virou mainstream politics. O negacionismo que operava nas sombras e era descartado por liberais como maluquice ultrapassada (nesse ponto concordo com Pablo Ortellado sobre a soberba das classes esclarecidas) de repente se provou com força suficiente para tirar os EUA do Acordo de Paris quando não havia nenhuma razão econômica para isso. O ato de Trump foi um statement ideológico.
Ao eleger o clima para receber punição exemplar em sua cruzada religiosa-antiglobalista-olaviana, o chanceler da República, de mãos dadas com os rapazes Bolsonaros, arma o cenário para uma saída do Brasil do Acordo de Paris, de direito ou de fato, e também por razões ideológicas – o que é irônico vindo do sujeito que prometeu tirar a ideologia da nossa política externa, mas só aparentemente. É difícil imaginar em qual Universo paralelo o abandono dessa agenda poderia ser de interesse da Pátria Amada.
Para ficar só na parte dos prejuízos: entre 2002 e 2012, extremos climáticos custaram ao Brasil, em média, R$ 270 bilhões. Nossa agricultura irrigada e nossas hidrelétricas dependem de um clima estável, e a série de estudos Brasil 2040, da extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, mostrou que teremos tudo menos isso antes do meio deste século: alguns reservatórios podem ter quedas de vazão maiores que 50%, toda a região Sul se tornará inviável para a soja e o milho safrinha sumirá do mapa. Não é à toa que a ministra da Agricultura criou um setor na sua pasta para estudar a adaptação do agro brasileiro ao aquecimento da Terra.
Mas tem também o tal do soft power.
Não pretendo ensinar o padre nosso ao vigário, ainda mais um tão firme em sua fé quanto Arnesto Araújo. Mas o Brasil, nos últimos 47 anos, tem derivado reconhecimento internacional – e dinheiro – da agenda ambiental internacional. Foi o embaixador Miguel Ozorio de Almeida quem cunhou o conceito de “poluição da pobreza” em 1972, que até hoje pauta o G77 na ONU. O Brasil, no governo de Fernando Collor (único ex-presidente que compareceu à posse de Arnesto no dia 2), tornou-se berço das convenções de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. Desde então já recebeu bilhões de dólares em cooperação internacional e em investimentos em economia limpa. Criou sistemas de monitoramento de desmatamento e observação da Terra que hoje são utilizados em vários países com florestas tropicais (cooperação sul-sul, mas pode chamar de “influência”). Tornou-se um ator fundamental em qualquer fórum internacional que discuta clima e biodiversidade. Abriu mercados às nossas commodities agrícolas e ao nosso biocombustível. Agora mesmo, como mostrou o jornal O Estado de S.Paulo, há R$ 2,5 bilhões em doações e empréstimos internacionais no limbo porque ninguém sabe quem são os interlocutores do novo governo na área de clima.
Dizer que tudo isso é agenda de ONG, como sugeriu Arnesto em seu discurso de posse, revela uma ignorância sobre a Casa dos Arcos que só pode ser deliberada. Nosso chanceler poderia, por exemplo, tomar um café com o embaixador Everton Vargas, que negociou pelo Brasil todos os grandes acordos ambientais de 1972 a 2007 – e que vive às turras com as ONGs. Mas não vai, já que ele desconvidou Vargas a assumir a subsecretaria que cuida de meio ambiente no Itamaraty.
Transformar o Brasil numa república negacionista do clima, como parece desejar Ernesto Araújo, em nome de uma série de mentiras e teorias conspiratórias importadas da alt-right americana, parece pavimentar a estrada para o inferno. Não apenas o bíblico, mas também o climático: afinal, o Brasil é o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, e o descontrole sobre nossas emissões arruinaria qualquer chance da humanidade de atingir a meta do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento da Terra abaixo de 2oC.
Isso não se faz, Arnesto.
Insensibilidade climática
Leandro Narloch mandou mal.
