Células imortais

Matéria publicada na Unesp Ciência de abril de 2011.

Laboratório em Botucatu cria seres híbridos que não morrem nunca e são capazes de fabricar os anticorpos monoclonais, moléculas indispensáveis nos bancos de sangue e na medicina diagnóstica

Estranhas formas de vida são cultivadas no subsolo da Faculdade de Medicina de Botucatu. Numa área de acesso restrito do hemocentro, uma equipe de pesquisadores cria os chamados hibridomas, células híbridas que não existem espontaneamente. Ao contrário das células naturais, elas não morrem nunca, desde que bem cuidadas e alimentadas.

Mas não é por serem imortais que essas quimeras biotecnológicas são manipuladas com tanto zelo. É porque elas são verdadeiras fábricas microscópicas, capazes de gerar ad eternum um produto sofisticado e valioso – os anticorpos monoclonais. Usadas como ferramenta de identificação em análises laboratoriais, essas complexas proteínas, altamente específicas, revolucionaram o modo de fazer transfusão de sangue e a medicina diagnóstica nos últimos 30 anos.

A médica hemoterapeuta Elenice Deffune, chefe do Laboratório de Engenharia de Tecidos da Unesp em Botucatu, aprendeu a construir hibridomas em Paris, durante o mestrado e o doutorado feitos entre a Universidade Pierre e Marie Curie e o Instituto Pasteur, de 1986 a 1992. Ela foi estudar o assunto após se inquietar com reações do organismo à transfusão de sangue, que ocorrem em uma minoria dos pacientes, mas costumam ser fatais. Com os anticorpos monoclonais, diz ela, a hemoterapia (o emprego terapêutico de sangue e seus derivados) evoluiu muito nas últimas décadas.

Conhecer apenas o tipo sanguíneo (A, B, AB e O) e o fator Rh (positivo ou negativo) de doador e receptor nem sempre é suficiente para realizar uma transfusão compatível. “Num paciente comum eu posso liberar uma transfusão segura só com essas informações”, afirma a pesquisadora. O problema é quando a pessoa já foi exposta a sangue de terceiros e criou anticorpos contra ele. “Quando temos um paciente que já fez transplante ou outra transfusão, tatuagem, usou drogas (inclusive compartilhou canudos de aspiração) ou uma mulher que passou por gestação, é preciso estudar outros anticorpos do receptor e os antígenos do doador”, explica.

É nessa identificação que atuam os anticorpos monoclonais. Na linguagem da Imunologia, antígeno é o alvo de um anticorpo. E a ligação entre eles deflagra uma complexa cadeia de reações imunológicas cujo objetivo é neutralizar o invasor. Como o volume de sangue usado numa transfusão nunca é pequeno, o sistema imune pode levar o organismo ao colapso.

O fator Rh, uma proteína do sangue descoberta há 70 anos, é um dos antígenos mais conhecidos do público. Mas existem vários outros. “Hoje nós conhecemos outras 47 proteínas sanguíneas que também são antígenos”, afirma Elenice. Além delas, o uso de anticorpos monoclonais revelou 375 novos alvos na membrana do glóbulo vermelho (hemácia), o que tornou obsoleto o centenário sistema de tipagem ABO.

O diagnóstico das leucemias também melhorou muito. “Agora nós sabemos rapidamente se é um tipo agudo ou crônico, mieloide ou linfoide, porque fazemos um painel de classificação de anticorpos, o que dá uma ideia da gravidade da doença e já direciona o paciente para um tratamento com mais chance de ser eficaz”, acrescenta.

Os hibridomas que o grupo de Elenice manipula no momento vivem numa estufa a 37 °C, localizada numa sala extremamente limpa, clara e onde só se entra devidamente paramentado. Os que não estão em uso, em número bem maior, são armazenados num corredor anexo, congelados a -196 °C em tanques com nitrogênio líquido.

