Pesquisas no anel de luz

(publicado na UC dezembro/2010)

Alguns pesquisadores precisam de muita luz para trabalhar. E luz, nesse caso, na sua definição mais básica: a de um amplo espectro de radiação eletromagnética. Para analisar as entranhas microscópicas, moleculares ou atômicas de suas amostras, esses cientistas precisam ora de raios X, ora de luz ultravioleta ou infravermelha, de ondas de rádio ou até mesmo de luz visível. Tudo depende do material que querem conhecer melhor, da propriedade que pretendem medir e do fenômeno que precisam esmiuçar, seja ele físico, químico ou biológico. É a fase embrionária do que pode vir a ser o desenvolvimento de uma nova tecnologia.

Em 2009, essa necessidade de luz levou 2.320 cientistas de todo o país (e alguns de países vizinhos) a passar alguns dias, praticamente em regime de internato, no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que fica no distrito de Barão Geraldo, em Campinas (SP). Lá funciona, desde 1997, o único anel de luz síncrotron da América Latina. Um síncrotron (para os íntimos) é um acelerador de elétrons que emite simultaneamente – e com muita intensidade – um amplo espectro de radiação, sob a forma de feixes muito finos.

O equipamento é grande e sofisticado demais para caber no laboratório ou no orçamento individual de qualquer projeto de pesquisa. É por isso que a maioria dos 30 anéis de luz deste tipo em funcionamento no mundo são instalações multiusuário, que atendem à comunidade científica de uma determinada região e funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana, praticamente o ano inteiro.

Um dos usuários do LNLS é o engenheiro de materiais Celso Valentim Santilli, do Departamento de Físico-química do Instituto de Química da Unesp em Araraquara, distante 190 km de Campinas. A partir das 8 h do último dia 13 de outubro, logo após o feriado prolongado, Santilli e três de seus orientandos passaram 48 horas numa das 14 linhas de luz do anel, a chamada SAX-2, uma das duas linhas por onde passam apenas raios X de baixo ângulo, na sigla em inglês.

Considerando a quantidade de amostras que eles levaram na bagagem e todas as medidas a serem feitas, além dos naturais imprevistos que sempre surgem ao longo de um experimento, 48 horas não é muito. Como a próxima visita pode demorar vários meses para ser agendada, é preciso aproveitar cada minuto e se revezar na tarefa dia e noite. “É puxado”, resigna-se Eduardo Molina, aluno de pós-doc de Santilli.

O orientador acompanharia o trabalho do grupo até o fim daquela tarde, mas, por causa de compromissos no dia seguinte, voltaria para dormir em Araraquara, deixando a responsabilidade nas mãos dos três pupilos. “Quando é um experimento novo, ele (Santilli) fica, mas esse nós já fizemos outras vezes”, diz Molina. “Só não vai dar para dormir muito. (Na madrugada) vamos ter que trocar (de turno) a cada 3 ou 4 horas. O ideal era ter mais uma pessoa.”


Na caixa de amostras havia cerca de 60 “borrachinhas”, como eles mesmos chamam, aparentemente todas iguais. São polímeros híbridos, sintetizados no laboratório com base em compostos orgânicos (estruturas de carbono) e inorgânicos (metais, cerâmicas) para exibirem certas propriedades. O material é rígido, mas flexível e translúcido o suficiente para um feixe de raios X poder atravessá-lo.

Segundo Santilli, a “borracha”, impregnada por fármacos, tem a capacidade de absorver água, o que a faz expandir-se e liberar o medicamento. A ideia é que o material possa ser usado em curativos oclusivos (que protegem feridas contra infecções), dando-lhes a capacidade de liberar medicamentos diretamente no ferimento. Ou em lentes de contato que, da mesma forma, sejam empregadas no tratamento de doenças oculares ou após cirurgias de olho. Ainda não há produtos com essas características no mercado.

Jogando bilhar com raios X
O que Santilli e sua equipe querem conhecer é o perfil de absorção de água e de liberação do fármaco pelas “borrachinhas”. Para isso vão medir o espalhamento dos raios X, que ocorre quando o feixe de luz incide nas amostras. Cada uma delas contém diferentes concentrações de diclofenaco de sódio, um antiinflamatório dos mais tradicionais.

“É igual ao jogo de bilhar”, compara o pesquisador. Bem, não exatamente, pondera na sequência: “O raio-X é a bola branca que vai colidir com as outras bolas, causando um espalhamento (das últimas). O que estamos vendo é um choque inelástico”. No experimento, “o feixe vai colidir com nossa amostra, só que ela não se move. Então é o próprio raio-X que vai se espalhar para trás”. O que interessa é o ângulo desse espalhamento, que é geralmente baixo, tanto mais baixo quanto menor o tamanho da partícula (da amostra com a qual vai colidir), esclarece o pesquisador.