O guru do pensamento politicamente incorreto virou best-seller desmontando “mitos” sobre história, política e comportamento. É bonitinho. Às vezes acerta ou, no mínimo, provoca as pessoas a questionar verdades estabelecidas pouco apoiadas em evidências. Só que às vezes ele mesmo se afasta das evidências para forçar um argumento ou dez. E aí dá ruim. Sua última coluna no site da Folha é um exemplo: uma diatribe antiambientalista que escorrega em fatos e produz – para sermos politicamente corretos – um samba do afrodescendente com problemas psiquiátricos.
Narloch tenta argumentar que ambientalistas são obcecados com o Apocalipse, mas que esse Apocalipse nunca chega, mas que mesmo assim eles continuam insistindo no Apocalipse porque isso vende livro e dá dinheiro para ONGs.
Nada de novo aqui. Frequentemente o ambientalismo é criticado por fazer previsões catastrofistas que não se realizam, mas frequentemente elas não se realizam precisamente por mudanças de comportamento induzidas pelos ambientalistas. Doh. É evidente que ambientalistas exageram e cometem equívocos de vez em quando: trata-se, afinal, de um empreendimento humano. Destacá-los por isso, porém, é preconceito. E visões pré-concebidas costumam estar erradas; Narloch deveria saber disso melhor do que ninguém.
Um exemplo: o colunista critica Rachel Carson, a fundadora do ambientalismo moderno, por ter “apostado” em seu livro Silent Spring (1962) que o DDT e os pesticidas provocariam “extinção de pelicanos na costa Oeste americana”. Na real, não há nenhuma menção a pelicanos no livro de Carson, que tampouco faz qualquer “aposta” – apenas colige dados científicos da época. Mas o banimento do DDT, que ocorreu cinco anos depois de sua publicação, possivelmente permitiu o retorno de pelicanos que estavam quase extintos na Louisiana, na costa Leste.
Especificamente, Narloch cita três fins do mundo que não chegaram: o armageddon das abelhas, que teria sido revertido; a seca no Sudeste, que teria acabado mesmo sem ninguém reflorestar a Amazônia; e o aquecimento global, que não seria tão grave assim.
Sobre este último, diz o nosso politicamente incorreto guru:
“E um novo estudo, publicado em janeiro pela “Nature”, revisou para baixo a sensibilidade climática (a variação do clima de acordo com a variação da emissão de carbono e outros fatores). Segundo os pesquisadores da Universidade de Exeter e do Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido, se a concentração de CO2 na atmosfera dobrar, o planeta vai esquentar no máximo 2,8°C, e não 4,5°C, como o IPCC previa.”
Há um erro conceitual crasso nessa conclusão. Demanda uma explicação longa, mas não vá embora.
O estudo citado tem como primeiro autor Peter Cox, hoje na Universidade de Exeter. Cox ficou famoso no começo do século por formular a hipótese de que a Amazônia sofreria mortandade em massa num cenário de aquecimento global descontrolado. Não é exatamente um cético do clima.
Como Narloch aponta, o artigo de Cox trata de um valor chamado “sensibilidade climática em equilíbrio”. É uma estimativa de quanto o planeta aqueceria caso o nível de CO2 na atmosfera duplicasse instantaneamente. É um componente fundamental dos modelos computacionais de clima.
A sensibilidade climática foi estimada pela primeira vez em 1896 pelo sueco Svante Arrhenius (aquele mesmo, dos ácidos e das bases). Ele previu um aumento de 5oC a 6oC com o CO2 duplicado na atmosfera. Em 1975, o primeiro modelo de clima em computador chegou a um número bem menor: 2,4oC.
Por uma série de problemas que têm a ver com, por exemplo, a representação de nuvens e aerossóis, os modelos têm dificuldade em “resolver” esse parâmetro, e os números têm patinado há 40 anos entre 2oC e 5oC, mais ou menos. Cada um dos cerca de 20 modelos globais usados hoje em dia pelo IPCC, o painel do clima da ONU, tem uma estimativa diferente de sensibilidade climática. Alguns “enxergam” a Terra mais resiliente ao aumento dos gases-estufa; outros, mais sensível. Na soma de todos os resultados, o IPCC considerou, em seu relatório mais recente, o AR5, que a sensibilidade climática em equilíbrio varia entre 1,5oC e 4,5oC, com uma melhor estimativa de 3,2oC.
