O outro cardápio da mandioca

Matéria publicada na Unesp Ciência de outubro de 2009.

Nossa mais tradicional raiz comestível não é só farinha ou petisco de bar. Estudos mostram as oportunidades e vantagens econômicas e ecológicas do etanol produzido a partir dela

Até o início de 2010, o Brasil vai começar a produzir etanol a partir de sua mais popular e original raiz comestível – a mandioca, também conhecida como aipim ou macaxeira. Duas usinas estão em fase final de montagem: uma em Botucatu, no interior paulista, e outra em Porto Nacional, no Tocantins. Elas fazem parte de um projeto de transferência tecnológica da Unesp cujo objetivo é oferecer a pequenos agricultores, principalmente das regiões Norte e Nordeste, um modelo de negócio sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental.

Não será a primeira vez que o país vai produzir etanol da mandioca. Nos anos 1970, época do Pró-Álcool, chegaram a ser implantadas nove usinas. Elas não vingaram por pelo menos duas razões. De um lado, houve problemas na articulação com os produtores do tubérculo. De outro, o grande sucesso industrial da cana-de-açúcar acabou por inviabilizar o negócio. É por isso que, desta vez, o foco no pequeno produtor está no cerne do projeto, segundo Cláudio Cabello, vice-diretor do Centro de Raízes e Amidos Tropicais (Cerat), do câmpus Lageado da Unesp em Botucatu.

Por ironia, essa planta originária da Amazônia, largamente difundida pelo continente e profundamente ligada com a cultura popular brasileira, já é usada para a produção de álcool na China, na Indonésia e nas Filipinas, onde sua principal finalidade é a adição à gasolina. Aqui, porém, o produto é mais atraente não como fonte de energia, mas como insumo para os mercados cosmético, farmacêutico, de bebidas e de tintas e vernizes.

O etanol é o segundo insumo mais usado pela indústria depois da água. E esses mercados demandam um álcool mais puro, como o da mandioca, o da batata-doce ou o do milho. Por isso eles são mais caros que o da cana-de-açúcar, que contém mais impurezas. “Nós temos um produto de melhor qualidade. Mas ao mesmo tempo sabemos que não podemos competir com os níveis espetaculares de eficiência do eixo da (rodovia) Castelo Branco”, afirma Cabello, referindo-se ao polo sucroalcooleiro do centro-oeste paulista.

Afora a invencível competição canavieira nos grandes centros, o etanol de mandioca pode vir a suprir pontos remotos do país onde o álcool de cana ou quaisquer outras fontes de energia têm dificuldades de produção e acesso, como a região amazônica. “Há lugares em que, para levar um litro de diesel, é preciso gastar dois litros (do combustível) só para o barco”, diz o pesquisador.  Assim, um produto mais limpo e que possa ser fabricado localmente e em pequena escala chamou a atenção da Eletronorte para o projeto do Tocantins.

“É uma fonte de energia mais barata e um novo modelo de geração de renda para os pequenos agricultores”, justifica Écio Muniz, gerente de desenvolvimento de energia em comunidades isoladas da Eletronorte. A estatal, que abastece nove estados da Amazônia Legal, investiu R$ 700 mil na empreitada, que contou com outros R$ 600 mil do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

Opção para assentamentos
Distante 60 km de Palmas, Porto Nacional tem 46 mil habitantes. O terreno onde vai funcionar a usina foi cedido pela diocese da cidade, e 180 produtores já formam uma cooperativa, boa parte deles assentados pela reforma agrária nos últimos dez anos. “Não existe um modelo econômico na região e queremos evitar que essas pessoas esgotem a terra e depois a abandonem, como é comum em assentamentos”, explica Luiz Eduardo Leal, diretor técnico do Instituto Ecológica, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que coordena o trabalho no Tocantins.

Segundo ele, o objetivo é que, operando em plena capacidade, a usina de Porto Nacional produza 8 mil litros de etanol por dia. Com o litro do produto vendido entre R$ 1,65 e R$ 1,70, o faturamento anual pode chegar a R$ 400 mil. Trabalhando com bastante eficiência é possível ter uma margem de lucro de 40% a 50%.

Sem eficiência não há viabilidade econômica, e aí entra a experiência do Cerat, que assessora o trabalho no Tocantins com base nos testes feitos localmente. A usina de Botucatu, que deve ficar pronta em outubro, é um pouco menor e teve financiamento da Finep, do Sebrae, da Unesp, do CNPq, além do apoio de três pequenas empresas que cederam máquinas e serviços. No total, o investimento foi de cerca de R$ 600 mil.  A planta terá capacidade para produzir 6 mil litros de etanol por dia, mas não deve operar a todo vapor, pois a ideia é usar a instalação para pesquisa e ensino, e para os interessados no modelo.

