Na pista com Marina
MARINA caminha depressa, quase correndo. Veste uma camisa laranja e traz uma bolsinha de nylon a tiracolo, dessas que a gente ganha de brinde em eventos. É domingo, ameaça chover e a Estrada Parque do Lago Norte, nome oficial da “Principal”, está vazia. De bicicleta, faço pouco esforço para acompanhá-la, mas estaria em maus lençóis se estivesse a pé. Um vigor notável para a figura franzina e adoentada que eu já vi andar apoiada numa bengala, anos atrás, quando se batia contra desmatadores, hidrelétricas e outros paladinos do desenvolvimento do Brasil.
Faz oito dias que ela deu a largada para outro tipo de marcha olímpica: no sábado anterior, depois de dois anos de costura, lançara a Rede Sustentabilidade, partido que espera tornar oficial para disputar as eleições presidenciais de 2014. Sai de casa com bolos de fichas de assinaturas de apoio. Não sobra nenhum.
Tem sido divertido observar os palpites dos analistas políticos de Brasília em relação à Rede. Sem saber como abordar uma estratégia política que pode dar 100% errado, mas que tem o mérito inegável de pensar fora da caixa (ou DO caixa), os comentaristas têm apostado em que Marina “terá dificuldades” (oh!), “maiores que as do PSD, já que é uma ameaça virtual a Dilma em 2014” (uh!). Houve quem ironizasse a autodefinição da Rede como um partido “nem de direita, nem de esquerda”, comparando-a inevitavelmente à declaração de Golberto Kassab quando do lançamento do PSD (a esse propósito, vale a pena ler a coluna de Eugênio Bucci na última edição da Época). O coronel do PSB, Roberto Amaral, logo quem, chamou o partido de “fundamentalista” e “autoritário”. Outros saúdam o partido por ser diferente, mas criticam-no justamente por ser tão diferente. Outros, ainda, dizem que tudo isso de construir uma proposta política de baixo para cima é “teatro” ou “cortina de fumaça”.
É, pode ser. Ou poderia ser caso Marina e seus seguidores tivessem algum poder em risco ou se outro capital ela possuísse além de quase 20 milhões de votos. A Rede pode arriscar qualquer formato porque não tem nada, absolutamente nada a perder. Lembra, neste sentido, uma outra agremiação “grassroots” fundada por operários e intelectuais nos anos 1980 e cuja história nós já conhecemos. Seria interessante ver o que diziam os analistas políticos na época sobre as perspectivas de poder daquele partido.
“Quando eu dizia que era um partido para defender o meio ambiente as pessoas aderiam na hora”, conta Marina, sobre a panfletagem que fizera na véspera na Feira do Guará, uma espécie de Mercado Municipal de Brasília. Compara a reação do público à notória falta de interesse da mídia pela temática ambiental (veja bem, é ela quem está dizendo). No ato, um pequeno constrangimento: o ex-amigo Jorge Viana, com quem Marina rompeu publicamente em 2011, na época da votação do Código Florestal no Senado, estava lá comendo pastel e recusou-se a assinar pela criação da Rede.
Emplacar o meio ambiente como agenda unificadora da sociedade é o segundo desafio da Rede. Quando ministra, Marina tentou disseminar essa “transversalidade” da questão no governo, mas foi transversalizada no meio do caminho por Dilma Rousseff e os governadores da Amazônia e eventualmente forçada a fazer uma inflexão civilizatória para fora do gabinete. O diabo é que não existe um filho da mãe neste país, nem o parlamentar tocantinense mais amigo da motosserra, que seja declaradamente contra o tal “meio ambiente”. Muitas empresas entendem que o “meio ambiente”, ou melhor, a “sustentabilidade”, é parte importante do seu negócio. No mínimo, ajuda a poupar recursos (e dinheiro) e fazer uma boa figura com o consumidor. O biscoito esfarela na hora de colocar parâmetros na “sustentabilidade”, palavra que Hobsbawm sabiamente apontou como “convenientemente sem sentido”.
Nem a Rede sabe ainda que parâmetros são esses. Aparantemente eles começam nas regras de financiamento: não se aceitará doação de empresas de “cigarro, bebida, armas e agrotóxicos”. O corte, como bem apontaram meu ex-colega Fernando Rodrigues e meu correligionário Hélio Schwartsman, não faz o menor sentido. Cigarro e bebida eu consigo entender. Mas armas e agrotóxicos? No limite, a indústria bélica colabora com a sustentabilidade devido ao alto conteúdo tecnológico de seus produtos, gerando emprego de qualidade e reduzindo a pressão sobre os recursos naturais (é esse o tipo de desenvolvimento ao qual Marina aspira). Os satélites que a então ministra usou com sucesso para fiscalizar o desmatamento na Amazônia em tempo real são subprodutos de um complexo industrial-militar. Raciocínio análogo vale para os agrotóxicos: eu também preferiria passar sem eles, mas é preciso antes combinar com os insetos. Do contrário, estamos condenando a agricultura a baixa produtividade e extensa ocupação de terras. Fora, claro, que empreiteiras e bancos estão fora da peneira. O capitalismo é cruel. O ideal seria aceitar doações apenas de pessoas físicas, mas a Rede não iria muito longe desse jeito.
O terceiro desafio da Rede é de origem metafísica. Marina é uma religiosa cercada de ateus. Não esconde que é contra o aborto, o que lhe rendeu uma extensa parcela dos votos evangélicos em 2010. Nunca perguntei a ela o que acha do casamento gay, mas desconfio que seja contra. A Rede está condenada a tergiversar sobre os dois temas durante a campanha. Mas quem não o fez? Nem Barack Obama firmou posição sobre o casamento gay (o aborto já é legal em vários Estados dos EUA) no primeiro mandato — deixou para sair do armário depois de reeleito.
O primeiro e maior problema do novo partido, claro, é virar partido. Aqui fica claríssimo que 2014 já começou. Os dois maiores ameaçados pela Rede, PT e o condomínio PDSB-DEM (com Marina puxando votos dos insatisfeitos com lulismo à esquerda e Eduardo Campos puxando os à direita, não sobra muita coisa para Aécio Neves), articulam na Câmara uma mudança nas regras de criação de partidos políticos. Marina não seria beneficiada pela regra que permite a um parlamentar em exercício do mandato mudar de partido, da qual gozou o PSD. Aposto e ganho como o PSD apoiará amplamente a mudança na lei.
“O Supremo deve ter algo a dizer sobre isso”, pondera Marina, enquanto dispara pela Principal.
A espiral da morte, agora em 3D
ACABA DE SER PUBLICADO on-line o artigo científico mais importante do ano sobre mudança climática. Um grupo de cientistas europeus e americanos conseguiu estimar diretamente a redução do volume do gelo marinho no oceano Ártico usando dados de satélite. Para variar, o quadro mostrado pelas medições é mais feio do que o pintado pelos modelos computacionais: o gelo do polo Norte, além de cada vez mais curto em área, está também mais fino.
O estudo, aceito para publicação no periódico Geophysical Research Letters, mostra que entre 2003 e 2012 o volume do gelo marinho caiu 36% no outono (época do ano em que ele atinge sua extensão mínima), de 11,9 milhõers para 7,6 milhões de quilômetros cúbicos, e 9% no inverno (estação em que atinge a extensão máxima), de 16,3 milhões para 14,8 milhões de quilômetros cúbicos, e sugere que esse afinamento pode estar por trás da redução recorde na extensão mínima do mar congelado no Ártico observada no ano passado. O declínio observado no outono é 60% maior do que o previsto pelo principal modelo usado para estimar o volume do gelo no Ártico, mas cerca de 25% menos do que o modelo calculara para o inverno.
A extensão do gelo no polo Norte é monitorada praticamente em tempo real com a ajuda de satélites. Todo ano os cientistas que estudam o tema começam a ficar nervosos a partir de agosto para saber se o degelo máximo será ou não maior que o de 2007. Desde aquele ano, quando a área sofreu uma redução brutal em relação à média histórica, eles previam que o Ártico havia entrado numa “espiral da morte”, na qual o degelo quebraria recorde após recorde até o oceano glacial estar completamente oceano e nada glacial nos verões, o que deve acontecer antes do fim deste século. A falta de gelo significa mais calor absorvido pela Terra, o que significa ainda menos gelo, e assim por diante. O recorde de 2007 foi quase quebrado em 2011 e quebrado de longe em 2012.
O diabo é que a área de gelo marinho conta só metade da história. Como estamos falando de um objeto tridimensional, a estimativa do volume total de gelo é um dado tão importante quanto ou mais importante que sua extensão. Não refresca em nada o gelo se recuperar no inverno se ele for fino e derreter todo no verão seguinte. O que importa para a saúde do polo é o gelo permanente, aquele que se acumula durante vários anos e atinge espessuras de 6 metros ou mais. E esse está cada vez mais raro.
Quão raro, porém, é uma medição tinhosa. Satélites que estão voando a centenas de quilômetros da superfície têm dificuldade em diferenciar a camada de neve superficial do gelo duro debaixo dela e outras sutilezas, como a porção, às vezes de alguns centímetros apenas, de gelo da banquisa que fica acima da superfície do mar (o chamado “freeboard”). Para piorar, o primeiro satélite especializado em medir gelo, o americano ICESat, morreu em 2008 e precisou ser trocado por uma série de campanhas aéreas da Nasa, incapazes de cobrir a mesma área monitorada pela espaçonave. Nos últimos anos, os cientistas precisaram lançar mão de medições pontuais feitas in situ e com o auxílio de aviões, extrapolar esses dados para todos os 7 milhões de quilômetros quadrados do oceano Ártico e mandar um computador calcular o volume. O período de coleta do ICESat foi curto demais para validar o principal modelo de volume de gelo usado hoje, o Piomas, da Universidade de Washington.
Entram em cena outro satélite glaciológico, o europeu CryoSat-2, e uma série de algoritmos sofiscicados desenvolvidos pelo grupo de Katharine Giles, do University College London. O grupo coletou dados do CryoSat em 2010/2011 e em 2011/2012 e a série de dados do ICESat de 2003 a 2008 e bolou uma série de jeitos espertos de interpretá-los que meu conhecimento de matemática e a paciência do leitor me impedem de explicar aqui. Para calibrar os dados, Giles e colegas valeram-se de missões aéreas europeias e americanas, além de dados coletados de baixo para cima por submarinos nucleares que atravessam o polo Norte. Isso possibilitou, nas palavras dos cientistas, “estender o registro do IceSat” até 2012, o que forneceu a primeira observação das mudanças de volume da banquisa ao longo de uma década.
“Os dados revelam que o gelo marinho espesso desapareceu de uma região ao norte da Groenlândia, do Arquipélago Canadense e do nordeste de Svalbard”, disse Gilles em comunicado à imprensa.
A boa notícia nesse front foi dada longe do polo, em Washington, na noite de anteontem: em seu primeiro discurso ao Congresso como presidente reeleito, Barack Obama deu um ultimato aos parlamentares e disse que, se eles não fizerem alguma coisa a respeito da mudança climática via um projeto de lei, o Executivo o fará via regulações da EPA (Agência de Proteção Ambiental). Obama também prometeu usar dinheiro do petróleo para montar um fundo que financie tecnologias energéticas limpas. Se você acha que já ouviu falar nisso, é porque ouviu mesmo: o Brasil tem um fundo desses criado desde 2009, o Fundo Clima, que nosso Congresso matou no debate tosco dos royalties diante dos olhos impassíveis do Palácio do Planalto.