A cana, sacaneada

A revista Nature, publicação integrante da conspiração anticapitalista do aquecimento global, edita hoje texto cometido por este blogueiro sobre a débâcle do etanol no Brasil. Entrevistei um monte de gente boa que pensa o assunto, de pesquisadores em laboratórios a empresários (com a notável ausência do Ministério de Minas e Energia, que se recusou a me atender ou achou que não era importante), atrás de uma explicação para a crise do álcool, que atingiu o fundo do poço neste ano — a ponto de a Unica, a união das indústrias canavieiras, estrear anúncios na TV estimulando a população a abastecer com etanol.

O diagnóstico geral é que o etanol naufragou porque o governo brasileiro, para variar, deu todos os sinais errados ao mercado. Subsidiou a gasolina, impedindo seu aumento e impondo um preju fabuloso à Petrobras em nome do controle da inflação (para acalmar a classe média motorizada, leia-se eu e você) e incentivou a venda acelerada de carros sem que houvesse etanol para abastecê-los. Claro, houve a crise de 2008, que pegou os usineiros de calça curta, num momento em que estavam “alavancados” (nome chique que os financistas inventaram para dizer “cheios de dívidas”) para expandir a produção. O resultado você que mora em São Paulo, Rio e Salvador — e cada vez mais nós aqui em Brasília também — já conhece: mais engarrafamento, mais poluição.

Porém, ouvi de algumas pessoas que entrevistei uma teoria da conspiração interessante: quem jogou o etanol para escanteio foi o pré-sal. Ao contrário de Lula, que achava os usineiros uns “heróis”, Dilma Rousseff nunca gostou muito dessa raça. Vai ver é o sotaque caipira. A companheira presidenta prefere o petróleo, coisa chique, da país rico, sofisticada e que vem com todo um complexo industrial na rabeira. É no mínimo uma coincidência interessante que a diplomacia do etanol de Lula tenha naufragado no mesmo ano em que o anúncio da descoberta do Tupi foi feito.

Fica difícil, porém, levar essa teoria a sério quando se olha a situação do próprio pré-sal, sem leilões e com a Petrobras em sérias dificuldades financeiras (em parte justamente por causa do preju que lhe foi imposto pelo governo, forçando-a a importar derivados por 2 e revender por 1,5), atrasos em sondas etc. O ex-diretor de óleo e gás da estatal, Ildo Sauer, dispara com sua franqueza gaúcha contra a hipótese: “Se existe conspiração contra o etanol, a que existe contra o pré-sal é muito maior!”

Leia aqui a reportagem na Nature. E, já que você vai até lá mesmo, aproveite para ler aqui o infográfico de Jeff Tollefson e Richard Monastersky sobre como o planeta está na verdade cada vez mais entupido de combustíveis fósseis.

O último herói vitoriano

Farish e um de seus filhotes, o “Tiktaalik roseae” (Foto Boston Globe)

 

AS QUARTAS-FEIRAS do gelado segundo semestre de 2003 eram dia de acordar cedo. Eu deixava minha filha no ponto de ônibus e atravessava Cambridge, invariavelmente atrasado e invariavelmente animado, para escutar um homem de bigode, colete bege e gravata falar sobre ossos de animais extintos. Era dia das aulas de paleontologia de vertebrados de Farish Jenkins Jr., o último naturalista vitoriano, morto no fim de semana retrasado aos 72 anos.

O quadro-negro invariavelmente trazia algum dinossauro ou cinodonte desenhado a giz nos mínimos detalhes. Cada curva do molar trobosfênico, cada vértebra fundida dos saurísquios, cada ossinho da mandíbula dos répteis em sua transformação no que são hoje nossos ossos do ouvido. Passei meses imaginando como Farish conseguia executar desenhos anatômicos à perfeição no olho. Alguém me segredou que o professor madrugava no museu — e contava com o auxílio secreto de um retroprojetor. Tudo antes de os alunos chegarem, momento em que Farish já tinha café e donuts prontos para a classe de alunos de pós (nem todos superinteressados nos processod do tornozelo do Deinonichus). Um mestre do espetáculo.

