Um cinco-estrelas na Antártida
COMEÇOU ONTEM em Brasília algo que pode ser descrito sem exagero como a maior reunião de condomínio do mundo: os 61 países que administram os 13 milhões de quilômetros quadrados do continente antártico, única porção de terras no mundo ocupada sem derramamento de sangue (humano), juntaram-se para uma conferência de dez dias. Nesse período, diplomatas, burocratas de governo, militares e cientistas debaterão questões que vão de normas de preservação ambiental até o impacto do crescente turismo antártico sobre os pinguins.
É a primeira vez que Brasília sedia uma reunião do ATCM (sigla em inglês para Conselho Consultivo do Tratado da Antártida) desde a criação do secretariado do tratado, no começo da década passada. Sem muito o que exibir à guisa de cartão de visitas, o Brasil apostou no futuro: está tentando convencer os vizinhos do prédio de como ficará sensacional a reforma que está fazendo no seu apartamento. No caso, de como ficará linda a nova Estação Antártica Comandante Ferraz, principal instalação brasileira no continente, prevista para entrar em operação em 2016.
A Marinha, responsável pela logística do Programa Antártico Brasileiro, tratou de organizar um showroom da nova estação. E showroom é a palavra: uma exibição no saguão do Centro de Convenções Brasil-21 (o mesmo que recebeu Barack Obama), com direito a modeletes de tailleur guiando os (rarefeitos) visitantes e a uma visita virtual à nova estação, numa projeção em várias telas na qual o espectador se sente realmente no local. Um desavisado realmente poderia achar que está numa propaganda para investidores de um projeto de novo hotel cinco estrelas em fase de captação de recursos.
No Autocad, a Ferraz do futuro é de fato um espetáculo: módulos compridos assentados sobre pilotis imensos, 15 saídas independentes para facilitar a evacuação em caso de incêndio, geradores eólicos fornecendo energia. Me incomodou o fato de a visita virtual começar pelo refeitório e terminar pelos laboratórios – afinal, é um programa científico, ou não? Mas isso sou eu. O projeto, feito por um grupo de jovens arquitetos de Curitiba, é classe mundial e teve pitacos à vontade da comunidade científica, que costuma queixar-se de nunca ser ouvida pelo pessoal da Marinha. Se houve um saldo positivo no trágico incêndio que destruiu a estação em fevereiro de 2012 e matou duas pessoas, este foi a mobilização criada no Programa Antártico em torno da reconstrução. A retomada uniu as duas culturas que convivem em sobreposição de estados no Proantar sem nunca se misturarem de verdade, os acadêmicos e os militares. Foi bonito de ver.
Acontece que uma série de dúvidas começaram a pairar sobre o futuro da estação. A mais imediata é se o calendário será cumprido ou se Ferraz está destinada ser construção e já ruína, a exemplo do Veículo Lançador de Satélites. As obras deveriam começar no próximo verão, mas a licitação de R$ 145 milhões aberta pela Marinha terminou sem interessados, como revelou em fevereiro Giuliana Miranda na Folha de S.Paulo. Fontes ligadas ao projeto me apontaram em março que a razão alegada pelas empresas foi o preço baixo do metro quadrado, US$ 12 mil. Projetos na Antártida, devido aos riscos logísticos, costumam custar bem mais do que isso — até US$ 20 mil o metro quadrado. Uma nova licitação, internacional, deverá ser aberta pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, que pilota o Proantar. O custo estimado do novo projeto passa da R$ 175 milhões. Por mais que os militares sejam organizados, eles terão de comer um dobrado para vencer o cipoal burocrático brasileiro e botar a licitação na rua (com todos os quilos de certidões e traduções de certidões que um processo desse tipo exige) até junho. Depois disso, como é ano eleitoral, o governo fica proibido de celebrar contratos. E aí leia mais em 2015.
Mas espere um minuto: R$ 175 milhões, você disse? E haverá dinheiro? Outra dúvida fundamental. Ano que vem, como sabemos, será ano de ajuste fiscal, e do brabo. Não é difícil imaginar uma situação na qual programas científicos e de defesa sejam mantidos respirando por aparelhos. O Programa Antártico pertence a essas duas infelizes categorias que costumam ser alvejadas pelo Planejamento no primeiro corte. Veja o caso do VLS-1, que também passou por um incêndio (muito maior e muito mais custoso em vidas que o de Ferraz) em 2003 e até hoje, uma década depois, não foi finalizado. Nesse ínterim, o design do foguete ficou obsoleto e o Ministério da Ciência e Tecnologia tentou bypassar a Aeronáutica, que desenvolvia o VLS, apostando suas fichas (e sua grana) num desastrado projeto de cooperação com a Ucrânia, aquela província rebelde da Rússia que está para ser reincorporada. O VLS, programa de importância estratégica inquestionável, é construção e já ruína, como diria Caetano. Ferraz corre o mesmo risco?