Cox e seus colegas – e, de resto, todos os modeleiros de clima do mundo – vêm tentando reduzir essa incerteza. Seu trabalho de janeiro aponta um caminho diferente para fazer a estimativa, e dá como resultado uma faixa de 2,2oC a 3,4oC, com uma melhor estimativa de 2,8oC. Descarta as pontas extremas da faixa de possibilidades do AR5. No entanto, sua melhor estimativa é muito parecida com os 2,9oC publicados pelo IPCC em seu quarto relatório, de 2007, para uma concentração de CO2 na atmosfera de 550 partes por milhão (o dobro da máxima pré-industrial).
“Isso não quer dizer nunca que o planeta vai esquentar menos ou que está esquentando menos agora. As medidas mostram que os modelos estão acertando razoavelmente as previsões dos últimos cem anos”, diz Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, membro do IPCC. Se você quiser saber quão bem os modelos vêm prevendo as temperaturas, assista a este vídeo sensacional do Skeptical Science.
O problema é que Narloch confunde sensibilidade climática com projeção de aquecimento. E, como diz Zeca Pagodinho, é igual, mas é diferente.
A projeção de aumento de temperatura depende de quanto CO2 lançarmos na atmosfera nas próximas décadas – pode ser menos ou mais do que o dobro do que havia antes da era industrial. O IPCC traça quatro cenários de aumento de temperatura em seu último relatório: no melhor, o chamado RCP 2.6, o aumento médio no fim do século em relação à média observada entre 1986 e 2005 será de 1oC; no pior, o chamado RCP 8.5, o aumento médio é de 3,7oC em relação à mesma média. Elevações maiores que 6oC são consideradas muito improváveis, mas não foram descartadas.
Portanto, não, o IPCC não “previu” um aquecimento global de 4,5oC que foi repentinamente desmentido por um único paper.
Eu também acho uma merda o IPCC ser tão confuso em relatórios que são chamados de “Sumários para Formuladores de Políticas Públicas” (e que portanto deveriam ser compreensíveis para qualquer cidadão com segundo grau completo). E eu também já confundi sensibilidade climática com projeção de aquecimento dezenas de vezes, e de maneiras vergonhosas. Mas a vida é dura mesmo: se Leandro Narloch quiser fazer disso um cavalo de batalha contra o ambientalismo, vai precisar estudar mais.
Le vieux Boná
“PAREM AS MÁQUINAS!” Quando a voz trovejava na redação, seguida de um gordinho barbudo com uma bolsa de lona a tiracolo, geralmente o horário era inconveniente. Fim de tarde, toda a editoria em plena adrenalina de fechamento, e o Bonalume entrava com cara de quem havia acabado de acordar. Vinha entregar ao administrativo do jornal as notas dos trabalhos do mês e passava nas editorias de Ciência e Mundo, que usavam seus préstimos, para jogar conversa fora – ele bem sabia, no pior momento – e para fazer a pergunta clássica: “Tem alguma cascata pra mim esta semana?”
Sempre tinha. Por mais exasperante que fosse lidar com o bon vivant que cagava e andava para os horários dos “escravos” e raramente se dava ao trabalho de entrevistar os pesquisadores quando cobria algum paper científico que não lhe parecesse muito importante (ou sobre o qual ele não tivesse dúvidas), entregar uma “cascata” para Ricardo Bonalume Neto “cometer” era garantia de um texto redondo. Para inveja de todos nós, o Bona aliava a perfeição em suas reportagens à lei do mínimo esforço. Para inveja maior ainda de uma geração de jovens repórteres, conquistara ao longo dos anos o direito de trabalhar de sua casa na Vila Madalena, na companhia das cachorras e dos livros. Não me lembro de outro repórter da Folha até então que tinha essa regalia. Se Romário fosse um jornalista de ciência, seria o Bona.
