Quantos megawatts-hora vale Alter do Chão?

LI NO GLOBO no último domingo, no Valor hoje e na testa dos eletrocratas desde 2009 que Dilma, a Elétrica, vai mandar pau agora para barragear o último grande rio da margem direita do Amazonas, o Tapajós. Construirá perto da cidade de Itaituba a quarta maior hidrelétrica do país, São Luiz do Tapajós, que aliás já tinha seu calendário de licenciamento todinho definido antes mesmo de serem iniciados seus estudos de impacto ambiental. Por São Luiz e outras usinas próximas, Dilma baixou até mesmo um decreto-lei, digo, Medida Provisória, cortando meia-dúzia de unidades de conservação para lhe acomodarem os reservatórios. O país deve estar mesmo precisando pra caralho dessa energia, com esse crescimento brutal de 1,6% esperado para 2012.

À parte o crime de alagar o Parque Nacional da Amazônia, primeira unidade de conservação da região, e de induzir ocupação e desmatamento nas últimas florestas intocadas do Pará, São Luiz me preocupa pelo que está centenas de quilômetros a sua jusante: Alter do Chão, uma praia espetacular na foz to Tapajós considerada pelo jornal The Guardian uma das top 10 do Brasil (e olha que aqui tem muita praia).

Não faço ideia do que a regulação do fluxo do Tapajós fará com Alter, uma frágil língua de areia perto de Belterra, na “Grande Santarém”. Pode ser que a barragem, que terá um grande reservatório, seque a praia alguns meses do ano, tornando-a impraticável na seca — que é justamente a estação dos turistas. É possível que não aconteça nada, devido ao colossal volume de água do Tapajós, algo que só quem já tomou açaí na orla de Santarém consegue apreender.

O que me assusta é que para Dilma, a Elétrica, essa questão não se coloca em momento algum. Esse debate não foi aberto. A população do Pará não foi chamada a opinar, e não será quando os estudos estiverem prontos. Todo e qualquer valor, seja ele biológico, cultural, estético, é convertido em megawatts-hora, a moeda universal da eletrocracia dilmista, cuja cotação sempre está nas alturas. E depois transacionado e convertido em reais para compensações nas quais os nativos podem ficar com a sensação de que receberam troco errado ou que a casa de câmbio roubou na comissão. Quantos megawatts-hora vale o hotspot de biodiversidade de aves do Parna da Amazônia, que será afogado? Quantos megawatts-hora vale Alter do Chão? Existe justificativa ética para fazer essa conta?

Às vezes a impressão que dá é que essa sanha barrageira tem o único objetivo de provar para o Fernando Henrique que no governo petista não tem apagão. Sacrificamos um valor presente, os rios da Amazônia, para construir uma poupança energética para atender, quem sabe, demandas de carga que se apresentem em algum momento do futuro, como se o Brasil estivesse se preparando para uma reindustrialização soviética à base de alumínio e celulose, e não migrando para serviços e indústrias de base tecnológica (ou é esse o plano, presidenta?). Como se o apagão ambiental não fosse se consolidar como a herança maldida da era Lula/Dilma para seus sucessores.

Desmatamento em alta

CERTOS HÁBITOS são difíceis de largar. Um deles é o hábito que o tal “setor produtivo” do Nortão do Brasil tem de meter a buldôzer na floresta sempre que a economia dá uma esquentadinha e que o governo cochila na vigilância. Aparentemente foi isso o que aconteceu na Amazônia em agosto, quando o desmatamento explodiu 220%, segundo dados do sistema Deter, do Inpe.

A disparada da devastação foi solenemente ignorada pela imprensa brasileira. Talvez porque desta vez a divulgação do dado do Deter não tenha sido acompanhada do tradicional bumbo-entrevista-coletiva da ministra Izabella Teixeira, o que diz muita coisa sobre a nossa imprensa e sobre a estratégia tradicional do governo de faturar o que é bom e esconder o que é ruim (mais sobre ela neste artigo primoroso de Leão Serva). O Inpe postou o dado no site e ficou bem quietinho. Coube ao abelhudo Gustavo Faleiros, do site O Eco, fazer a lição de casa e ir fuçar a página do Deter para trazer os dados a público. Este escriba replicou a história no blog de notícias da Nature. E ficou nisso. Registre-se que os dados do Deter foram represados durante três meses, um silêncio sem precedentes atribuído por uma fonte próxima à “desorganização” do Ministério do Meio Ambiente, e não a algum tipo de censura. Eu até acredito, porque os dados eram bons. Mas qualquer tipo de represamento contraria o espírito de transparência total com o qual o Deter foi criado. Sinal dos tempos.

Os dados de agosto iniciam a série de cifras mensais do desmatamento de 2013. A de 2012 ainda ruma para mais uma baixa recorde, o que fará o governo comemorar na COP de Doha, no fim do ano, e silenciará todas as críticas externas sobre a frouxidão com que Dilma Rousseff conduziu a débâcle do Código Florestal no Congresso. Os próximos dois meses serão decisivos para sinalizar a tendência, já que as chuvas pesadas começam em novembro/dezembro e desmatar fica mais complicado. Mas os dados de agosto sinalizam fatores preocupantes:

Primeiro, que a economia está bombando. A soja passou o minério de ferro como item principal da pauta de exportações do Brasil, as terras agrícolas estão inflacionadas (só em Sinop, MT, o preço do hectare subiu 150% em 36 meses) e o preço da comida, como sabe qualquer pessoa que frequente o supermercado, não para de subir. Se a queda no desmatamento entre 2004 e agora se deveu 50% à ação do governo e 50% à queda dos preços das commodities, como indica um estudo recente da PUC (via @Imavieira), há um risco de reversão da tendência, embora o mesmo estudo afirme que a pecuária não tem um comportamento linear. Além disso, o ouro também subiu, o que tem provocado uma corrida de garimpeiros aos rios do sul do Pará.