Na estufa, o que se vê são plaquinhas de plástico transparente com pequenos poços, onde se acumula um líquido levemente amarelado. Só ao microscópio é possível ver as células híbridas, de um amarelo perolado, organizadas em delicados cachos – para quem espera um mutante, pode ser meio decepcionante. Não é possível ver os anticorpos, mas eles estão ali, dissolvidos no líquido. São todos iguais e devem reagir a um único antígeno. Pelo menos é o que se espera.

Um hibridoma é o resultado da fusão induzida entre duas células, explica Elenice. De um lado, um linfócito B, um tipo de glóbulo branco e a única célula imunológica que produz anticorpos (mas que não se reproduz e, depois de três ou quatro dias, morre). Do outro, uma célula de câncer. “Queremos essa capacidade do linfócito de fazer anticorpos, que está em seu genoma, numa célula que se reproduz sem parar”, continua. O processo, como ela mesma admite, é um pouco “tosco”.

Simples e eficiente
“Nós colocamos o linfócito B ao lado da célula neoplásica”, descreve a pesquisadora. “Por meio de reagentes, induzimos o rompimento de suas membranas, de modo que depois elas se recomponham, unidas numa célula híbrida.” A quimera tem, portanto, dois genomas e quatro fitas de DNA. E sua principal função na vida é proliferar e produzir generosamente apenas um tipo de anticorpo (veja infográfico abaixo). “Nem sempre o que é tosco é biologicamente pior. A natureza é tosca”, defende. “Os anticorpos monoclonais são ferramentas de identificação do fenótipo, não do genótipo.”

Em biotecnologia, a manipulação de células inteiras parece um caminho mais tranquilo que o da biologia molecular, que procura ‘recortar’ genes para transferi-los a outros organismos. Seria por isso, segundo Elenice, que os transplantes de medula óssea e os hibridomas renderam muito mais benefícios para a medicina do que a clonagem e a terapia gênicas, que ainda patinam no quesito segurança. “A terapia gênica acaba sendo agressiva demais, soa antifisiológico. Meu ramo pode ser considerado mais simples, mas do ponto de vista prático tem um retorno maior.”

Fundir um linfócito B com uma célula neoplásica sem matar nenhuma delas pode parecer difícil, mas é a parte mais rápida do processo. O linfócito B vem do baço de um roedor que foi antes imunizado com o antígeno de interesse, aquele que se quer que o anticorpo final reconheça. Por exemplo, um hormônio chamado gonadotrofina coriônica, que sinaliza gravidez numa mulher. Já a célula neoplásica vem de uma cultura de mieloma, a forma cancerosa de outro glóbulo branco – o plasmócito -, que guarda parentesco com os linfócitos B na hierarquia celular do sistema imune.

A parte mais complicada do processo, extremamente minuciosa, vem depois disso: é a seleção do tipo certo de linfócito B (ou clone, isto é, um grupo de células que produz exatamente a mesma molécula de anticorpo) que vai agir de modo mais eficaz contra aquele antígeno visado.

No baço do animal, há milhares de linfócitos B produzindo os mais diferentes anticorpos contra uma vasta gama de antígenos. Quando o organismo ataca o invasor, ele usa uma bateria de anticorpos gerados por vários clones, por isso chamados policlonais. O desafio é contrariar a natureza e isolar um único clone. “O que mais toma tempo são as etapas de seleção, amplificação, caracterização e purificação”, lista Elenice.

É trabalhoso, mas essencial para ter a segurança de que o teste de gravidez, por exemplo, vai detectar a presença da gonadotrofina coriônica na urina da mulher e não de qualquer outra molécula, o que seria um falso positivo. Da mesma forma para o diagnóstico de HIV, hepatites virais, câncer e tantas outras doenças.

Entre a fusão das células originais e a produção dos monoclonais em biorreatores de média capacidade (para consumo de um hemocentro, por exemplo), o grupo de Botucatu consome pelo menos dois anos de trabalho. Numa empresa, esse tempo pode cair para seis meses. Muitas fazem anticorpos monoclonais sob demanda.