Diante disso, alguns membros do Proantar já começam a se perguntar se não seria melhor baixar a bola da nova estação. Uma ideia seria manter no sítio de Ferraz uma estação-puxadinho, na forma dos Módulos Antárticos Emergenciais (MAE), produzidos pela empresa canadense Weatherhaven. Os MAE são contêineres mobiliados montados no verão de 2013 e que começaram neste verão a receber pesquisadores. Hoje eles estão montados no antigo heliponto de Ferraz, que sobreviveu ao incêndio. Eu dormi uma noite neles em março, a convite do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Eles são assim:
E são razoavelmente decentes por dentro também:
Considerando que algo entre 70% e 90% dos projetos de pesquisa do Proantar acontecem fora da estação, em navios, acampamentos ou nos módulos Criosfera instalados no interior do continente, em tese seria possível manter a pesquisa funcionando nos MAE indefinidamente. A ciência polar brasileira ficou muito maior que Ferraz. Os módulos foram feitos para durar cinco anos, mas a engenheira Nathália Guimarães, da Weatherhaven, que esteve comigo na estação em março, disse que a experiência tem demonstrado que eles duram o dobro. O programa polar canadense mantém uma estação no Ártico feita de módulos Weatherheaven sem a menor crise. Será que nós precisamos de um cinco-estrelas quando os puxadinhos resolvem? Não seria mais sábio usar essa grana, ou o pedaço dela que vier, para reformar navios, comprar aviões novos (os Hércules da FAB estão pedindo penico) ou até montar uma segunda base em outro lugar?
Se o Proantar fosse um programa 100% civil e Ferraz fosse uma estação na qual meia dúzia de cientistas passassem três meses por ano e fossem embora depois, definitivamente não haveria necessidade de gastar tanto por tão pouca ciência. Acontece que a natureza do programa brasileiro demanda que dez militares passem o ano inteiro vivendo ali. E, companheiro, um ano com banheiros de cortina de lona e sem espaços privados deve ser dureza. A Marinha também acha que qualquer coisa menor que uma base permanente “de alvenaria” em Ferraz fragilizaria o Brasil geopoliticamente diante dos demais membros do Tratado da Antártida. O argumento faz sentido, mas acho que vergonha maior seria bater o bumbo que estamos batendo no ATCM e não conseguirmos cumprir a promessa da nova estação depois. O que será que os contribuintes têm a dizer a esse respeito?
Salvamos mesmo as baleias?
A NOTÍCIA DO ANO na área ambiental veio ontem de Haia: a Corte Internacional de Justiça deu ganho de causa à Austrália numa ação movida em 2010 que visava proibir a caça “científica” de baleias que o Japão pratica anualmente nos mares antárticos. A decisão, publicada ontem no site da corte, determina a suspensão imediata das atividades baleeiras japonesas no Oceano Austral. É um documento de 22 páginas de juridiquês denso, que diz basicamente que os resultados da tal ciência letal são xexelentos demais para justificar a morte de centenas de baleias por ano. Um dos argumentos dos magistrados é matador. Poderia ser resumido assim: “Ô, seu Japão, se vocês estão só fazendo pesquisa, por que mesmo levam um navio-fábrica para picar e embalar as baleias no próprio local dos ‘estudos’ e deixá-las prontinhas para o comércio?” Perdeu, mermão. A demanda australiana foi considerada procedente por 12 votos a 4. O primeiro juiz a apresentar voto contrário foi um tal Hisashi Owada. Mera coincidência.
Como não são malucos de descumprir decisões judiciais, os japoneses baixaram a cabeça e disseram que vão parar o programa, que em 18 anos já matou 6.700 baleias minke, mais um monte de baleias-fin, jubartes e cachalotes num lugar que, tecnicamente, é um santuário para baleias.
Então é isso? Enfim salvamos as baleias? Podemos agora por favor discutir coisas mais importantes, como a guerra na Síria, a ocupação da Ucrânia e a CPI da Petrobras? Os australianos podem ser elevados à categoria de heróis do meio ambiente por sua coragem de processar os japas malvados e acabar com uma das violações mais hipócritas do direito internacional de que se tem notícia?
