Ruth Künzli e as origens do homem

 

Matéria publicada na Unesp Ciência de setembro de 2009.

Com um grande fragmento de cerâmica nas mãos, o fazendeiro Luiz Alvim procurava por um geólogo na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp em Presidente Prudente. Sua propriedade em Itororó do Paranapanema, distante 26 km da cidade, fora duramente afetada pelas chuvas que castigaram o Sudeste e o Sul do Brasil em meados de 1983 – sob influência do fenômeno El Niño. No oeste paulista, a grande cheia do rio Paraná, ainda hoje lembrada, inundou também cidades às margens de seus afluentes, entre eles o Paranapanema. Além de invadir casas e terras agrícolas, as águas revolveram sedimentos do passado, trazendo à tona relíquias que abriram um novo capítulo na arqueologia brasileira.

Era fim de tarde e o geólogo não estava. “Se é por conta desse material aí, pode falar comigo”, disse a antropóloga Ruth Künzli ao fazendeiro, com o peculiar tom decidido pelo qual ela se destacou na universidade, na região e entre os colegas de profissão.

No dia seguinte, ela e alguns colegas da faculdade foram até a propriedade dele. Lá se depararam com uma enorme quantidade de cerâmicas indígenas à flor do solo, antes cobertas pela camada de terra que a inundação recente havia levado – vestígios de um grande grupo de índios tupi-guarani que habitara a região havia aproximadamente mil anos. O sítio arqueológico Alvim foi o primeiro de muitos outros identificados por Ruth e colegas na região de Presidente Prudente,  local que, por sua riqueza hidrográfica, foi um grande polo de atração humana desde tempos imemoriais.

Por causa desta descoberta, a antropóloga Ruth viu-se impelida a se tornar arqueóloga. Não que estivesse insatisfeita com sua área de trabalho. A Antropologia a cativou desde o início do curso de Geografia, por influência do padre e etnólogo alemão Guilherme Saake, seu professor na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Presidente Prudente, um dos institutos isolados que passaria a compor a Unesp a partir de 1976 e onde ela começou a lecionar etnografia em 1967. Dois anos antes terminara uma especialização em Antropologia Física na Suíça, país que visitou inúmeras vezes. De lá emigraram seus pais, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, para fincar raízes em Prudente em 1939, onde teriam sua filha única, que não se casou nem teve filhos.

O tesouro milenar de Itororó do Paranapanema surgiu na vida de Ruth apenas dois anos depois da dissertação de mestrado em Antropologia Social sobre “o ensino agrícola e a vida rural no sudoeste paulista”, defendida na USP. Nessa época o doutorado já estava encaminhado – ela iria estudar a influência da colonização germânica na região. Mas aquelas cerâmicas atiçaram duas antigas paixões. De um lado, a Antropologia Física, que lida diretamente com as origens do homem. De outro, a cultura indígena, cujo fascínio a levou a criar, em 1972, um museu de etnografia com peças de diversas partes do país e do mundo que comprava ou ganhava de colegas e alunos.

Ruth sabia que o material de Itororó era assunto para especialistas, o que ela evidentemente não era. Então fez contato com o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, que logo enviou o arqueó-logo José Luiz de Morais para analisar o material e o local. “Ao chegar lá tive uma grata surpresa, porque ela havia sido minha professora em Sorocaba”, conta Morais, também formado em Geografia, referindo-se à antiga Fundação Dom Aguirre, hoje Universidade de Sorocaba, onde Ruth foi professora de Antropologia e Etnografia nos anos 1960.

Acompanhar de perto o trabalho dos colegas da USP no sítio Alvim foi, por assim dizer, um estágio intensivo em Arqueologia e, obviamente, a tese sobre a colonização alemã ficou para trás. Sob a orientação de Morais, o novo projeto de doutorado tinha como objetivo comparar os recentes achados arqueológicos das margens paulista e sul-mato-grossense do alto rio Paraná, embora eles fossem pouquíssimos na época, se comparados aos mais de 300 sítios que se tem hoje. Em 1986, porém, a descoberta de um sítio de arte rupestre na região deu uma nova guinada no doutorado de Ruth.