Prontos para usar
No Catálogo Sigma-Aldrich, por exemplo, um catatau comercial obrigatório em todo laboratório desse tipo, há mais de 200 páginas só de anticorpos monoclonais, prontos para importar. Alguns deles serviriam para os objetivos de Elenice, evitariam a trabalheira que é criar um hibridoma e cuidar dele. Por que então ela não os compra? Porque, como pequenas “joias biotecnológicas”, com garantia de especificidade e pureza, estas moléculas custam caro.

O princípio de produção dos hibridomas foi descoberto em 1975, simultaneamente pelo alemão Georges Köhler (1946-1995), então no Instituto de Imunologia de Basel (Suíça), e pelo argentino César Milstein (1927-2002), na Universidade Cambridge, Reino Unido. Ambos estudavam a estrutura dos anticorpos (que são proteínas gigantescas) e os mecanismos pelos quais o organismo consegue gerar uma diversidade tão incrível deles. Para isso, a dupla precisou testar formas de isolá-los, para conseguir estudá-los um a um.

A tecnologia não foi patenteada, mas tudo o que veio como consequência dela foi – inclusive os reagentes e os próprios anticorpos. Os autores não lucraram um centavo com a criatura, que logo foi incorporada por um nascente mercado de empresas biotecnológicas. A recompensa de Köhler e Milstein veio em 1984, quando eles receberam o Nobel de Medicina, prêmio que foi dividido com o dinamarquês Niels Jerne (1911-1994), por outras contribuições para a compreensão do sistema imunológico.

Embora pouco conhecido do grande público, o hibridoma é tido como a biotecnologia mais bem-sucedida na área médica. Cresceu na sombra da biologia molecular, muito mais midiática, e ficou circunscrita a um meio empresarial cujo marketing não tem como alvo o paciente, mas médicos, farmacêuticos, laboratórios, hospitais e centros de pesquisa. “Foi uma tecnologia que deu origem a uma enorme quantidade de empresas”, diz Elenice.

A maioria delas está nos Estados Unidos, na Europa, embora comecem a surgir iniciativas no Brasil. Em geral são pequenas empresas, lideradas por cientistas experientes, incubadas por universidades e agências de fomento, dispersas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No meio acadêmico também há poucos grupos capacitados para fazer hibridomas, entre eles o Instituto Butantan em São Paulo, a Fundação Oswaldo Cruz no Rio e a Federal do Rio Grande do Sul.

Fazer os monoclonais, porém, demanda fôlego científico. E a empreitada pode ser fatigante, como atestam orientandos de Elenice. Apesar de dizerem gostar muito do que fazem, os pós-graduandos Daniel Jesuíno Bassetto e Josy Campanhã Vicentini confessam que às vezes se sentem escravos dos híbridos. “A cada dois dias temos que manipulá-los, trocar o meio, dar alimento. Fazemos um rodízio, o que inclui plantões nos finais de semana e feriados”, conta Bassetto, biólogo que defendeu o mestrado em fevereiro, no qual investigou uma nova técnica para isolar o clone perfeito de um jeito mais preciso e eficiente. O método requer o mesmo equipamento usado na fertilização in vitro, que é operado por uma espécie de joystick. A orientadora admite que já perdeu a mão para esse tipo de tarefa. “Quanto mais jovem melhor. Quando eu faço, quebro todas as agulhas, que custam U$ 46 cada.”

Apego de mãe
A veterinária Josy, que começou o doutorado há pouco tempo, já se apegou às quimeras. Ela desaprovou o comentário da reportagem que se referiu a elas como ‘monstrinhos’. “Não diga isso, elas são minhas filhas”, brinca. “Tem de dar comida e cuidar. Tem de estar com uma energia boa, senão você não cuida direito e elas não ficam bem, dá para ver na ‘cara’ delas'”.

Deixá-las morrer, perder toda a matriz, significa prejuízo total. É preciso começar do zero, com a certeza de que o resultado alcançado sempre será ligeiramente diferente. “O hibridoma é imortal, mas não podemos deixá-lo morrer”, diz Bassetto, lembrando que a capacidade de proliferar indefinidamente do híbrido vem da célula neoplásica – só que até mesmo um câncer pode morrer de fome.

