Como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar o CO2
“HELLO, DIMITRI.”
A guerra fria contra o aquecimento global assistiu nesta terça-feira a um duelo entre as superpotências que faz lembrar o clássico “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick. De um lado, os Estados Unidos, liderados por um presidente bonzinho, mas cercado de filhos da puta gente astuciosa e premido pelas circunstâncias a fazer o pior possível. Do outro, a Rússia, dando uma lição de malemolência, brilhantismo político e mau-caratismo no rival. Cada um do seu jeito, e meio sem querer, os dois países acabam convergindo para um único fim: garantir um futuro sombrio para a humanidade.
Para quem não se lembra do filme de Kubrick, a trama se passa nos anos 1960. Um general americano enlouquece e ordena um ataque nuclear à União Soviética. O presidente dos EUA (Peter Sellers, impagável), reúne seu alto comando e o embaixador russo na ficcional Sala de Guerra da Casa Branca e descobre que ele mesmo havia assinado, sem saber, o protocolo para ataques do tipo. Ele tenta uma ligação pelo telefone vermelho com o premiê soviético, que no entanto está mais interessado em vodca e mulheres do que nos altos destinos da humanidade. O embaixador, que até então vinha tentando espionar as entranhas do inimigo, revela que qualquer ataque ao território soviético dispararia a temida Arma do Juízo Final, que os falcões de Washington achavam que fosse mentira. Spoiler: o ataque acontece.
A corrida vista hoje entre EUA e Rússia teve declaradamente um fim mais nobre: evitar que as mudanças climáticas descontroladas acabem com a civilização como a conhecemos. Os Estados Unidos, seguidos pela Federação Russa, registraram junto à Convenção do Clima da ONU suas propostas de Contribuição Nacionalmente Determinada, ou INDC. Trata-se de uma carta de intenções que todos os países-membros das Nações Unidas foram convidados a enviar contando qual será sua contribuição para evitar o aquecimento global perigoso no período 2020-2030, quando deverá vigorar o acordo do clima a ser assinado em Paris no fim deste ano. As duas metas são fruto de uma fantástica arquitetura política. E as duas são receitas seguras para disparar antes do fim deste século uma espécie de Arma do Juízo Final – a bomba de CO2.
A meta americana consiste em reduzir as emissões do país entre 26% e 28% até 2025 em relação aos níveis de 2005. O país é o principal responsável pelo aquecimento global observado hoje e a principal economia do mundo; sua redução em 2025 teria de ser de 132% abaixo dos níveis de 1990 para ser justa com o mundo, segundo a Calculadora de Referência de Equidade Climática. Ainda mais considerando que o país aumentou suas emissões entre 1990 e 2005 de 6,2 bilhões para 7,3 bilhões de toneladas de CO2 por ano, usar a segunda data como referência para a meta é quase um crime de guerra. Em 2025, se tudo correr como previsto na meta, os EUA estarão emitindo mais de 5 bilhões de toneladas por ano, ou 3,3 vezes o que o Brasil emite hoje.
Isso não significa que os americanos estejam agindo de má-fé com sua INDC. Ao contrário: o presidente Barack Obama precisou rebolar para aprová-la, já que os falcões do Congresso americano, como o Estado-Maior do filme de Kubrick, acham até hoje que a Arma do Juízo Final de CO2 é uma “fraude” montada pelos “comunistas” para “eliminar os empregos na América”. Em seu primeiro mandato, Obama tentou (sem tentar de verdade) e não conseguiu aprovar uma lei ampla de clima. Desta vez, resolveu passar por cima dos republicanos céticos do clima e assumiu compromissos de redução que podem ser implementados apenas com regulações do Executivo, sem necessidade de apoio do Congresso. Daria para fazer um tanto mais, mas não muito mais do que isso. Infelizmente, os EUA são uma “democracia”, e democracia tem dessas coisas: 40 senadores podem decidir ferrar com 7 bilhões de pessoas. Viva a democracia.
Já a Rússia, que só alguém bêbado de vodca poderia chamar de democracia, apresentou uma INDC de um cinismo extraordinário, mas possivelmente mais esperta que a dos americanos. Os russos se propõem a cortar de 25% a 30% de suas emissões de CO2 em relação a 1990, mas afirmam que isso está “sujeito à máxima capacidade de absorção possível das florestas”. Em português claro: não vamos cortar um litro de óleo sequer, só deixaremos que nossas imensas florestas boreais cresçam e sequestrem carbono.
Assim como os EUA, os russos praticam uma tremenda filhadaputice manipulam as datas-base de acordo com o que lhes interessa. Em 1990, o país emitia quase 3,5 bilhões de toneladas de CO2. Em 2000, as emissões haviam despencado mais de 50%, para cerca de 2 bilhões de toneladas. O que aconteceu? Bem, a Guerra Fria acabou e a URSS quebrou. Com a depressão econômica veio a queda nas emissões de carbono. Portanto, ao dizer que vão chegar em 2030 emitindo 30% a menos do que em 1990, os russos estão realmente querendo dizer que vão aumentar suas emissões para quase 3 bilhões de toneladas/ano, quando deveriam reduzi-las a 500 milhões se quisessem mesmo evitar um aquecimento global maior do que 2 graus Celsius neste século.
