Arquitetura da destruição

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Se os cem dias de governo de Jair Bolsonaro fossem um filme, um bom candidato seria um documentário sueco clássico dos anos 1990: Arquitetura da Destruição, do cineasta Peter Cohen. O filme mostra como Adolf Hitler fez o que fez na Europa movido por um profundo – embora bem zoado – senso estético.

Pintor frustrado, que teve entrada recusada na Academia de Arte de Viena, Hitler sofreu influência torta dos ideais clássicos de beleza e bravura louvados por Richard Wagner na ópera Rienzi. O libreto conta a história do tribuno romano que desafia a nobreza (a “velha política”) para conduzir o povo a um futuro brilhante. Hitler buscou erguer na Alemanha esse futuro brilhante, espelhado num passado glorioso imaginário. Para isso, seria preciso destruir a antiga ordem, eliminar as “raças decadentes”, os doentes e deformados, os loucos (os outros, claro) e a “arte degenerada”. Em seu lugar surgiria uma sociedade harmoniosa e perfeita.

Parte desse esforço seria implementado com a remodelagem de Berlim, encomendada ao arquiteto Albert Speer e que nos deu os horrorosos edifícios monumentais de inspiração grega do nazismo. Outra parte viria da destruição das cidades dos inimigos. Mais de uma vez Hitler flertou com a ideia de aniquilar Paris, o que só não fez em 1940 por achar que Berlim ficaria muito mais bonita. Para Moscou o plano era mais radical: afogar a cidade, transformando-a numa represa.

O bolsonarismo é movido por similar, digamos, pulsão estética. Quase 58 milhões de eleitores votaram num projeto político cujo objetivo declarado é destruir “tudo o que está aí”: a ordem política “corrupta”, a elite intelectual “degenerada” e “gayzista”, a esquerda, que tão bem encarna o papel dos judeus como inimiga do povo brasileiro, e seus co-conspiradores na imprensa. Não faltam tampouco no imaginário bolsonarista as “raças decadentes”: os beneficiários do “bolsa-farelo”, tratados a tiros de sniper no Rio de Wilson Witzel; os quilombolas, que “não servem nem para procriar”; e os indígenas, os “indolentes” do general Mourão, que não podem mais viver “como animais num zoológico” e precisam ser “integrados” à sociedade brasileira.

Menos claro é o que a revolução militar-olavista-neoliberal-evangélica quer construir depois de botar tudo abaixo. Bolsonaro nunca especificou qual era seu projeto de país, mas, para sermos justos, tampouco o eleitor lhe perguntou. Autocrata por autocrata, pelo menos Hitler tinha vantagem neste aspecto.

No desconfortável papel de Paris e Moscou, as cidades marcadas para morrer, está provavelmente a Constituição de 1988. Na posse, Bolsonaro jurou, hahaha, respeitar a Constituição. (Não houve um tirano eleito na história da humanidade que não tenha feito a mesma promessa.) No entanto, a remodelagem da administração federal, entregue a arquitetos de reconhecido talento como Ônix Lorenzoni e o saudoso Eduardo Vélez, conta uma história bem distinta. Embora poucas violações diretas à Carta tenham sido cometidas até aqui, certamente seu espírito está sob ataque. Isso possivelmente é mais deletério para a democracia brasileira do que estupros pontuais, que de resto sempre podem ser detidos no Supremo.

A Constituição de 88 foi, como já escreveu o jornalista Marcelo Leite, uma das raras ocasiões em que o Brasil rebelou-se contra si próprio. Numa catarse da sociedade recém-liberta de uma ditadura de 21 anos, os constituintes mergulharam numa espécie de orgia democrática. Consagraram princípios muito avançados de participação social, vedação à discriminação e direitos difusos. Por exemplo, pouca gente se dá conta, mas há uma vinculação explícita da ordem econômica (art. 170) à função social da propriedade (parágrafo III) e à defesa do meio ambiente (VI). Ou seja, a sustentabilidade no Brasil é previsão constitucional. (A turma que tem saudades da escravidão nunca gostou disso e tem agido nos almoços de terça e no Congresso para minar esses princípios.) Há um artigo inteiro (225) dedicado a garantir o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, que é “direito de todos”. Há um artigo inteiro (231) sobre povos indígenas. Tem um monte de problemas? Claro. Envelheceu? Em vários aspectos. Paris também tem problemas e Paris também envelheceu. Não é por isso que precisa ser patrolada. E é isso o que o governo eleito vem fazendo em áreas como direitos humanos, meio ambiente, participação social, educação e redução das desigualdades.

Quando Bolsonaro golpeia a espinha dorsal da proteção aos direitos indígenas, por exemplo, está represando o rio Moscva para obliterar a Carta Magna. A determinação do presidente de não demarcar mais “um milímetro sequer” desses territórios evidentemente viola a Constituição, mas a ação do governo é muito mais insidiosa – e grave – do que isso: quebrou-se por Medida Provisória a ligação do índio com a terra, ao se mandar a Funai para o Ministério do Proselitismo Evangélico da menina-que-veste-rosa e entregar as terras ao Ministério da Bancada Ruralista, nas mãos de um pistoleiro de filme de Eduardo Coutinho. A política indigenista oficial leva o racismo ao coração do Executivo. Os constituintes não previram que um líder eleito pudesse fazer isso.

Da mesma forma, o infame Decreto 9.759, publicado na última sexta-feira, que extingue todos os colegiados da administração federal criados por decreto, é uma bomba V2 sobre a Torre Eiffel. Trata-se de mais um caso de decisão política tomada de orelhada, sem análise técnica e sem nenhuma justificativa que não seja demonstrar poder e animar a militância. O episódio lembra a crueldade do fim do convênio com Cuba no Mais Médicos, que deixou centenas de milhares de pessoas sem atendimento nos rincões, ou a “despetização” de Ônix na primeira semana na Casa Civil, quando fez um expurgo tão radical que ficou sem gente parar operar o ministério. O ministro do liquidificador chuta quando diz que são 700 colegiados a serem extintos e mente quando afirma que a medida visa eficiência e economia – a imensa maioria dos cargos de conselheiro é sem remuneração. O que se busca é reduzir a participação social no governo e aparelhar os conselhos que forem “desextintos”, nomeando seus membros entre os fiéis de alguma das massas do teratoma político bolsonarista. Mais um princípio de 88 se desfaz, numa lembrança sinistra do artigo 1º da Constituição de 1967: “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.

Na área ambiental a destruição avança em ritmo de Blitzkrieg. Em cem dias o governo cumpriu seu objetivo inicial de promover o fechamento branco do Ministério do Meio Ambiente, neutralizando-o sem precisar passar pelo desgaste de fundi-lo à Agricultura, como se desejava.

Como nos EUA de Donald Trump, Bolsonaro botou à frente do ministério um lobista de um setor regulado – no caso, o agronegócio –, que tem agido de acordo. Os primeiros passos foram dados na reestruturação do governo, com a pulverização das atribuições do MMA entre outras pastas: águas e saneamento para o antigo Ministério das Cidades, Código Florestal para Agricultura, licenciamento para a Secretaria de Governo, mudança climática e controle do desmatamento para lugar nenhum. O ministro, como seu chefe um mentiroso compulsivo, foi questionado pela imprensa sobre a extinção da área de clima na primeira semana de governo e disse tratar-se, ao contrário, de uma “promoção”, prometendo que criaria uma coordenação especial para o tema em seu gabinete. Não criou, e descobriu-se depois que o setor estava desde o início condenado: a equipe de transição considerava o setor um “cabide de empregos” e domínio de “organismos incontroláveis”, eufemismo para ONGs que o governo não conseguiria sufocar.

O titular do Meio Ambiente, assim como o das Relações Exteriores, não acredita em mudança climática: considera-a uma “discussão acadêmica” e chegou a dizer, no dia seguinte a dez mortes causadas por uma chuva extrema no Rio, que as pessoas que estão “com o pé na lama” têm problemas mais “tangíveis” do que clima com que se preocupar. O que importa mesmo, segundo ele, é cuidar de lixo e esgoto, agendas sobre as quais, de resto, sua governança é limitada.

Na fiscalização ambiental mais uma promessa de campanha de Bolsonaro foi cumprida: acabar com a “indústria da multa”, que é como o presidente chama o Ibama e o ICMBio. Começou com o questionamento do contrato de aluguel de veículos para a fiscalização do Ibama e terminou com a criação de uma burocracia extra (no governo cujo mantra é “desburocratizar”) para impedir a cobrança de multas. Não faltou nem a punição exemplar ao fiscal que ousou multar em 2012 o então deputado Jair Bolsonaro, que teve seu auto anulado na mão grande e depois perdeu o cargo. Tudo com a conivência do presidente do órgão, que participou da equipe de transição e aparentemente botou a própria carreira à frente do setor que deveria proteger.

Igualmente bovino foi o presidente do Instituto Chico Mendes, que neste fim de semana calou-se enquanto o ministro humilhava servidores do instituto em um evento com (quem mais?) ruralistas no Rio Grande do Sul. O ICMBio, lembremos, foi uma autarquia destinada à extinção pelos planos da equipe de transição. Já havia aceito alegremente a censura prévia às suas comunicações. Agora escuta ameaças de processo administrativo a seus funcionários por não estarem um evento para o qual não foram convidados. Reagirá da mesma forma quando, digamos, as Florestas Nacionais forem retiradas de sua governança e passarem para o Ministério da Agricultura?

Atualização: algumas horas depois da publicação desde post, o presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard, pediu demissão, na esteira do episódio narrado acima. Eberhard decidiu não sacrificar seu passado e não aguentar mais assédio moral. Resta saber se será seguido por outros funcionários do ministério e se tomará alguma providência judicial contra o ex-chefe.

É assim, agredindo, mentindo e tergiversando, que os Sturmbannführer ambientais bolsonaristas vêm não apenas tornando letra morta o artigo 225 da Constituição como subvertendo o próprio princípio da ação legal do Estado nessa área: as investidas contra os agentes e contra dispositivos consagrados de fiscalização, como a destruição de equipamentos, sugerem que o infrator ambiental é, por princípio, inocente, mesmo que seja apanhado com a proverbial vara na mão e baldes cheios de peixes numa área protegida, e que o agente fiscalizador é, por princípio, culpado. Mais do que os escândalos pontuais, as crueldades cotidianas do ministro e o acinte permanente de ter um condenado por fraude ambiental mandando na área ambiental, este é o fato mais grave. Porque entramos no território da perversão e da ficção, que tão bem caracterizou os regimes totalitários do século passado.

A esperança, se é que dá para falar de esperança, é que os estetas do caos também erram. Frequentemente se deixam arrebatar pelo mundo fictício que constroem e são surpreendidos quando a realidade reage. Hitler escolheu a época errada do ano para marchar rumo a Moscou e enfrentou a resistência espetacular do Exército Vermelho. Da mesma forma, seu plano de aniquilar Paris foi vencido pela boa e velha diplomacia. Se a história nos autoriza a esperar sempre o pior de autocratas do naipe de Bolsonaro, ela também nos deixa lições valiosas de como lidar com eles. É bom já ir botando-as em prática.

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