Será que Elon Musk assassinou o pré-sal?

tesla model3

 

NÃO OLHE AGORA, mas Elon Musk pode ter acabado de ferir de morte o sonho do Brasil de virar uma petropotência.

A Tesla, empresa de veículos e baterias de Musk, lança nos próximos dias o seu aguardado Modelo 3, primeiro veículo de massas da marca. É um sedã elétrico médio, que vai de zero a cem em 6 segundos e roda 346 quilômetros com uma carga de bateria. Já seria sensacional, mas espere até saber o preço da belezinha: US$ 35 mil, e isso sem os descontos de impostos que carros elétricos têm em vários lugares da Europa e dos Estados Unidos. Meu filho mais novo, fanático por carros, me conta que o preço de entrada do bicho no Brasil é R$ 110 mil. Tenho dúvidas, por causa do câmbio e do hábito do nosso empresariado de triplicar o preço de qualquer veículo importado aqui, o que produz bizarrices como transformar o Smart num carro de luxo. Mas, por amor ao debate, vamos assumir que o Modelo 3 chegue por R$ 130 mil.

É muito dinheiro. É um dinheiro que eu não tenho. Por essa grana eu compraria uma picape Audi Q3, ou qualquer outro desses carros beberrões lindos da Kia. Ocorre que o Modelo 3 está irremediavelmente condenado a cair de preço. E, quando isso acontecer, eu vou me endividar para comprar um, e desconfio que muita gente fará o mesmo. Espero que Musk tenha planos para expandir a produção rapidamente.

A conta é simples: hoje eu dirijo um Focus 2009 a gasolina (Cinco minutinhos para vocês xingarem minha hipocrisia. Pronto? OK, adiante). Tento mantê-lo regulado, mas seu motor já viu dias melhores e hoje faz, pelas minhas contas, algo em torno de 8 ou 9 quilômetros com um litro — mais ou menos a mesma autonomia de um Tesla 3. Toda semana eu preciso abastecer, e olha que eu trabalho em casa e meu único deslocamento obrigatório no dia é o trajeto até a escola do caçula, a menos de 15 km de casa. Isso me dá um gasto anual, com combustível apenas, de R$ 7.000, com a gasolina a preços de hoje.

Se eu tivesse dinheiro para trocar de carro e comprar um Focus zero, gastaria algo em torno de R$ 90 mil. Com o que eu economizaria de combustível, levaria seis anos para pagar a diferença entre o preço do Focus e os R$ 130 mil do Tesla. Ainda não vale a pena: é um período maior que o prazo de financiamento da maioria dos bancos. Mas e se o Modelo 3 custasse a mesma coisa? Considerando um financiamento de 60 meses, somente a economia de combustível me daria R$ 30 mil para gastar no Tesla, assumindo que o preço da gasolina vá permanecer constante por cinco anos. Ou seja, estaria comprando um carro de R$ 90 mil, mas “pagando” um de R$ 60 mil.

Essa é a lógica matadora do carro elétrico. Hoje os felizes proprietários de veículos entram no financiamento sabendo que, ao pagar a última prestação, terão perdido dinheiro, porque o bem se desvaloriza. O elétrico muda essa equação ao botar dinheiro no seu bolso (isso sem contar o custo menor de manutenção, já que o motor tem menos partes móveis). Repare que eu não falei nada sobre poluição ainda. O Modelo 3 vai tirar o motor a combustão interna do mercado porque ele é um bom negócio para o proprietário, não para o planeta. Na boa, que se dane o planeta.

Na semana passada, a revista Business Insider comparou o veículo de massas de Elon Musk ao iPhone, em termos das perspectivas de mercado que ele abre e da transformação nos hábitos do consumidor que ele enseja. Notícias recentes parecem corroborar essa avaliação: nos últimos dias, a Volvo, que meu caçula idolatra pelos carros luxuosos, potentes e não necessariamente econômicos, anunciou que não fará mais nenhum carro puramente a combustão interna a partir de 2019. Daqui a dois anos, portanto, todos os veículos novos da montadora sueca serão híbridos ou elétricos. A França anunciou na mesma semana que a partir de 2040 nenhum veículo a gasolina ou diesel será vendido no país (empresas francesas já entenderam o recado e hoje tentam empurrar a sucata dos carros a diesel para o Brasil). Na última quinta-feira, porém, o banco holandês ING tratou de desmentir o anúncio – como excessivamente conservador: segundo a instituição, todos os carros novos vendidos em toda a Europa serão elétricos ou híbridos já em 2035.