O Bona, para mim, foi um gosto adquirido. Por muito tempo eu achei antipática a coluna que ele assinava na extinta Revista da Folha: “O cético”. Ali dedicava-se a desancar tudo quanto era óleo de cobra – “energias”, “espiritualidade”, homeopatia e pseudociências em geral. A coluna existia, na obsessão dualística do jornal, para fazer par com a de Paulo Coelho, “O mago”, e foi extinta num ato salomônico quando o parceiro de Raul Seixas deixou de escrever. Mesmo não gostando da coluna, tive de me render a seu autor uma vez, ouvindo uma entrevista dele a uma âncora não particularmente perspicaz num programa de rádio vespertino, na década de 1990. A pobre mulher insistia em defender a astrologia e, num dado momento, perguntou ao Bonalume por que, então, tantos grandes cientistas do passado foram astrólogos. “Cite um”, devolveu o Bona. A dona engasgou e mudou de assunto.
O espírito, digo, cérebro cético do Bona, motivo de minha resistência inicial, acabou sendo uma das maiores influências dele sobre mim (a outra foi me apresentar a obra de Leonard Cohen). As coisas são como elas são, não como gostaríamos que fossem, e se as evidências dizem o oposto da sua crença – bem, problema seu. Isso valia para a ciência, mas também para a política. Nunca concordamos a respeito da última, e o Bona sempre fez piada do meu esquerdismo, me chamando de “melancia”: verde por fora, vermelho por dentro. Em muita coisa ele tinha razão. E, quando não tinha, cabia a citação de Yevgeni Zamyátin que ele mantinha na assinatura de seus e-mails: “Prefiro estar errado do meu próprio jeito a estar certo do jeito dos outros”.
Quando entrei na Folha, em 2000, Bonalume já era uma lenda. Sabíamos de vários de seus feitos profissionais, mas sua vida pessoal era um mistério. De fragmentos de conversas e de leitura de jornal, sei que ele se formou em jornalismo pela ECA em algum momento dos anos 1980 e foi trabalhar na Folha, onde ficou até sua morte, no último dia 23, aos 57 anos. Morou em Washington um período com uma bolsa da Fundação Alfred Friendly, aprendeu a escrever em inglês e virou stringer da revista Nature no Brasil. Cobriu a guerra civil no então Zaire na década de 1990, de onde voltou aterrorizado, não com a matança, mas com a malária. “Bicho escroto!”, costumava dizer sobre o plasmódio. Malária era um de seus assuntos favoritos – daqueles que o faziam até entrevistar o pesquisador.
Foi o primeiro a noticiar, também nos anos 1990, as teorias de um jovem antropólogo da USP chamado Walter Neves sobre características australo-melanésias nos fósseis dos primeiros índios brasileiros. Cobriu a histórica conferência do clima de Kyoto, em 1997, e escreveu um relato impagável sobre os delegados dormindo nos sofás do centro de convenções ao final do encontro. Foi várias vezes à Amazônia e pelo menos uma à Antártida.
Mas o que torna a ausência do Bonalume tão grande para o jornalismo brasileiro, e para o jornalismo científico mais ainda, é sua total ausência de superego. O Bona não fazia reverência a ninguém, fossem professores doutores, generais ou seus superiores hierárquicos no jornal. Nos primeiros casos, levava a sério a máxima do jornalismo de questionar a autoridade (e talvez fosse a única coisa que ele levava a sério). No último, ganhava um passe livre por sua competência.
“O atraso é o preço da qualidade”, pontificava, com meia editoria sobre seus ombros às sete e tanto da noite, enquanto produzia suas análises sobre a invasão do Iraque, em 2003, uma das raras ocasiões neste século em que trabalhou dentro da redação.
Com toda a tensão da cobertura especial do conflito, que envolveu uma equipe enorme de várias editorias e enviados especiais a Bagdá que ninguém sabia se estariam vivos no dia seguinte, Bona ainda arrumava tempo para fazer troça: lançou o “desafio do dia”, que consistia em alguém dizer qualquer palavra aleatoriamente e ele daria um jeito de encaixá-la num texto. Das que eu me lembro, entraram “pochete” (falando de equipamentos dos soldados americanos), “sushi” (sobre o Exército iraquiano) e “fios de ovos” (sobre danos colaterais).