Como é praxe nas ciências experimentais, as coisas não deram certo logo de cara, como ficou evidente por volta das 10 h. Antes disso, houve uma discordância no grupo sobre a forma de fazer circular o soro fisiológico pelo porta-amostra, o que é necessário para que a “borrachinha” absorva água. Os três alunos resolveram montar um sistema de banho-maria diferente das outras vezes. Santilli torceu o nariz.

“Olha lá, para mim esse negócio não vai funcionar direito”, alertou. Mas deixou os rapazes se virarem enquanto explicava à reportagem que tipo de informação o espalhamento de raios X fornece: “Esse material tem cadeias moleculares bem reticuladas (parte orgânica), com “nozinhos” que parecem sílica (parte inorgânica). O pico de espalhamento que vamos ver nos dá o espaçamento entre esses “nozinhos”, que vão se distanciado conforme a “borracha” absorve água e libera o fármaco”, resume.

Enquanto isso, Mateus Borba Cardoso, o encarregado no LNLS pela SAX-2, faz os ajustes para que ela entre em ação. Esta linha trata-se, grosso modo, de um tubo que sai do anel onde os elétrons estão correndo acelerados (quase na velocidade da luz). Uma das peças mais importantes desse tubo é o monocromador, que filtra o feixe de luz e deixa passar apenas raios X. “O feixe é um pontinho de 1mm2 ou menos”, diz Cardoso. “É uma intensidade muito alta num ponto só. Portanto, esquenta. Precisa refrigerar para não danificar a amostra e o equipamento”, ressalta.

Além de dar assistência aos usuários na linha SAX-2, Cardoso também desenvolve sua própria pesquisa no LNLS. Formado em Química pela Universidade Federal de Pelotas, em 2009 ele voltou de um pós-doc no Oak Ridge National Laboratory, mantido pelo Departamento de Energia do governo americano. Atualmente orienta dois alunos de iniciação científica e outro de pós-doc (saiba mais sobre a pesquisa interna no LNLS no blog da Unesp Ciência: http://bit.ly/btBncb) .

Com tudo preparado, a equipe se retira da “cabana”, o lugar onde o experimento de fato acontece e as regras de proteção radiológica são muito rígidas. Na bancada do lado de fora, a linha é acionada pelo computador. Só depois de meia hora é que o grupo se deu conta de que o sistema de banho-maria não estava funcionando direito. Santilli fez aquela cara de “Eu não falei?”.

O experimento é interrompido. E toca a abrir a cabana, resolver o problema e preparar uma nova amostra. O procedimento é trabalhoso, principalmente pela quantidade de parafusos que compõem o porta-amostra – tudo tem de estar absolutamente vedado. Mas a segunda tentativa deu certo e as “curvas de espalhamento” começaram a se multiplicar no monitor. O jogo de bilhar começou.

Deste ponto em diante, o trabalho se torna extremamente repetitivo. Cada amostra fica na linha de luz por até 2 horas, enquanto vai sendo molhada pelo soro fisiológico. As medidas de espalhamento de luz são tomadas a cada 30 segundos. “Isso gera uma enorme quantidade de dados”, destaca Santilli. Segundo ele, leva mais de um ano para compilar, analisar e interpretar as informações geradas em 48 horas na linha SAX-2. “Isso aí são as teses dos rapazes”, diz o orientador, com uma ponta de orgulho.

Santilli usa o LNLS de Campinas há mais de dez anos (inclusive é membro do comitê de usuários). De vez em quando, porém, ele vai até o Soleil, o síncrotron de Saint Albin, na França, porque algumas de suas análises exigem um anel de terceira geração. A versão brasileira é de segunda geração, mas em alguns anos deve ser substituída por uma nova fonte mais moderna.

Mantido com recursos do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), o LNLS está desenvolvendo o projeto de um anel de terceira geração, já batizado de Sirius, em referência à estrela mais brilhante no céu noturno. Ainda em fase inicial (planejamento e protótipos), o projeto já contou com R$ 9 milhões do MCT, e a construção do novo anel deve consumir mais R$ 400 milhões nos próximos cinco anos.

A Sirius será uma das fontes de luz síncrotron mais brilhantes do mundo. Porém, o brilho a que se referem os físicos, neste caso, não é o fenômeno visual que todos conhecemos, mas a relação entre a energia gerada para acelerar os elétrons e a espessura do feixe produzido. Quanto maior a energia e mais fino o feixe, mais brilhante. O novo anel brasileiro será tão potente quanto os mais modernos síncrotrons do mundo (veja tabela na pág. 18).