Obviamente eu não tinha formação alguma em paleobiologia, em biologia ou em qualquer outra coisa. Jenkins me aceitou como ouvinte mesmo assim. Adorava jornalistas, e tinha um carinho especial pelos nerds do MIT que se interessavam por ciência. “Vocês não são 171 de forma alguma! São gente séria e esforçada.” Não vou discutir com um professor de Harvard.

Quando não estava fascinando seus alunos ou xingando o então reitor Larry Summers, a quem só se referia como “bully”, Farish vivia la vida loca. Nos verões, alugava um helicóptero e partia com colaboradores e o curador de vertebrados do museu, Chuck Schaff, para algum fim de mundo do Ártico, onde o grupo acampava por um mês ou mais em total isolamento, atrás de fósseis interessantes. O grupo precisava andar armado e montar turnos de vigia 24 horas por dia, por causa de ursos polares. Uma vez, exausto, Chuck atirou numa ameaçadora forma branca que se aproximava das barracas. Felizmente errou — era uma lebre.

Em uma dessas expedições polares, na ilha de Ellesmere, no Canadá, Farish e seu ex-aluno Neil Shubin, e o aluno de Shubin Ted Daeschler, encontraram seu fóssil mais interessante: um peixe do Período Devoniano que traz o primeiro sinal daquilo que vieram a se tornar as patas dos tetrápodes (como nós). O grupo batizou o bichinho de Tiktaalik, uma palavra inuíte. Tive o prazer de apertar a mão do Tiktaalik em 2009, no laboratório de Shubin na Universidade de Chicago. Foi quando soube que Farish adoecera e já não viajaria ao Ártico com o grupo naquele verão. Shubin estava transtornado.

Voltei a ter notícias de meu ex-professor em 2010, por obra e graça de Rafael Garcia, que visitou seu laboratório e me mandou uma foto. Trocamos e-mails. Farish parecia ter envelhecido 30 anos, mas mantinha a fleuma. Minha última lembrança dele é dessa jovialidade, mesmo — agora sei — terminalmente doente.

Farish Jenkins era, ele mesmo, um fóssil, um espécime único, holótipo sem parátipo. Era um polímata, que lecinava anatomia humana além de paleontologia. Um naturalista à moda antiga no meio de um mundo dominado por biólogos moleculares. Como Charles Darwin, gostava de fazer experimentos malucos para observar fenômenos (gostava de colocar animais para correr em esteiras para entender como fósseis se movimentariam). Nas horas vagas, cultivava maçãs numa fazenda em New Hampshire, onde fabricava com a mulher a melhor cidra do mundo, que ele mesmo engarrafava e rotulava. O espumante era obrigatório em brindes de final de semestre, em plena sala de aula e em plena luz do dia, para horror dos caretas americanos. Farish Jenkins Jr. não tinha paciência para caretices.

Mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas

FOI ASSIM, ENTÃO, senhoras e senhores, que a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil lançou, no fim-de-semana, sua aguardada pesquisa de opinião que, adiantara sua presidente, demonstraria que o problema do índio brasileiro não é terra.

Peço desculpas por insistir no assunto, sim, sou monomaníaco, mas o causo em questão é revelador.

A pesquisa, encomendada pela CNA ao Datafolha, ouviu 1.222 “silvícolas” em 32 aldeias com mais de cem habitantes em todas as regiões do país. Amostra, portanto, em tese representativa da população indígena. A conclusão principal, estampada em press release da entidade: “A dificuldade de acesso à saúde é a principal queixa da população indígena no Brasil”. 29% dos nativos entrevistados disseram ver nisso sua principal preocupação. Nas palavras da presidente da CNA, Kátia Abreu:

“O pleito dos índios pela ampliação de suas áreas é legítimo, mas reduzir a questão indígena à falta de terra é uma simplificação irreal, que tira o foco da realidade. As reclamações dos índios vão muito além de um pedaço de chão. Eles querem cidadania, respeito, assistência médica, uma educação melhor, instrumentos que lhes possibilitem obter mais renda e o sustento de suas famílias com dignidade”

O resultado da pesquisa foi amplamente divulgado em reportagens de meus amigos Leonardo Coutinho e Matheus Leitão na Veja e na Folha, respectivamente, portanto vou me abster de repeti-los aqui. Acontece que muita gente boa chiou, dizendo que a Folha estava comprada pelos ruralistas e desconfiando do Datafolha por fazer uma pesquisa encomendada pela Kátia Abreu.

São Carl Sagan me ensinou a ser alérgico a esse tipo de ataque “ad hominem”. Se um fenômeno é real, ele deve ser observável independente de onde se situe o observador no espectro político. Não existe “ciência ruralista” ou “ciência ambientalista”. Não desconfio de resultados do Datafolha encomendado pela CNA como não desconfiei do Datafolha sobre Código Florestal por ter sido encomendado pelo Roberto Smeraldi.

OK, façamos aqui uma ressalva: existe um viés de observação na pesquisa, que afinal só foi ouvir a indiada que fala português e mora em aldeias grandes. Isso obviamente desvia a enquete no sentido de encontrar bens de consumo como TVs e geladeiras, cada vez mais comuns em áreas rurais, mas que o nosso racismo cordial não entende que possam constar de lares indígenas. Dito isso, porém, trata-se de uma pesquisa de opinião tão boa quanto qualquer outra, feita com a mesma metodologia rigorosa do Datafolha da qual ninguém reclama em tempo de eleição.

Por curiosidade, fui olhar a dita cuja, que a CNA teve a gentileza de disponibilizar em seu site. E o que diz o Datafolha? Que “saúde e situação territorial são os principais problemas dos índios no Brasil”. Saúde aparece com 29%; terra, com 24%. Como a pesquisa tem margem de erro de três pontos percentuais para mais ou para menos, podemos dizer (e o Datafolha diz) que ambas estão tecnicamente empatadas na lista de males que tiram o sono do aborígene. Kátia Abreu e a CNA possivelmente não gostaram do resultado (que deve ter-lhes custado algumas centenas de milhares de reais) e resolveram dar um “spin” na divulgação, reforçando a questão da saúde (de resto, preocupação principal de qualquer ser humano, em qualquer situação, em qualquer momento da história) e convenientemente varrendo para fora da maloca a questão territorial.

O premiê britânico Benjamin Disraeli costumava classificar as mentiras numa gradação: “lies, damn lies and statistics”, ou “mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas”. Neste caso, as estatísticas não mentiram. Mas a forma como elas foram apresentadas ao público foi deliberadamente confusa.

PS: Leia aqui a boa análise que o Instituto Socioambiental fez da pesquisa Datafolha.

Carl Sagan Guarani-Kaiowá

CARL SAGAN (1934-1996) entrou na minha vida duas vezes. A primeira foi quando eu era criança e passava as manhãs vendo Cosmos na Globo (ainda não tinham inventado o Show da Xuxa — de fato, desconfio que a própria ainda estava naquela fase “50 Tons de Cinza” avant la lettre). Sagan era tão carismático que eu conseguia me manter atento ao programa mesmo sem entender nada. Até hoje, 30 anos depois, me lembro de sua explicação para o efeito Doppler, que prontamente saí repetindo em ocasiões sociais, para aflição de minha mãe. A segunda vez foi no começo da década passada, quando enfim li seu clássico O Mundo Assombrado pelos Demônios. Se houve um único livro que mudou completamente minha vida foi essa bíblia do ceticismo e do pensamento crítico.

Nesta semana, nerds, ateus e céticos do mundo inteiro comemoram a Semana Sagan, marcada pelo aniversário do cientista, dia 9 de novembro. Este blog resolveu prestar uma homenagem a Sagan relembrando uma de suas maiores contribuições à humanidade: o “baloney detection kit”, ou “kit de detecção de balelas”, numa tradução benevolente.

Trata-se de uma seção de O Mundo Assombrado pelos Demônios na qual Sagan resume falácias argumentativas comuns e explica como desarmá-las. É uma espécie de micromanual de bolso do ceticismo, ferramenta fundamental para cientistas, mas também jornalistas e, na verdade, qualquer pessoa que precise avaliar proposições, de qualquer tipo. O kit funciona especialmente bem com proposições de políticos, que precisam o tempo todo sustentar argumentos contraditórios entre si.

A saraivada de artigos antiindígenas que tem tomado as páginas de opinião dos jornais nas últimas semanas, quando estourou a “nova” crise guarani em Mato Grosso do Sul, presta-se bem ao escrutínio pelo kit de Sagan. Dois textos merecem atenção especial por terem sido escritos por uma missivista especialmente inteligente, a presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), a também senadora Kátia Abreu (PSD-TO). Em suas duas últimas colunas na Folha de S.Paulo, Kátia ataca primeiro a AGU (Advocacia-Geral da União), por ter suspendido uma portaria para lá de controversa que atropelava os direitos indígenas em várias instâncias, depois a Funai, a quem acusa de fomentar conflitos no campo.

Quem acompanhou o debate sobre o Código Florestal no Congresso reconhecerá em ambos os artigos semelhanças mais do que casuais com os pontos de fala da bancada ruralista naquela ocasião. Aqui também se fala de “insegurança jurídica”, “pequenos agricultores”, “soberania nacional” e da sempre presente ameaça das “ONGs internacionais”. Os textos jogam à vontade com estatísticas, escondendo por trás de grandes números (12,64% do Brasil para 517 mil índios versus 39,2% do Brasil para 16,5 milhões de agricultures) realidades regionais díspares, uma tática retórica já comentada aqui e brilhantemente desmontada na própria Folha por Marcelo Leite.

Um eixo argumentativo, porém, merece atenção especial, porque delineia a nova linha de ataque da CNA e da bancada ruralista contra os indígenas: a de que o problema do índio, na verdade, não é falta de terra, é desassistência. Escreve Kátia Abreu, em “ctrl+c ctrl+v” de um texto publicado dias antes pelo presidente da Federação da Agricultura de MS:

É simplificação irreal e equivocada resumir o drama pelo qual passam os 170 índios da etnia guarani-kaiowá a uma simples demanda por terra. As carências dos índios, inclusive os que hoje ocupam dois hectares de uma fazenda no Mato Grosso do Sul, são muito mais amplas. Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público.

A excelente revista Amanhã, do Globo, publicou ontem que a CNA lançará na semana que vem uma pesquisa mostrando as mazelas dos índios, que vão além da terra. Repete-se o padrão de comportamento em torno do Código Florestal: encomendar estudos para dar um verniz científico a uma posição política. Mais do que isso, porém, o argumento incorre em dois problemas saganianos clássicos.

Primeiro, ignora a Navalha de Occam, segundo a qual, se existem várias explicações concorrentes para um mesmo problema, a mais simples tende a ser a correta. Quem, como eu, já andou pelas terras kaiowás, sabe que existe um problema fundamental de carência de território e superpopulação das “reservas”. Os índios passam a depender de assistência do governo (que não chega, causando mortes por desnutrição, alcoolismo e suicídios) porque não têm como se sustentar em ilhas territoriais minúsculas, sem caça e arrendadas a preço de banana para plantadores de soja (frequentemente é a opção que sobra). Sem poder subsistir na terra, o guarani é levado à changa nas destilarias, o que reforça o ciclo de desagregação social — embora eu não ache que a cana seja a culpada pelo drama dos kaiowás, como acusa o documentário pop À Sombra de um Delírio Verde.

O outro problema saganiano da argumentação é apresentar uma dicotomia falsa entre terra e outros problemas sabidamente existentes. Sagan chama isso de exclusão do meio-termo. É mais ou menos como quando um político diz que tirar dinheiro de um programa qualquer criado por seu adversário permitiria construir “x casas populares”. As opções frequentemente não podem ser, e não são, excludentes.

O fato de os índios estarem desassistidos, desnutridos e doentes e precisarem de auxílio do governo (e também, por que não, de alguma simpatia da sociedade “civilizada”, algo de que definitivamente não gozam em Mato Grosso do Sul) não lhes anula uma demanda legítima pelo reconhecimento de terras que são deles. E que, no caso de Mato Grosso do Sul, foram-lhes arrancadas em tempos recentes pelo próprio governo para serem entregues ao “setor produtivo”. E cuja devolução, convenhamos, não vai exatamente quebrar o país: as áreas guaranis já demarcadas, lembra Marcelo Leite, correspondem 0,4% do território de MS. Somadas, são menores que a cidade de São Paulo. Segundo O Globo, só os canaviais ocupam no Estado uma área equivalente a 4,3 cidades de São Paulo. Mais uma vez, é preciso colocar as coisas em perspectiva.

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