Isso não se faz, Arnesto

Foto: Itamaraty

CENTO E VINTE E DOIS ANOS depois dos estudos de Arrhenius, 80 anos depois de Guy Callendar expor sua tese sobre CO2 e aquecimento da Terra à Royal Society e trinta anos depois da criação do IPCC, ver o chanceler da República Federativa do Brasil chamando o aquecimento global de conspiração marxista desperta em mim aquela sensação “volte dez casas” após um lance infeliz de dados num jogo de tabuleiro. Como cantou Adoniran em seu Samba do Arnesto, fiquei “com uma baita de uma réiva”. Meu primeiro impulso foi tuitar para ele mandando um “puta maluco do caralho”. Mas aí o Pablo Ortellado ia ficar bravo e dizer que a culpa pelo Ernesto Araújo é de progressistas como eu, que não soubemos “engajar” o homem comum, mesmerizados que estávamos pelas nossas cervejas artesanais nos fins de semana depois das visitas à Livraria Cultura (duplo fracasso, já que não evitamos nem Bolsonaro, nem a falência da Cultura). Então, caro Arnesto, não o chamarei de “puta maluco do caralho” – embora desconfie, pela maneira como você usa a adversativa sempre que se toca no assunto, de que alguém próximo a você já tenha arriscado esse diagnóstico.

Direi, em vez disso, que a sua negação da mudança climática é o oposto do fervor nacionalista que você prega. Na real, é uma modinha importada do restolho do pensamento iliberal, que nem aqueles aviões obsoletos que a turma mandava antigamente para os países da África. Como tal, é profundamente antipatriótica. Bear with me.

O negacionismo do clima nunca floresceu de maneira orgânica no Brasil. Isso é coisa de gringo, sempre foi. Naomi Oreskes e Eric Conway, em seu imperdível Merchants of doubt, historiografam a origem do fenômeno. Começou com físicos pagos pela indústria do petróleo e do carvão para espalhar dúvida no público a respeito das evidências cada vez mais sólidas sobre impactos ambientais da ação industrial, como chuva ácida, a camada de ozônio e a mudança do clima, usando um manual de relações-públicas bolado pelo lobby do tabaco nos anos 1950. A imprensa americana, na sua obsessão por equilíbrio, passou duas décadas citando esses ideólogos da indústria como “outro lado” em suas matérias sobre a questão climática. Os negacionistas originais – Fred Seitz e Fred Singer – triunfaram em sua estratégia de abrir um “debate” e criar a impressão de que havia sérias divisões a respeito das causas e dos impactos do aquecimento global na academia. Não há: apenas 3% dos estudos sobre mudança do clima questionam as evidências. Mesmo assim, eles atrasaram por 20 anos o combate internacional à mudança do clima.

Além dos EUA, o negacionismo só é uma questão séria em dois outros países: a Austrália, maior exportador de carvão mineral do planeta, e o Reino Unido, quintal cultural da América e sede de big oils como a BP e a Shell. No resto do mundo trata-se essencialmente de um não-assunto na opinião pública, segundo o estudo Poles apart, da Fundação Reuters, liderado pelo jornalista britânico James Painter.

No Brasil, os combustíveis fósseis até muito recentemente tinham peso muito pequeno na economia. Além disso, sempre foram uma atividade estatal, daí a baixa influência do lobby das empresas privadas no discurso público sobre clima. Por muito tempo, jornalistas brasileiros puderam escrever sobre ciência do clima livremente, sem precisar publicar o “outro lado” de um cientista “cético” – até porque há poucos por aqui, e menos ainda que publicam sobre temas climatológicos. O negacionismo à brasileira vem de outro campo. Literalmente, do campo: da negação do setor rural em associar desmatamento a emissões de carbono e da baixa compreensão do público sobre a ligação entre consumo de carne bovina e poluição climática, como mostrou extenso trabalho da antropóloga dinamarquesa-americana-paulista Myanna Lahsen.

Mesmo no mundo anglo-saxão os negadores da mudança do clima comeram um dobrado no governo Obama, quando a Exxon Mobil parou de financiar organizações como o Heartland Institute, nos EUA, e quando três comitês independentes inocentaram os cientistas do clima do Reino Unido acusados de má conduta acadêmica no chamado “climagate”. Os autointitulados “céticos” amargaram uma derrota que muitos (este ex-criba inclusive) supuseram final em 12 de dezembro de 2015, quando 195 países adotaram o Acordo de Paris. Mas é claro que os rumores sobre a morte desse povo foram exagerados, por conta de um deslocamento no eixo do discurso que começara anos antes, com o movimento Tea Party, e terminaria com o “professor” Olavo de Carvalho, que certamente não está na bibliografia do exame do Rio Branco (mas não quero ficar dando ideia pro chanceler).

O que aconteceu foi que a mudança do clima passou a integrar fortemente a cesta das guerras culturais norte-americanas, juntamente com a teoria da evolução. Após a criação do Tea Party, chocadeira da alt-right, em 2009, negar o aquecimento global e as providências contra ele tornou-se uma espécie de teste de fidelidade da direita: o cabra não entrava no clubinho dos conservadores raiz se não tivesse Jesus no coração, um discurso forte contra imigrantes, contra a saúde universal, contra a ONU e o “globalismo” (opa!) e se não negasse a mudança do clima por três vezes.

Como resultado, iniciativas de controle de emissões do Partido Republicano (pouca gente lembra, mas a primeira proposta de lei de clima nos EUA foi bipartidária, elaborada pelo senador republicano John McCain e pelo democrata Joe Lieberman no ano 2000) foram escanteadas. Republicanos moderados, como próprio McCain e o ex-governador de Massachusetts Mitt Romney, passaram a dosar o discurso pró-clima ou a abjurá-lo tout court temendo perda de apoio.