A tecnologia usada para obter etanol da mandioca não traz em si nada de novo. “Estamos usando os recursos disponíveis no mercado, numa nova configuração tecnológica”, diz Cabello. Isso inclui enzimas comerciais, eficientes e baratas, para degradar o amido em glicose, que é o substrato do processo de fermentação. Nele, leveduras bem conhecidas, também de fácil acesso e manejo, consomem a glicose e produzem etanol, que depois é separado do “vinho” por destilação. O fluxo de produção foi calculado para obter o máximo de eficiência: com 1 tonelada de mandioca espera-se fazer, em média, 170 litros de etanol – a mesma quantidade de cana produz apenas 70 litros de álcool.

O maior rendimento da mandioca explica-se pelo fato de o amido armazenado na raiz ser uma forma de energia muito mais compacta que a da sacarose estocada no colmo da cana, o que se reflete na diferença entre o balanço de energia das duas plantas, explica Cabello. Para cada joule (J) de energia investido na sua produção, o etanol de mandioca gera 1,76 J. Para a cana, este valor cai para 1,09 J.

A maior compactação energética do amido é a grande vantagem do álcool de mandioca e de outras raízes amiláceas, explica o botânico Marcos Buckeridge, um dos coordenadores do Bioen, programa da Fapesp de pesquisa em bioenergia. “Vale a pena investir na mandioca como fonte de energia, até porque não sabemos por quanto tempo o etanol da cana será economicamente viável.” Segundo ele, nada impede que, no futuro, a concorrência estrangeira (asiática, por exemplo) faça com a cana o mesmo que fez com a borracha no Amazonas na virada do século 20.

Cuidar para que a matéria-prima que vai chegar até a usina seja de ótima qualidade é outro aspecto importante do projeto. Para estudar as variedades de mandioca mais adequadas a cada tipo de solo, dos mais secos aos mais úmidos, por exemplo, o Cerat trabalha em parceria com o IAC (Instituto Agronômico de Campinas) e o Iapar (Instituto Agronômico do Paraná). A primeira colheita experimental está prevista para o início de 2010.

Outra vantagem do cultivo do tubérculo para o pequeno agricultor é não precisar colher toda a plantação de uma vez, já que ela não estraga na terra, destaca Cabello. “Ele pode colher conforme sua necessidade, empregando a mão-de-obra familiar, sem ter de recorrer a terceiros para não perder a colheita.” Cerca de 90% da produção de mandioca no Brasil vem da agricultura familiar. Segundo o IBGE, em 2008 foram produzidas 26,3 milhões de toneladas, colhidas em uma área de 1,86 milhão de hectares.

Os pesquisadores também tentam evitar eventuais riscos de o uso da mandioca para a produção de etanol comprometer a segurança alimentar. Para o diretor técnico do Instituto Ecológica, é possível evitar o problema com a exploração da capacidade atualmente ociosa das propriedades. Além disso, diz ele, o objetivo não é estabelecer a monocultura da mandioca, pois a raiz cresce bem em meio a outras culturas, que é a forma como os pequenos agricultores costumam plantá-la tradicionalmente.

Mudanças climáticas
O tubérculo ainda pode aumentar sua área de ocorrência nas próximas décadas em consequência do aquecimento global. Estudo divulgado no ano passado por Embrapa e Unicamp apontou que o aumento de temperatura, a longo prazo, pode ser benéfico para a cultura. Apesar de reduzir drasticamente o espaço para a mandioca no Semi-Árido e no Agreste nordestinos, pode aumentar a área total do país favorável ao seu plantio,  explica o pesquisador da Unicamp Hilton Pinto,  um dos autores do trabalho.  “O cultivo da mandioca na Amazônia será muito beneficiado pelo clima mais seco, mas também o Sul é favorecido, com a redução das geadas.”

Outra preocupação dos cientistas é com o impacto  ambiental da usina de etanol de mandioca. Além de seguir normas da legislação ambiental, eles buscam novas práticas. Uma das ideias é usar o excedente de leveduras e o resíduo lignocelulósico da fermentação no preparo de ração animal.

Em outro estudo, o objetivo é usar esses materiais para a produção de biogás. “Se eu conseguir aproveitar o biogás, posso mandá-lo para a caldeira (porque a produção de etanol requer altas temperaturas) ou queimá-lo e pedir crédito de carbono. Aí eu fecho o ciclo”, explica Cabello.  Segundo ele, a usina de Botucatu será um ambiente fértil para pesquisas. “É um projeto de transferência tecnológica, mas não significa que ele não possa alavancar estudos importantes”, diz. “O ferramental, que era o mais complicado, já está colocado.”

Os interessados na tecnologia do etanol da mandioca para pequenos produtores rurais não devem se preocupar com o patenteamento do processo pelo Cerat. “A patente é muito importante para a universidade, mas não haverá qualquer restrição de acesso a esse conhecimento”, diz.

 

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