Além de irritar os chefes e de dirigir impropérios contra criaturas inferiores que ousavam escrever sobre temas militares sem saber a diferença entre um alfanje e um sabre, Bona tinha como esporte fazer piada com os (e sobretudo dos) colegas. “Ué, cadê fulano?”, repetia sempre que chegava à redação às 19h, em pleno fechamento, e o editor havia ido embora. “Fulano, pintou o cabelo?!”, gritou certa vez a um contemporâneo seu com tendências metrossexuais na frente de toda a editoria. Distribuía apelidos: chamava a si próprio de “Le vieux Boná”; os jovens de vinte-e-poucos da editoria de Ciência eram os “menudos”; o editor (eu), o “pupilão”; Maurício Tuffani virou “Too Funny”; o Reinaldo Lopes, “Petutinho”; e um redator baixinho, “PP”, ou “pequeno pederasta”.
Num país cada vez mais bunda-mole onde a mentira virou regra e onde as pessoas desaprenderam a rir de si próprias, o velho cético fará falta.
Maurício Lopes, um ruralista chique
CONHECI MAURÍCIO LOPES EM 2012, enquanto preparava uma reportagem sobre a crise do etanol brasileiro e formas de sair dela. O recém-assumido presidente da Embrapa me recebeu em seu gabinete para uma conversa longa. Saí encantado: a principal instituição de pesquisa aplicada do Brasil tinha um cientista com C maiúsculo em sua chefia. Um pesquisador que estava disposto a transformar a maneira como a instituição fazia inovação tecnológica, gerando não apenas produtos e dados, mas também cenários e inteligência. No governo Dilma Rousseff, o mais obscurantista e anticiência da Nova República (claro, eu ainda não sabia o que viria pela frente em 2016), ter aquele homem naquele cargo era mais do que um alívio; era um sinal de que o Brasil tinha jeito.
Obviamente não tem. Brasília parece exercer um efeito de Midas reverso sobre as pessoas, transformando o mais revolucionário e promissor gestor público num paladino do status quo. O Maurício Lopes que emergiu neste domingo (11) num artigo de opinião no Correio Braziliense parece estar à beira disso. No lugar do raciocínio baseado em evidências que caracterizou a sólida trajetória acadêmica do presidente da Embrapa, o artigo, intitulado “Fatos e mitos sobre agricultura e meio ambiente”, esbanja justamente aquilo que se propõe a denunciar: “desinformação, análises rasas e preconceito”.
O chefe da mais respeitada instituição de pesquisa agropecuária tropical do planeta é a voz mais recente a engrossar o coro do “agropop”. Trata-se de uma linha de discurso (ou “narrativa”, para usar o clichê da vez) segundo a qual o Brasil é o país mais sustentável do planeta, tem a agricultura mais produtiva e mais conservacionista da Via Láctea e qualquer crítica a essas virtudes é “desinformação, análise rasa e preconceito” – quando não uma defesa mal-disfarçada de interesses de nossos competidores internacionais.
Entre os principais ideólogos do “agropop” estão Evaristo de Miranda, subordinado formal de Maurício Lopes, que pilota a Embrapa Monitoramento por satélite, e o ex-diretor da BRF Marcos Jank. Miranda caiu nas graças da bancada ruralista durante o debate do Código Florestal no Congresso, quando produziu um cálculo amplamente contestado segundo o qual a legislação ambiental inviabilizava a expansão do agronegócio ao retirar terras de produção. Desde então, semeia estatísticas parciais sobre as lindezas do agro brasileiro, municiando autoridades como o ministro da Agricultura, Blairo Maggi.
A escola de pensamento dessa patota postula que o único problema do agronegócio brasileiro é de comunicação. O Brasil, raciocinam, divulga mal todo o esforço que faz pelo meio ambiente, e como resultado vira presa fácil de “desinformados” (o sujeito oculto da frase são ONGs ambientalistas). Fazia falta nesse time alguém que não seja obviamente enviesado, caso de Maggi (um fazendeiro) e Jank (um alto-executivo da agroindústria), e que tenha boa reputação no mundo acadêmico. Maurício Lopes, com seu Lattes inatacável, traz a pátina chique de que o agropop precisava.