Não necessariamente. Primeiro, porque a Austrália não entrou na CIJ contra o Japão porque gosta de baleias, mas sim porque há grossos interesses nacionais envolvidos, como lembra meu amigo Reinaldo José Lopes numa boa análise hoje na Folha de S.Paulo. Um deles é a clamada soberania nacional australiana sobre parte do Oceano Austral. A Austrália acha (mas só ela) que aquele pedaço de mar é sua zona econômica exclusiva, embora todas as pretensões territoriais sobre a Antártida estejam congeladas (doh!) até 2048 por um tratado internacional. Também importante é a conservação de estoques de jubartes que mantêm o turismo de observação na Austrália e que usam o Oceano Austral todo ano como zona de alimentação. E o ganho de poder e prestígio da Comissão Internacional da Baleia (CIB), que se reúne em setembro na Eslovênia.
Depois, porque o fim da caça científica pode produzir o efeito oposto do que os países conservacionistas desejam: ela pode ser o gatilho que faltava para a retomada da caça comercial de baleias, suspensa por uma moratória decretada pela comissão em 1986.
A CIB é dividida entre países caçadores (Japão, Noruega, Islândia e quem mais eles conseguem cooptar) e conservacionistas (basicamente o resto do mundo, mas com forte liderança de EUA, Austrália e Nova Zelândia). Seu objetivo primário inicialmente nunca foi proteger baleias, mas evitar o cenário de “free for all” da caça comercial que levou esse grupo de cetáceos quase à extinção — o que iria contra os interesses dos próprios caçadores. A moratória foi criada para permitir aos estoques se recuperarem para uma eventual reabertura, em moldes “sustentáveis”. Para isso criou-se um instrumento legal chamado RMS, ou esquema de manejo revisado, que permite a caça, dentro de limites e com uma série de salvaguardas.
Hoje a caça comercial só é praticada abertamente pela Noruega e pela Islândia. Esses países se reservaram o direito de ignorar a moratória em suas águas territoriais. Indígenas do Ártico têm cotas anuais de caça na Rússia, no Alasca, no Canadá e na Groenlândia, por exemplo. A única caça praticada internacionalmente e em larga escala era justamente a japonesa na Antártida, sob a (agora é oficial) desculpinha barata de “pesquisa científica”.
Os conservacionistas sempre exigiram como precondição para a reabertura da caça a aprovação do RMS (a que o Japão sempre se opôs, porque não queria ser regulado nem monitorado) e a suspensão da caça científica japonesa. Em 2010, a CIB chegou a debater uma proposta de reabertura, com cotas menores para o Japão e a vedação de qualquer atividade baleeira nos santuários do Pacífico Sul, do Índico e do Oceano Austral. Com a decisão da corte de Haia, acaba o argumento. E o Japão certamente levará essa cartada às negociações em setembro. Para o Brasil, que tenta desde o começo da década passada emplacar um santuário no Altântico Sul, isso pode significar novo adiamento nos planos.
O fim forçado do programa “científico”, por contraditório que pareça, é uma boa notícia para o governo japonês, que vem subsidiando há anos uma política impopular, desgastante em termos de imagem e sujeita a chuvas e trovoadas (por “chuvas” leia-se Greenpeace e por “trovoadas” leia-se Sea Shepherd) que frequentemente impedem o cumprimento das cotas, aumentando o preju. Para o público interno, o governo nipônico pode pagar de vítima do “Ocidente preconceituoso”; para o externo, pode trucar exigindo o fim da moratória.
A saída para o impasse só virá com o tempo, quando os japoneses se derem conta de que comer baleia é uma tradição que fossilizou, um hábito que não faz mais sentido no século 21. É o que está acontecendo na Noruega, país onde o consumo de carne de baleia despencou entre os jovens. E é o que provavelmente já está acontecendo também na terra do Sol Nascente, onde os estoques de carne de baleia têm encalhado (com a vênia do trocadilho) ano após ano.
A indústria baleeira já perdeu uma vez para a tecnologia, com a invenção da lâmpada a petróleo. Perderá mais uma vez, para a ética. Está condenada ao rol das más ideias extintas do capitalismo, juntamente com a escravidão, o fumo em lugares públicos e as lâmpadas incandescentes. É bom que seja assim. A questão é quantas baleias ainda virarão sashimi enquanto isso não acontece.