Os desenhos encontrados em Narandiba, a 41 km de Prudente, em nada se assemelham às figuras humanas e animais pintadas em paredes de pedra, como as encontradas na Serra da Capivara, no Piauí. São imagens geométricas enigmáticas, gravadas em rochas de basalto e dispostas horizontalmente, no chão. Alguns só podem ser vistos em certas horas do dia, dependendo da inclinação do Sol, “o que sugere que aqueles povos poderiam ter algum conhecimento astronômico”, explica Ruth.

Como foi impossível datar o material, a idade destes artistas primitivos é um mistério. Entretanto, a ocupação humana da área parece bem antiga. Fragmentos de pedra lascada de cerca de 7.000 anos foram encontrados na área, mas, segundo a arqueóloga, é difícil estabelecer uma relação direta com as gravuras – até hoje únicas no Estado de São Paulo e raras no Brasil. “Com a descoberta desse sítio percebemos que estávamos, de fato, diante de um estudo original, muito mais apropriado para um doutorado”, relembra Morais. “E por se tratar de arte rupestre, a formação dela em antropologia foi muito importante”, destaca. Em 1991, Ruth defendeu a tese na USP, aos 52 anos. Foi a primeira arqueóloga da Unesp.

Às margens do rio Paraná
Dois anos depois, por volta da meia-noite, toca o telefone na casa de Ruth. Era o delegado de Presidente Epitácio, a 104 km de Prudente, pedindo que ela desse uma passadinha na cidade assim que possível. Na manhã daquele dia, um grupo de funcionários de uma olaria na cidade vizinha coletava argila, com uma escavadeira, em um barranco na margem do rio Paraná, quando de repente a máquina bateu em algo duro – dois grandes recipientes de cerâmica. Com o choque, um deles se trincou, para logo se espatifar revelando seu conteúdo: ossos humanos. Cismados, os funcionários levaram tudo para a delegacia. Um dentista foi chamado para analisar a arcada dentária e rapidamente concluiu que o “presunto” era muito antigo. Melhor chamar o pessoal da universidade, sugeriu.

E para lá se foi Ruth, para encontrar urnas funerárias e outros artefatos cerâmicos, restos de fogueira e de alimentação, além de pedra polida e lascada no sítio arqueo-lógico Lagoa São Paulo 2, assim chamado por causa de outro sítio, o Lagoa São Paulo, escavado perto dali nos anos 1980 por uma equipe do MAE-USP.

É o mesmo tipo de material identificado nas incontáveis vezes que Ruth retornou à margem esquerda do rio Paraná, especialmente entre 1997 e 1998, quando percorreu sistematicamente um longo trecho que seria inundado em 2000 para formar o lago da Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Mota, mais conhecida como Porto Primavera. Ali ela e sua equipe encontraram 104 sítios arqueológicos, dos quais puderam escavar apenas 15. Ainda assim, levaram para o laboratório cerca de 78 mil peças e fragmentos. A limitação no número de sítios escavados, assim como os poucos meses para realizar o trabalho, constava no contrato assinado com a Cesp (Companhia Energética do Estado de São Paulo) para o salvamento arqueológico de Porto Primavera. Como coordenadora do projeto, Ruth lamenta pelo material que está embaixo d’água, mas pondera: “É muito irônico que uma obra que destrói este patrimônio é, ao mesmo tempo, o que torna possível a sua descoberta”.