Em seu artigo, o presidente da Embrapa começa enunciando uma verdade: toda criança brasileira deveria aprender na escola que o Brasil ocupa no mundo o lugar duplo (e não necessariamente conflitante, acrescento) de país megadiverso e grande produtor de alimentos. É preciso, sem dúvida, ampliar a compreensão dos alunos sobre o papel do país na segurança alimentar e ambiental futura da humanidade.
Só que a partir daí o texto vai ladeira abaixo. Segundo Lopes, “há crescente disseminação de pessimismo e mitos, que inflam os problemas e desqualificam os avanços que o país alcançou na agricultura e na gestão dos seus recursos naturais”. Incrivelmente, ele mesmo dissemina na sequência não um, mais dois mitos sobre o agronegócio e o meio ambiente:
“Todo brasileiro precisa saber que nosso país foi o único capaz de construir uma ousada política pública, o Código Florestal, que tornou obrigatória a conservação de florestas nativas e a proteção de nascentes e margens de rios nas propriedades privadas, o que perfaz 20.5% de toda a superfície do país. E todo mestre precisa informar com orgulho aos seus jovens estudantes que o Brasil é, de longe, a maior potência ambiental do planeta, e que nenhum país chega perto da sua cobertura florestal nativa, que alcança nada menos que 66,3% do nosso imenso território, índice que chega a 80% na Amazônia.”
A visão de que o Código Florestal brasileiro é uma jabuticaba é um boilerplate do agropop. Mas não é bem assim. Na verdade, vários países têm legislações regulando a proteção de florestas em áreas privadas, como mostrou esta nota técnica feita pelo Imazon e pelo Proforest sob encomenda do Greenpeace em 2011. Na França, por exemplo, conversão acima de 4 hectares depende de autorização do governo. No Japão e no Reino Unido, florestas em áreas privadas não podem ser derrubadas. O Código Florestal brasileiro (que, lembremos, não é de 2012, e sim de 1965, e não foi “construído”, mas sim enfraquecido nesta década pela bancada ruralista) tem, de fato, particularidades. Mas o Brasil tem particularidades: é maior produtor agrícola na zona tropical. Não se pode exigir aqui uma legislação como a de países temperados cuja biodiversidade total não chega à de um hectare de uma floresta amazônica.
A famosa cifra dos 66% de vegetação nativa é outro dado que resiste mal ao escrutínio. Lopes deveria saber disso melhor do que ninguém, pois morou num país que tem quase tanta floresta quando o Brasil, a Coreia do Sul (63% do território, segundo o Banco Mundial). Mas há outros: Suécia (69%), Japão (68%), Gabão (89%) e Suriname (98%), para citar apenas alguns. Por essa lógica, será que governantes japoneses vão aos jornais se gabar de serem “a maior potência ambiental do planeta?” Acho que eles preferem vender videogames.
Segue o presidente da Embrapa:
“Acontece que a agricultura dita vilã, ávida consumidora de terras e da maioria das reservas hídricas, não existe no Brasil. Nosso país produz todas as suas lavouras e florestas plantadas em 10% do território e, apesar de detentor de 12% das reservas de água doce do planeta, sua produção de alimentos depende prioritariamente de chuvas. A maioria das nossas fazendas toma emprestada da natureza a água da chuva, que iria aos rios e oceanos, e a devolve limpa, com a evaporação, transpiração e infiltração no solo. O que deve preocupar a sociedade é o impacto da urbanização na gestão dos recursos hídricos.”