Tamanho investimento vai permitir ao LNLS, e à ciência brasileira de forma geral, ampliar a gama de aplicações em diversas áreas do conhecimento, como nanociência, energia, materiais, microeletrônica, farmacologia, alimentos e paleontologia, enumera o físico da USP Antonio José Roque, atual diretor do LNLS. “Isso é uma decisão de Estado de manter essa facilidade para a comunidade científica. Em todos os síncrotrons do mundo é assim”, compara.

Luz econômica
E não é apenas no seu poderoso brilho que está o charme da nova fonte. A Sirius contará com nova tecnologia de geração de energia que vai tornar o anel muito mais eficiente, economizando cerca de 11 GWh/ano – ou cerca de R$ 800 mil a menos na conta de energia elétrica, segundo estimativa da instituição.

O ganho é resultado de uma série de inovações desenvolvidas pelo LNLS em colaboração com o Soleil, o único síncrotron do mundo a já colocar em operação a tecnologia. A mais importante delas é um sistema de amplificadores em rede, que multiplica em 80 vezes a energia gerada por cada amplificador individualmente – e sem consumir energia. Quem explica a “mágica” é um dos pais da criança, o técnico em eletrônica Claudio Pardine, líder do Grupo de Radiofrequência do LNLS, que colaborou com os franceses.

“Existe uma técnica de combinar e dividir os sinais, recombiná-los e somá-los, de uma forma passiva, sem gasto de energia. Esse é o ‘truque’ da amplificação, que só foi possível agora, com o desenvolvimento de novos materiais e componentes de última geração”, diz. Com esse sistema será possível substituir as tradicionais válvulas do tipo Klystron, que gastam muito mais.

Segundo ele, não é fácil amplificar sinais elétricos de frequência tão alta como a exigida num síncrotron. “Trabalhamos com 500 MHertz. Isso significa que esse negócio liga e desliga cerca de 470 milhões de vezes por segundo.” O amplificador de estado sólido, como é chamado, está sendo testado numa oficina do LNLS e deverá ser instalado primeiramente no anel atual, até o fim do ano. O projeto contou com US$ 1 milhão (durante dois anos) de uma linha de financiamento da Finep para inovações tecnológicas que economizem energia.

Agenda lotada
Enquanto a nova fonte Sirius não “brilha” em Barão Geraldo, a agenda do velho anel está cada vez mais cheia. De 1997, quando a fonte entrou em operação, até 2009, o número de usuários saltou 800%. Cerca de 20% vêm de outros países da América Latina. O físico cubano Arbélio Penton Madrigal, da Universidade de Havana, por exemplo, vem ao LNLS pelo menos duas vezes por ano desde 1999. Ele estava lá quando visitamos o laboratório.

Em colaboração com pesquisadores do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), no Rio, Madrigal já usou várias linhas de luz para investigar materiais multiferroicos (com propriedades magnéticas e ferroelétricas), que podem armazenar muita informação e são cobiçados pela indústria de computadores. “O síncrotron brasileiro é uma ótima alternativa para cientistas cubanos. Tudo isso custa muito dinheiro para construir e manter, com tecnologia de ponta”, diz.

Ao lado dele, a química Hebe de las Mercedes Villullas, colega de Santilli no IQ em Araraquara, esperava o conserto de algum componente da linha SXS (espectroscopia de absorção de raios X moles). “Imprevistos acontecem nos experimentos, faz parte. E cada linha tem seu aprendizado”, diz. “É a primeira vez que eu uso esta.”

Argentina radicada em Araraquara, Mercedes conta que começou a usar o síncrotron nos últimos anos, pois primeiro teve de formar uma massa crítica de pesquisadores no seu grupo para dar conta de tanto trabalho. “Geralmente ficamos três ou quatro dias, então preciso de no mínimo quatro pessoas para revezar à noite.”

A pesquisadora estuda o uso de nanopartículas metálicas como catalisadores de células combustíveis, que convertem energia química em elétrica. “É diferente de uma pilha ou bateria, em que o reagente está armazenado dentro do dispositivo. A célula combustível é alimentada com reagente (etanol, por exemplo) à medida que funciona”, explica. “É uma energia limpa, mas ainda difícil de armazenar e transportar”, afirma ao mostrar o pó preto que são suas amostras.

Para ela, o esforço de ir ao LNLS vale a pena, apesar de ser cansativo. “O nível de ruído aqui é muito alto. Depois de quatro dias, você sai e sente um grande alívio”, diz. De fato, a reportagem sentiu o mesmo efeito após passar somente algumas horas lá dentro. A preocupação com o bom andamento do trabalho também conta. Quando a estadia termina, “leva alguns dias para voltar ao ritmo normal”, diz. “Aqui ninguém come ou dorme direito, a cabeça fica o tempo todo no experimento. A gente volta detonado”, confessa.

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