Depois, que existe um sentimento crescente no setor produtivo e em seus representantes no Congresso de que o governo está abandonando a mão pesada contra o crime ambiental. O Código Florestal é o sintoma mais agudo, mas lembrem-se da Lei Complementar 140, antes dele, que desautorizou o Ibama. Certeza de lucro no curto prazo e confiança na impunidade é o binômio tradicional que levou 18% da Amazônia a virar fumaça.

Para piorar, o governo tem atuado ativamente para dar conforto psicológico aos desmatadores ao detonar, numa canetada da presidenta Dilma, seis unidades de conservação no eixo da BR-163 para acomodar, sim, claro, hidrelétricas. Ora, quem já era homem barbado ou moça feita quando irmã Dorothy morreu, em 2005, há de se lembrar que as áreas protegidas da 163 foram criadas justamente para barrar o desmatamento desenfreado. Seria leviano dizer que há uma correlação entre o pico de desmatamento em agosto (concentrado justamente ao redor da estrada) e a MP que reduziu os parques; não é de hoje que a motosserra vem subindo a 163. Mas parece óbvio que flexibilizar áreas protegidas é a maneira errada de dizer que o poder público não quer o correntão passando por ali.

Por fim, um alerta: o SAD, sistema do Imazon que monitora o desmatamento mês a mês e garante a transparência da informação mesmo quando o governo não colabora, deu um sinal oposto ao Deter em agosto: mostrou uma queda de 3%. O Imazon ficou de soltar nesta semana uma análise para explicar a divergência, mas segundo me informou Carlos Souza Júnior, pai do sistema, é possível que parte dos desmates vistos pelo Deter agora tenham sido computados pelo SAD em julho, quando este mostrou 50% de crescimento na devastação.

A culpa é do Espírito Santo

O GOVERNO NÃO SABE mais em quem botar a culpa pelo desastre de relações públicas que foi a aprovação das mudanças na MP do Código Florestal. Senadores aliados fecharam o acordo com os ruralistas (que, aliás, também são aliados), aparentemente com supervisão e bênção do Planalto, só para Dilma negar tudo três vezes e por escrito no dia seguinte e mandar Ideli dizer que não foi ela. Ontem a bancada da motos…, digo, do campo, obstruiu a votação da MP na Câmara, reclamando, com justeza, de quebra de acordo. Quem tem filhos sabe como essa dinâmica funciona toda vez que eles aprontam alguma.

Minha sugestão à presidenta: culpe o Espírito Santo de Deus. Foi ele, afinal, quem soprou no ouvido da senadora Kátia Abreu (PSD-TO) a fórmula mágica que mudou a “escadinha” (não, o nome não foi inspirado em nenhum personagem de favela movie) de forma a beneficiar médios e grandes proprietários com redução das faixas de recomposição em matas ciliares.

Só para lembrar, a questão das chamadas APPs ripárias é a maior polêmica do Código Florestal. Os ruralistas sempre se opuseram à recuperação de APPs, alegando que isso seria o genocídio dos pequenos produtores. “O grande pode pagar, o problema é o pequeno, coitadinho”, era a cantilena. O governo resolveu a vida dos pequenos escalonando as faixas de reposição de acordo com o tamanho da propriedade. E ai, tchan, tchan!, os ruralistas disseram que não servia porque seria o genocídio dos médios produtores. No final, o conceito informal de “médio” foi ampliado de 4 a 10 para 4 a 15 módulos fiscais, a reposição mínima caiu de 20 para 15 m (de 4 a 10 MF) e de 30 para 15 (de 10 a 15 MF). Para o restante (ou seja, o latifúndio), o mínimo a repor caiu de 30 para 20. Ou seja, quanto maior sua propriedade, mais você se beneficia. É incrível que o setor ambiental não tenha notado isso e feito um escândalo.

Agora, really, focar a ira presidencial na “escadinha” tem cheiro de Samuel Beckett. Porque, das barbaridades que a comissão fez com a MP 571, reduzir as APPs foi o de menos.

Para começo de conversa, o parágrafo 13 do artigo 61A contém um inciso que torna toda essa discussão de 15 metros pra lá, 15 metros pra cá inútil: permite recuperar APP com “árvores frutíferas”. Isso mesmo: quaquer laranjal agora vale como APP. Quero crer que foi um erro de redação, como aliás acoteceu com a 571 original. O texto também obriga o governo a anistiar todas as multas por desmate sem licença fora de reserva legal e de APP, tornando o licenciamento de propriedades rurais uma peça de ficção (um cínico argumentaria que já é, agora ficou apenas coerente, OK). Isso para não falar no Artigo 1, que teve sua redação revista e piorada em relação até mesmo ao texto da Câmara e devolve o caráter de código rural ao texto.

A hora da verdade está marcada para 8 de outubro, quando ou bem o Congresso aprova as mudanças, ou bem a MP caduca. Não dá para prever o final desse filme argentino, mas arrisco aqui um palpite: passa tudo como está, Dilma veta o artigo 61A pra fazer um buniti e esquece o resto. Haverá choro e ranger de tratores, mas o pessoal no campo vai ficar feliz: terão conseguido desmoralizar o Código Florestal de tal forma que cumpri-lo ou não não importará muito. Essa é a “segurança jurídica” pela qual eles tanto lutaram.

Categorias

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM