A matemática da má-fé

MEU FILHO MAIS VELHO usa uma expressão peculiar para expressar ceticismo diante de proposições evidentemente absurdas. Sempre que tento passar-lhe uma balela como fato, ele olha para mim com uma cara de desprezo e fuzila: “Serião?”

Não dá para reagir de outro jeito ao ler a enormidade publicada na edição desta semana de Época pelo filósofo gaúcho Denis Rosenfield sobre o ritmo de demarcação de terras indígenas e unidades de conservação no país. Resgatando uma conta apresentada dias atrás pela companheira de lutas Kátia Abreu, o professor Rosenfield afirma que, mantido o ritmo de criação de áreas protegidas e terras indígenas dos governos Lula e THC FHC, o país chegaria a 2031 com 236 milhões de hectares demarcados, ou “100% da área agropecuária” (não explica se as terras indígenas e os parques tomariam as terras dos produtores ou apenas ocupariam o equivalente em área). Em 2043, nesse mesmo batidão, estariam nas mãos dos silvícolas e das capivaras 855 milhões de hectares, ou todo o território nacional. Serião?

Meus amigos engenheiros sempre me advertiram do perigo de deixar esse pessoal de humanas mexer com números. Mas também não perdiam a oportunidade de fazer troça deles próprios, com uma piada que vem a calhar neste caso: um engenheiro certa vez plotou num gráfico a curva de crescimento de sua filha de um ano de idade. Extrapolando a tendência, concluiu que aos 18 anos a menina estaria com três metros de altura e pesaria meia tonelada.

Olha, eu tenho uma extrema simpatia por esse pessoal de direita. Acho um charme, tá na moda, eles têm senso de humor e tudo o mais. Mas é difícil imaginar que alguém que bote na mesa os números apresentados por Kátia Abreu, por sua vez compilados por um tal “Observatório da Segurança Jurídica” (sempre que um ruralista pronuncia essa expressão, Deus derruba uma castanheira centenária) esteja fazendo-o por convicção na solidez de seu raciocínio. Não, minha gente, o ritmo de criação de unidades de conservação no país jamais será igual ao de FHC e Lula, por causa de leis elementares da física. Hoje só existem na Amazônia (onde ainda é possível criar áreas protegidas de dimensões que arrepiam os ruralistas) cerca de 25 milhões de hectares de florestas públicas em área devoluta. O resto já tem destinação. Mesmo que, digamos, Marina Silva (que é uma espécie de encarnação do capeta para essa gente) assumisse a Presidência com poderes ditatoriais e resolvesse expropriar áreas produtivas para fazer parques — o que aparentemente é o subtexto da argumentação de Rosenfield e da CNA –, dificilmente quereria criar reservas biológicas nos pastos de Alta Floresta ou nos campos de soja do Blairo Maggi.

Não se cria uma unidade de conservação por capricho ou por amor ao subdesenvolvimento; cria-se para proteger algo relevante em termos de biodiversidade, água (para garantir inclusive a produção agropecuária, não custa lembrar) ou paisagens. Felizmente, a proporção dessas áreas sob proteção oficial hoje no Brasil é maior do que quando FHC assumiu o poder. Portanto, há menos a salvaguardar no futuro, porque o Estado fez o seu papel nos 16 anos de FHC e Lula. Dilma Rousseff, ao submeter a criação de áreas protegidas ao crivo político de seus cupinchas no setor minerário e energético, subverteu as razões de Estado para estabelecer essas áreas. É ela que não está cumprindo seu papel.

Raciocínio análogo vale para as terras indígenas. Este blog, outras publicações e o bom senso já desmontaram o argumento safado do “muita terra para pouco índio” repisado por Rosenfield na Época. De novo, terras indígenas (em geral) não são criadas por amor ao subdesenvolvimento ou por tara de antropólogo; elas são o reconhecimento do Estado (daí o artigo 231 da Constituição delegar sua declaração ao Poder Executivo) a um direito que já está garantido aos índios. As grandes terras indígenas do país já foram todas criadas, e estão em geral no fiofó da Amazônia, onde só a imaginação fértil de alguns membros da bancada ruralista imaginaria que elas possam competir por terras com o agronegócio produtivo (noves fora os arrozeiros de Roraima). O que há para criar ou ampliar hoje é relativamente marginal e, salvo exceções como o sul de Mato Grosso do Sul, não há disputa com propriedades legítimas de não índios. O fuzuê que o ruralismo tem feito em cima dessa questão, aproveitando o atabalhoamento geral reinante no Planalto, visa usar a exceção para mudar a regra — mesmíssimo expediente utilizado com sucesso para mudar o Código Florestal. Pressionada, a ministra Gleisi Hoffmann saiu-se com uma solução mágica destinada ao mesmo sucesso dos cinco pactos rousseffianos: botar a Embrapa para apitar nas demarcações. Serião?

A explicação benevolente para o novo surto midiático do “setor produtivo” é que esse povo só quer dinheiro: radicaliza-se para obter indenizações por desapropriações que, de resto, são frequentemente justas. Como eu já vi esse filme antes, prefiro achar que a turma da motosserra está mais uma vez dando um empurrãozinho só para ver se a porta abre. O butim é a PEC-215 e outras medidas que na prática acabam com terras indígenas e áreas protegidas no país. Da outra vez deu certo; vai que desta também cola.

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