A lógica política desta submissão pífia neste momento pode estar na Ucrânia: o vilão de filme de James Bond que comanda a Mãe Rússia anda precisando pagar de bom moço para aliviar a imagem desgastada com o massacre que promove na Ucrânia e com o “misterioso” assassinato de seu principal adversário político. Além disso, com o petróleo a US$ 50, a Rússia pode estar querendo fazer um “hedge” e negociar alguma facilidade para si no futuro. Daí o sentido daquele que para mim é o principal trecho da INDC russa: “No entanto, a decisão final da Federação Russa sobre a INDC (…) será tomada de acordo com o resultado do processo de negociação em curso no ano de 2015 (…)” Como bons políticos, e ao contrário dos americanos, os russos deixaram uma porta aberta para barganhar. Dificilmente, porém, larga o suficiente para evitar que a bomba de CO2 caia sobre as nossas cabeças neste século.
No filme de Kubrick, o impasse é resolvido pelo Dr. Strangelove (também vivido por Peter Sellers), um cientista nazista emigrado que aconselha o presidente Merkin Muffley a encarar o apocalipse iminente à la Marta Suplicy: relaxe e goze. A gente constrói uns abrigos, enche de mulher e uísque e fica de boa.
Talvez seja mesmo a única coisa a fazer diante do atual teatro de operações da política internacional de clima.
O impacto ambiental da lista de Janot
NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2011, quando o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) prometeu para junho a licença de instalação da hidrelétrica de Belo Monte, várias sobrancelhas se levantaram. O Ibama acabara de soltar um relatório dizendo que a maioria 40 condicionantes da licença prévia da usina não estavam nem no meio do caminho de ser cumpridas. Pelo rito normal, não haveria hipótese de Lobão prometer a licença, muito menos de marcar uma data. Como sabemos, porém, o licenciamento aconteceu, no prazo previsto. As condicionantes, que já se arrastavam desde a licença prévia, obviamente não foram cumpridas, mas Belo Monte aconteceu de qualquer forma. Na última sexta-feira, o Brasil começou a vislumbrar por quê: Lobão aparentemente tinha bons motivos para botar pressão na obra. Dez milhões de bons motivos, para ser preciso.
A denúncia dos delatores da Lava Jato de que o então ministro do PMDB, partido que controla o setor elétrico no país, havia levado R$ 10 milhões em propina na obra de Belo Monte, de um total de R$ 100 milhões pagos apenas pela Camargo, tornou explícito algo que até os cascudos dos pedrais do rio Xingu sempre souberam, mas que até agora ninguém nunca teve como provar: grandes obras desse tipo, que violam a legislação, o meio ambiente, a ordem econômica, os direitos humanos e o bom senso, são montadas para gerar caixa antes de gerar energia.
Ressalte-se que Lobão está sendo apenas investigado neste momento: delações premiadas são, afinal, obras de criminosos confessos, e contradições entre depoimentos de delatores têm emergido na Lava Jato. Mas, mesmo que se revelem uma fantasia, as declarações de Dalton Avancini, executivo da Camargo Corrêa e suposto pagador da propina, são tão verossímeis que colocam holofotes sobre licenciamentos feitos a patrola e toque de caixa para projetos de baixa viabilidade econômica e alto custo socioambiental, cuja pressa não encontre justificativa na realidade.
A prisão dos empreiteiros envolvidos no propinoduto da Petrobras, claro, deixou todas as obras de infraestrutura no Brasil sob suspeita, ao mostrar o que move licitações, concessões e licenças. A lista de agentes públicos entregue ao STF pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apenas amarra as pontas. E pode fazer um favor imenso ao meio ambiente no Brasil.
A empreiteira Camargo Corrêa, cujo presidente encontra-se em cana, é também uma das favoritas para construir a nova megapolêmica hidrelétrica do Brasil: São Luiz do Tapajós, em Itaituba (PA), que já teve seu calendário de licitação definido antes mesmo dos estudos de impacto ambiental. A Camargo fez, com grana da Finep, o inventário do potencial da bacia do Tapajós, e é natural que entre na “disputa” para a obra. “Disputa” entre aspas, porque agora sabemos também, graças ao juiz Sérgio Moro, que não impera exatamente um modelo de livre concorrência entre empreiteiras. Com o Belo Monte de merda que a construtora jogou no ventilador, São Luiz e as outras seis ou sete usinas rio acima no Tapajós e no Jamanxim podem ganhar um bem-vindo freio de arrumação. E é bom que seja assim, porque o governo pretende empatar algo em torno de R$ 30 bilhões no projeto, que ainda corre o risco de ficar sem água para gerar energia durante seu tempo de operação.
As denúncias sobre o canal de derivação de recursos públicos construído em Belo Monte somam-se a aflições outras do PAC, o Programa de Aceleração do Correntão. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, já mandou avisar que acabou a mandracaria fiscal do programa, pela qual despesas com a rubrica PAC eram deixadas imunes a contingenciamento. A operação de multiplicação de recursos do Tesouro repassados ao BNDES e oferecidos às empreiteiras a juros de pai para filho, que todo mundo sabia que era insustentável, pode ter encontrado em Levy seu limite. Dado o contexto de barata-voa em Brasília, o ministro poderá aproveitar (e estou especulando aqui) para tesourar parte do avanço sobre a Amazônia, projetado em R$ 212 bilhões em obras públicas e privadas.
O outro lado dessa história é que a chance de o governo Dilma se engajar de forma robusta no esforço político de mitigar a mudança climática, na preparação para a conferência de Paris, cai a níveis muito próximos (mas mesmo assim diferentes) de zero. Recessão, inflação, aperto fiscal e débâcle política interna são a receita ideal para a inação no clima, mesmo que agir signifique uma oportunidade de retomar o crescimento gerando empregos.
A esperança é que Dilma perceba que seu governo precisa desesperadamente de boas notícias e que um choque de economia verde pode provê-las. Mas, como diz o ditado, de onde menos se espera é que não sai nada, mesmo.