Elefante branco
A construção de Porto Primavera teve início em 1980, atrasou quase 15 anos e custou mais de cinco vezes o valor previsto. Com o maior lago artificial do Brasil, sete vezes o tamanho da baía de Guanabara, sua produção de energia é inferior à de Itaipu. Na reta final da obra, enquanto a Cesp e ambientalistas brigavam na Justiça por causa do impacto socioambiental na área, Ruth e sua equipe buscavam incessantemente vestígios de ocupação ancestral na margem esquerda, do lado paulista. Na direita, o trabalho ficou a cargo de arqueólogos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Foi uma corrida contra o calendário. “Por contrato, só podíamos escavar 20% dos sítios identificados e mesmo assim era pouco tempo. Recolhemos o que foi possível, mas não esgotamos nenhum deles”, conta a arqueóloga.

O salvamento arqueológico de Porto Primavera é um exemplo emblemático de uma nova tendência que vem sendo chamada de “arqueologia de contrato”, explica Ruth. Antigamente os pesquisadores dependiam mais do relato de terceiros para encontrar um sítio, e então a escavação geralmente se estendia por vários anos, até que ele fosse esgotado. Mas a partir de 1986, com a regulamentação da resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) que exige o levantamento arqueológico como parte do estudo de impacto ambiental de obras que exploram recursos naturais, é cada vez mais comum a identificação de sítios que, embora estejam destinados à destruição, podem antes ter seu material (ou parte dele) salvo para estudos posteriores.

“Isso é bom porque a empresa financia a descoberta e a escavação, mas ela também impõe regras e prazos muito curtos”, afirma. “Porto Primavera foi um grande aprendizado porque tivemos de adaptar muitas técnicas para nos adequar ao tempo.” Outra consequência desta nova demanda por este tipo de serviço é o surgimento de empresas de consultoria em arqueologia, o que ela vê como algo positivo, porque expande o mercado de trabalho para estes profissionais, antes restrito à universidade.

O sítio Lagoa São Paulo 2, em Presidente Epitácio, escapou da inundação, mas, assim como outros em torno do lago de Porto Primavera, está ameaçado pelo assoreamento. A Cesp não previa que o vento que entra pela calha do rio Paraná produzisse ali ondas de até dois metros. “As ondas estão solapando o barranco e levando o material”, diz Ruth, que agora coordena a segunda fase do projeto de salvamento arqueológico da área, cujas escavações devem terminar em abril de 2010. Ela mesma não vai a campo desde 2002, mas pretende respirar poeira novamente até o fim do ano. “Eu gosto porque, estando no local, é mais fácil imaginar como aquelas pessoas viviam.”

O trabalho de Ruth permitiu que se pintasse um quadro do que era o oeste paulista cerca de mil anos atrás. Grandes grupos de índios tupis-guaranis viviam às margens do rio Paraná (“parecido com o mar”, em tupi), preferindo estabelecer suas aldeias no encontro deste com um rio menor. Enquanto o rio grande garantia a fartura de peixe, o pequeno dava água para beber, cozinhar, além de diversão segura para as crianças. Com a mandioca cultivada produziam o cauim, fermentado alcoólico comum entre os povos pré-colombianos. Foram grandes ceramistas, confeccionando vasilhas, pilões, entre tantas outras peças, muitas vezes decoradas externa e internamente; além das urnas com as quais enterravam seus mortos. Poliam pedras para fazer seus machados e outros acessórios de caça. Provavelmente eram seminômades, deixando para trás suas cabanas e roças a cada quatro ou cinco anos.

A descrição vai sendo feita pela pesquisadora enquanto mostra para a reportagem da Unesp Ciência uma pequena parte do material coletado em mais de duas décadas e atualmente exposto no Centro de Museologia, Antropologia e Arqueologia (Cemaarq), criado por ela mesma em 2000. O restante, ao todo 98 mil peças e fragmentos, está guardado no laboratório que fica atrás do museu.

Em seguida, ela apresenta os objetos em pedra lascada, bem mais antigos. Encontrados em camadas mais profundas do solo, de até 3,5 m, eles têm cerca de 7.000 anos. Saíram das mãos de indivíduos que viviam da caça, da pesca e da coleta de frutos, vagando pelo território em pequenos grupos, sem se fixar na terra. Com a paciência de uma professora devotada, Ruth explica a diferença fundamental entre as pedras polida e lascada: “A pedra polida era inviável para os nômades, porque o processo é demorado, pode levar meses. E elas são pesadas, difíceis de carregar. Já os artefatos em pedra lascada, como as pontas de seta, muito menores e mais leves, podiam ser feitos em minutos, sempre que fosse necessário”.