A data ecoa uma previsão feita neste ano pelo Carbon Tracker e pelo Grantham Institute, o think-tank britânico pilotado pelo economista Nicholas Stern. No relatório intitulado Espere o Inesperado, as duas instituições afirmam que os carros elétricos representarão 35% do mercado de transporte rodoviário em 2035, e responderão por 70% dos veículos do mundo em 2050. O prazo contabiliza o tempo de vida dos carros a combustão, o que significa que os elétricos dominarão as vendas de veículos novos muito antes disso. Segundo o relatório, os veículos elétricos atingirão a paridade de custo com os convencionais já em 2020.

O estudo do Grantham vai ao cerne da questão ao apontar que todos os modelos econômicos que projetam a adoção e a disseminação de tecnologias de baixo carbono como o carro elétrico estão defasados. Esses modelos, como o da petroleira britânica BP, o da Agência Internacional de Energia e o da Bloomberg New Energy Finance assumem uma trajetória de adoção quase linear – que não reflete a realidade do mercado consumidor. A BP, por exemplo, estimou neste ano que em 2035 os elétricos representarão apenas 6% do mercado de veículos. Pelo visto a empresa é tão boa em projeções de mercado quanto em segurança de perfurações submarinas.

O conservadorismo dos modelos decorre da incapacidade dos analistas dessas instituições de lidar com tecnologias disruptivas. O futurólogo americano Ray Kurzweil documentou bem a evolução deste tipo de tecnologia no seu chatésimo, mas relevante livro The Singularity is Near. Segundo Kurzweil, a evolução de paradigmas tecnológicos se dá de forma exponencial (o crescimento multiplicado por uma constante) e não linear (o crescimento acrescido de uma constante). Só que nos primeiros estágios do crescimento exponencial não é possível detectar a aceleração: ela só fica clara em seu padrão explosivo quando se atinge o “joelho” da curva de crescimento.

É provável que o carro elétrico e outras tecnologias de baixo carbono, como os painéis solares, estejam se aproximando do “joelho” da curva; quem olha para trás vê uma tendência razoável de crescimento, mas nada que abale as estruturas – por conseguinte, as projeções para o futuro são mais ou menos lineares. O resultado disso é que projeções como a da BP já não refletem a realidade no terreno hoje.

A Bloomberg aparentemente está se ajustando ao mundo real: em seu novo relatório sobre energias renováveis, publicado em 6 de julho, eles fazem uma projeção de adoção de carros elétricos mais alinhada com a do relatório do Grantham Institute – mas ainda assim mais conservadora: a paridade de custo com o motor a combustão seria atingida em 2025, e em 2040 33% dos carros seriam elétricos. No mesmo ano, os elétricos responderiam por 54% das vendas de veículos novos.

Se Kurzweil estiver certo, porém, o próprio Grantham poderá ser acusado daqui a alguns anos de ter sido conservador demais. As vendas do Tesla Modelo 3 darão a resposta: se ele se comportar mesmo como o iPhone, os carros a combustão interna serão aposentados antes do que todo mundo pensa.

Para o Brasil, a notícia é péssima, já que o país há quase uma década fez a aposta no petróleo como alavanca preferencial de desenvolvimento econômico.

Os planejadores de energia tapuias assumem que a demanda por petróleo no mundo está mais ou menos dada até o meio do século. O pré-sal, por ter um petróleo de alta qualidade e de custos de extração relativamente competitivos, deslocaria óleo pesado de concorrentes como a Venezuela, sem necessariamente causar um aumento global nas emissões de carbono. Nada no rumo oficial da política energética brasileira parece vislumbrar o tombo que pode ocorrer nos próximos anos caso os veículos elétricos decolem como o bom senso e a aritmética indicam que decolarão.