É nesse contexto, de guerra cultural, que entra o negacionismo do “professor” Olavo, autoexilado nos EUA e incensado pelo nosso chanceler como o segundo “grande responsável pela transformação que o Brasil está vivendo”. Dificilmente o Faraó de Pinheiros teve algum contato com a literatura científica na área de clima; limitou-se a papagaiar o pacote ideológico da direita, que inclui o ceticismo climático, a restauração teocrática, o “antiglobalismo” e outras jenialidades – enfiando uma meia-dúzia de cus e pirocas no meio para levar os mirins do MBL ao delírio. Seus escritos aparentemente tiveram forte influência sobre os “garotos” de Bolsonaro, Carlos e Eduardo (aquele do cabo e do soldado), que em diversas ocasiões exibiram o identificador tribal do negacionismo e fazem a cabeça do pai sobre esse assunto.

Arnesto Araújo bebe da mesma fonte. Numa apresentação feita no Instituto Rio Branco em maio de 2015, ele qualificou a mudança climática como “polêmica” científica (ao lado de “darwinismo x design inteligente” e de “Plutão é planeta?”). Usou como apoio uma série de gráficos que são uma espécie de bingo do negacionismo: o da suposta discrepância entre balões e satélites e modelos de clima (que não existe; todas as bases de dados convergem, como pode ser visto aqui); o do infame “hiato” no aquecimento global desde 1988, que também nunca existiu; o gráfico de sempre mostrando o efeito das ilhas de calor urbanas (que obviamente explica boa parte do calor em Paris e São Paulo, mas não nos cafundós da Amazônia ou no polo Norte); e a sugestão de que a culpa é dos ciclos orbitais (que causaram glaciações e deglaciações, mas que não têm nenhuma relação com o aquecimento atual da Terra, como mostra, entre outros, este estudo europeu).

Com a eleição de Donald Trump, a portinhola do curral dos infernos se abriu e o que era fringe science virou mainstream politics. O negacionismo que operava nas sombras e era descartado por liberais como maluquice ultrapassada (nesse ponto concordo com Pablo Ortellado sobre a soberba das classes esclarecidas) de repente se provou com força suficiente para tirar os EUA do Acordo de Paris quando não havia nenhuma razão econômica para isso. O ato de Trump foi um statement ideológico.

Ao eleger o clima para receber punição exemplar em sua cruzada religiosa-antiglobalista-olaviana, o chanceler da República, de mãos dadas com os rapazes Bolsonaros, arma o cenário para uma saída do Brasil do Acordo de Paris, de direito ou de fato, e também por razões ideológicas – o que é irônico vindo do sujeito que prometeu tirar a ideologia da nossa política externa, mas só aparentemente. É difícil imaginar em qual Universo paralelo o abandono dessa agenda poderia ser de interesse da Pátria Amada.

Para ficar só na parte dos prejuízos: entre 2002 e 2012, extremos climáticos custaram ao Brasil, em média, R$ 270 bilhões. Nossa agricultura irrigada e nossas hidrelétricas dependem de um clima estável, e a série de estudos Brasil 2040, da extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, mostrou que teremos tudo menos isso antes do meio deste século: alguns reservatórios podem ter quedas de vazão maiores que 50%, toda a região Sul se tornará inviável para a soja e o milho safrinha sumirá do mapa. Não é à toa que a ministra da Agricultura criou um setor na sua pasta para estudar a adaptação do agro brasileiro ao aquecimento da Terra.

Mas tem também o tal do soft power.

Não pretendo ensinar o padre nosso ao vigário, ainda mais um tão firme em sua fé quanto Arnesto Araújo. Mas o Brasil, nos últimos 47 anos, tem derivado reconhecimento internacional – e dinheiro – da agenda ambiental internacional. Foi o embaixador Miguel Ozorio de Almeida quem cunhou o conceito de “poluição da pobreza” em 1972, que até hoje pauta o G77 na ONU. O Brasil, no governo de Fernando Collor (único ex-presidente que compareceu à posse de Arnesto no dia 2), tornou-se berço das convenções de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. Desde então já recebeu bilhões de dólares em cooperação internacional e em investimentos em economia limpa. Criou sistemas de monitoramento de desmatamento e observação da Terra que hoje são utilizados em vários países com florestas tropicais (cooperação sul-sul, mas pode chamar de “influência”). Tornou-se um ator fundamental em qualquer fórum internacional que discuta clima e biodiversidade. Abriu mercados às nossas commodities agrícolas e ao nosso biocombustível. Agora mesmo, como mostrou o jornal O Estado de S.Paulo, há R$ 2,5 bilhões em doações e empréstimos internacionais no limbo porque ninguém sabe quem são os interlocutores do novo governo na área de clima.

Dizer que tudo isso é agenda de ONG, como sugeriu Arnesto em seu discurso de posse, revela uma ignorância sobre a Casa dos Arcos que só pode ser deliberada. Nosso chanceler poderia, por exemplo, tomar um café com o embaixador Everton Vargas, que negociou pelo Brasil todos os grandes acordos ambientais de 1972 a 2007 – e que vive às turras com as ONGs. Mas não vai, já que ele desconvidou Vargas a assumir a subsecretaria que cuida de meio ambiente no Itamaraty.

Transformar o Brasil numa república negacionista do clima, como parece desejar Ernesto Araújo, em nome de uma série de mentiras e teorias conspiratórias importadas da alt-right americana, parece pavimentar a estrada para o inferno. Não apenas o bíblico, mas também o climático: afinal, o Brasil é o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, e o descontrole sobre nossas emissões arruinaria qualquer chance da humanidade de atingir a meta do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento da Terra abaixo de 2oC.

Isso não se faz, Arnesto.

 

 

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