Ruth Künzli é antes de tudo uma professora, reconhece o ex-aluno José Luiz de Morais, atual diretor do MAE-USP. Adora dar aula para o primeiro ano de Geografia porque os alunos vêm sem “vícios”, segundo ela. “Gosto de começar falando das origens do homem, de evolução. Percebo que isso mexe muito com a cabeça deles”, diz. A tática funcionou com Emília Mariko Kashimoto e Rosângela Custódio Cortez Thomaz, duas estagiárias dos anos 1980. “Ela é uma professora enérgica, a mais durona que tive na graduação”, confessa Rosângela, que hoje coordena para Ruth o trabalho de escavação em Porto Primavera, além de ser diretora executiva do câmpus experimental da Unesp em Rosana, a 218 km de Prudente. Emília é  professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e pesquisa a margem direita do lago da hidrelétrica, onde foram identificados 199 sítios. “Comecei a trabalhar com ela logo no início do curso e me apaixonei pela arqueologia”, conta.

Na falta de um programa de pós-graduação em Arqueologia na Unesp, Rosângela, Emília e outros alunos que Ruth iniciou na arte de escavar o passado foram acolhidos pelo MAE-USP. A primeira orientação de mestrado dela é recente, defendida em julho passado. “Havia uma resistência da Geografia em aceitar um trabalho de Arqueologia. Finalmente começaram a entender que são disciplinas que andam muito juntas”, justifica.

Longa atividade
No dia 10 de novembro Ruth completará 70 anos. E está angustiada porque, como todo servidor público que atinge essa idade, será obrigada a se aposentar. “Eu não sei como vou reagir se isso realmente acontecer”, confessa. Sua esperança é poder continuar na ativa. Ela já admite, porém, estar disposta a diminuir o ritmo de aulas e a delegar mais o trabalho de pesquisa, embora ainda não saiba bem o que fazer, caso tenha de se afastar realmente, com um projeto recém-aprovado pelo CNPq para ser executado nos próximos dois anos. O que Ruth não quer mesmo é abrir mão do museu, onde orienta vários estagiários em um grande número de atividades de divulgação científica. No ano passado, cerca de 15 mil estudantes de ensino fundamental e médio de Presidente Prudente e vizinhanças visitaram o local, número que ela espera ampliar com um convênio feito com a Secretaria Estadual de Educação.

Ruth também criou o Circuito Científico Cultural, que inclui, além do Cemaarq, o Laboratório de Solos, a Estação Meteo-rológica, o Centro de Ciências e a Sala de Leitura, todos da Faculdade de Ciências e Tecnologia. Em visitas agendadas, grupos de crianças e jovens fazem o percurso, que conta com teatro de fantoches, apresentação musical, entre outras atrações lúdico-científicas. “Desenvolvemos um trabalho pedagógico para envolver os professores, para falar a língua das crianças e ter mais controle sobre elas, porque é difícil. E o resultado tem sido muito bom”, orgulha-se.

Todos os anos ela também prepara atividades do museu para efemérides locais e nacionais, como a Semana do Índio em abril, a Semana dos Museus em maio, a Semana do Meio Ambiente em junho, a Semana do Folclore em agosto e a Primavera dos Museus em setembro. “É, às vezes eu fico um pouco sobrecarregada”, reconhece. A auxiliar acadêmica e braço direito, Leonice Bigoni, define a chefe como “bastante agitada”. “Ela tem seis meses de licença-prêmio para tirar, mas nem lembra disso.” Levando em conta a vitalidade que Ruth demonstra e a longevidade da família (a mãe tem 98 anos), a aposentadoria compulsória parece mesmo um pouco precoce.

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