Ao contrário: o Plano Decenal de Energia 2026, recém-colocado em consulta pública pela Empresa de Pesquisa Energética, é uma ode teimosa ao passado. Prevê que mais de 70% dos investimentos na matriz energética brasileira ainda sejam feitos em fósseis, cifra virtualmente inalterada em relação ao último plano, publicado em 2016. Sobre os carros elétricos, o PDE 2026 faz uma avaliação arrogante:

Ainda que haja um movimento global para a adoção de novas tecnologias veiculares, cabe ressaltar que as transições energéticas são processos usualmente lentos, como revela a história da indústria de energia.
No Brasil, em particular, há aspectos específicos que sugerem uma transição energética ainda mais tardia na indústria automotiva, entre os principais:
• O elevado preço de aquisição de veículos híbridos ou elétricos, já que os modelos comercializados, mesmo com incentivos, têm preços de venda ao consumidor entre R$ 115 a 250 mil, em média (Carros UOL, 2015).
Até dezembro de 2016, haviam sido licenciados no total acumulado no país menos de 3,5 mil veículos híbridos e elétricos (ANFAVEA, 2016);
• A preferência revelada pelo consumidor nessa faixa de preços é por maiores e luxuosos como SUVs, Pick ups (caminhonetes), furgões e sedans médio de luxo (FEBRANAVE, 2015), com características bem
distintas daquelas dos veículos híbridos e elétricos -em geral, veículos de menor porte. É possível que estes se restrinjam, por algum tempo, a um nicho de segundo veículo para faixas de renda mais elevadas. Assim, haveria limites, além do preço, no potencial de mercado desses veículos;

Por fim, conclui o PDE, esses carros só conseguem competir hoje graças a subsídios e incentivos governamentais, e, mesmo que o governo brasileiro fosse criar algum programa de incentivo desse tipo, argumenta a EPE, este se voltaria ao “desenvolvimento de uma plataforma de veículo híbrido flex fuel”.

Em resumo, o que o PDE faz é ignorar deliberadamente o carro elétrico, olhando para trás na curva de crescimento e assumindo que nada vá mudar daqui a dez anos. É de uma miopia assustadora. Pior do que isso, sinaliza o desprezo a uma tecnologia que já está no mercado em favor do desenvolvimento de uma fantasia, o tal “híbrido flex”. Não vai acontecer, amigues. Sou capaz de apostar um ingresso para um show do Iron Maiden com o presidente da EPE como o motor a explosão estará morto antes de o primeiro híbrido flex de passeio entrar numa concessionária. Se é que alguma empresa automobilística colocaria dinheiro no desenvolvimento dessa sandice. Como o dirigismo estatal dilmista no setor energético parece felizmente estar enterrado, o híbrido flex é um sonho difícil de se materializar.

Ignorar a bola tecnológica da vez em favor de cavalos mancos não será a primeira cagada da nossa energocracia. O Brasil desprezou a energia eólica durante muito tempo, perdeu o bonde da solar – uma das indústrias que mais crescem e geram emprego na economia mundial – e até mesmo o etanol, onde o país tinha a faca e o queijo na mão, foi ignorado em favor da miragem do pré-sal (a década perdida com isso entre 2007 e 2016 dificilmente será recuperada, por mais que sonhem os defensores do RenovaBio).

Agora, o Brasil aposta que vai vender etanol e petróleo para o mundo todo por muitas décadas e que nesses dois produtos está o tão sonhado “passaporte para o futuro”. Vai quebrar a cara. A demanda mundial por óleo para veículos leves deve despencar nos próximos anos. O álcool tem algum futuro na aviação e no transporte de carga, mas isso só até Elon Musk inventar uma bateria para caminhões. Salvo algum programa nacional de salvação do transporte fóssil ou de restrição governamental ao carro elétrico, – e tenho certeza de que a Anfavea está trabalhando nisso dia e noite –, a demanda nacional por motores a explosão também vai cair. Como dizem os americanos, a escrita está no muro.

O governo brasileiro deveria estar em pânico com outra coisa: um tombo permanente na indústria do petróleo seria devastador para a economia nacional. Tivemos um vislumbre do que isso pode significar olhando a situação atual do Rio de Janeiro: a crise na Petrobras e a queda no preço do barril nos últimos anos arrasaram as finanças do Estado. Isso, por sua vez, se reflete no noticiário policial. O Rio voltou a ser aquele lugar dominado pelo tráfico, onde bebês são mortos por balas perdidas na rua e para onde as pessoas têm medo de viajar.

O país inteiro deveria tomar a situação fluminense como um cautionary tale e pensar no que fazer para manter o Estado e boa parte da economia nacional funcionando e as pessoas empregadas depois que o petróleo se for. Olhar para o passado e assumir o mesmo estado estacionário para o futuro é péssima política, péssima economia e a encomenda certeira de um desastre social.

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