O dado dos “10% de lavoura” é um caso clássico de cherry-picking, nome dado ao ato de pinçar um número parcial que favorece a tese de alguém. De fato, a agricultura ocupa cerca de 8% do território brasileiro. Somando as florestas plantadas, chega-se provavelmente a 10%. Mas, ei, Maurício, você não está falando de “produção de alimentos”? Cadê a pecuária na sua conta? Somando-se os cerca de 65 milhões de hectares de agricultura e os 280 milhões de pastagens, tem-se cerca de 33% do território nacional tomado pela “produção de alimentos”. Não é muito nem pouco; é a média mundial. Um número mais próximo dos 38% chamados por Lopes de “média genérica” e “de frágil comprovação” do que de 10%.
Sobre água, antes de dizer que “inexiste no Brasil” a agricultura “consumidora da maioria das reservas hídricas”, Lopes deveria dar uma espiada na Conjuntura dos Recursos Hídricos do Brasil, cuja última edição foi publicada em 2017 pela Agência Nacional de Águas. O relatório põe a irrigação como maior usuário de água do país, com 969 metros cúbicos por segundo em 2016. É mais do que a soma de todos os outros usos, excluindo a pecuária. É fato que a maior parte das propriedades do país (que são da agricultura familiar) depende da chuva. Mas quão limpa essa água é devolvida é objeto de debate: como maior consumidor do mundo de agrotóxicos (não por perversidade, mas simplesmente pelo fato de sermos um grande país agrícola tropical, muito mais sujeito a pragas que EUA e China) e um dos maiores consumidores de fertilizantes, o Brasil tem índices altos de poluição por pesticidas e nitratos em algumas bacias. Um estudo da própria Embrapa de 2014, por exemplo, detectou resíduos de diversos agrotóxicos em medições realizadas em todas as regiões do país, embora tenha alertado para a escassez de monitoramento.
Sobre mudança climática, Lopes parece espantosamente mal brifado:
“Mudança climática é outro tema frequentemente usado para se criticar o Brasil de forma injusta. Nossos pesquisadores e produtores constroem hoje a próxima revolução da agropecuária tropical, com sistemas integrados capazes de operar 365 dias por ano, ciclando lavouras, pecuária e floresta, em modelo inédito de produção sustentável de baixa emissão de carbono. O ministro Blairo Maggi apresentou, durante encontro de 70 ministros da agricultura ocorrido em Berlim, em janeiro de 2018, processo inédito de produção de “carne carbono neutro”, uma resposta concreta do Brasil à cruzada global contra a pecuária bovina. O nosso país já é líder global no uso do plantio direto, da fixação biológica do nitrogênio e dos sistemas integrados de produção, tecnologias que nos colocam na vanguarda do desenvolvimento da agricultura de baixa emissão de carbono.”
Vamos aos números. Mas antes um disclaimer: eu trabalho para a rede de organizações que produz os dados, cuja metodologia é aberta e que são tão sólidos que são utilizados até mesmo por pesquisadores do governo. Em 2016, último ano para o qual há estimativa, o Brasil emitiu 2,278 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (sétimo maior emissor do mundo). Desse total, 51% foram causados por desmatamento (para produção agropecuária ou especulação fundiária para agropecuária) e 22% diretamente pela agropecuária (pelo consumo de fertilizantes e pelo metano do rebanho, o popular “arroto do boi”). Portanto, 1,6 bilhão de toneladas de gases de efeito estufa emitidos em 2016 estão na conta do agro. É mais do que tudo o que o Japão emite em um ano.
Dito isso, esses números não são uma sentença. Zerar o desmatamento e produzir nas terras já abertas é possível, desejável e barato. E há vasta literatura científica mostrando que é possível produzir carne sequestrando carbono, ao recuperar pastagens degradadas. Só que para isso é preciso investimento. E, em que pese o marketing da carne “carbono zero” do ministro Maggi, neste momento ela ainda é uma espécie de clean coal brasileiro: os investimentos no programa de agricultura de baixo carbono não chegam a 2% do Plano Safra. No ritmo atual, o Brasil não cumprirá nenhuma de suas metas de recuperação de pastagens.
Maurício Lopes continua sendo um cientista com C maiúsculo, e sorte da Embrapa ter um presidente assim. Mas, em nome do próprio currículo, deveria pensar melhor antes de pular no carro de boi conduzido por seu chefe.