Nos últimos dois anos, Josy trabalhou num anticorpo planejado contra antígenos de tênia (Taenia saginata), um parasita comum no gado. Co-orientado pela veterinária Caris Maroni Nunes, da Unesp em Araçatuba, o projeto visa a criação de um teste rápido, feito no animal vivo, para controlar a qualidade da carne bovina.

Já existem testes desse tipo no mercado, mas todos ainda deixam a desejar no quesito especificidade, sendo comuns as reações cruzadas, explica Elenice. A ideia do mestrado era conseguir um produto melhor, mais específico. Mas não foi desta vez. “Acabamos chegando a um produto que não é melhor que os comerciais”, diz Josy. No doutorado, ela está tentando de novo.

A taxa de sucesso é mesmo baixa, diz Elenice. “De cada mil híbridos que a gente constrói, apenas um serve.” Entre os descartados, alguns até estão fazendo o anticorpo certo, mas não de forma bem comportada. “Pode ocorrer de o híbrido ser um produtor lento, de crescer em grupos muito grandes ou grudar na parede do frasco, o que é ruim para nós.”

Até o fim do ano um anticorpo monoclonal produzido no laboratório de Botucatu deverá ser analisado num estudo nacional multicêntrico, do qual participarão, além da Unesp, a Unicamp, a USP de Ribeirão Preto, o Fleury Medicina Diagnóstica e o Hemorio (o hemocentro do governo fluminense). Se tudo der certo, o produto deverá ser usado em hemocentros para reconhecer um anticorpo raro na população. “É difícil ter esse paciente, mas quando temos, e ele precisa de transfusão, temos de conseguir uma bolsa de sangue negativa para este antígeno”, afirma a médica.

Nesses casos, é preciso procurar a bolsa de sangue ideal em outros hemocentros do país. Se ninguém a tiver, só há duas soluções: comprá-la no exterior, o que no Banco de Sangue de Nova York pode custar US$ 5 mil; ou ter o anticorpo monoclonal correspondente para fazer testes até encontrar o sangue compatível no próprio estoque. Mas ele também é caro. Uma embalagem de 500 microlitros do dito cujo pode sair por mais de US$ 2 mil e ser suficiente apenas para triar 40 bolsas de sangue. “Às vezes a chance de encontrar o doador certo em 40 tentativas é quase nenhuma”, diz. Se a molécula desenvolvida pelo grupo for aprovada nos testes, o passo seguinte será o registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a produção em Botucatu.

Em outra frente, Elenice pretende desenvolver anticorpos monoclonais para tipagem sanguínea de cães, que cada vez mais passam por cirurgias e eventualmente precisam de transfusão. “Há um campo enorme nessa área”, diz. “A hemoterapia canina ainda é muito pouco desenvolvida.”

***

QUADRO: Tesouro biotecnológico

Os anticorpos monoclonais movimentaram Us$ 35 bilhões em 2009, segundo a Bharat Book Bureau, empresa americana especializada em pesquisa de mercado. Embora a maioria seja usada em
diagnósticos, grande parte do faturamento vem dos que se destinam ao tratamento de doenças graves e crônicas, como câncer e distúrbios autoimunes, no que vem sendo chamado de “terapia-alvo”.

O desenvolvimento de anticorpos monoclonais terapêuticos é ainda mais complexo, devido à
possibilidade de reação imunológica grave no paciente. Para evitar esse risco, as farmacêuticas investem na engenharia de anticorpos humanizados (no segmento diagnóstico, todos eles têm origem em célula animal).

As indústrias guardam a sete chaves os hibridomas que desenvolvem, mantendo “backups” em pelo menos dois lugares. “é uma tecnologia suscetível à espionagem industrial”, diz Elenice Deffune. A pesquisadora lembra que no fim dos anos 1980, quando estudava na França, o Instituto Pasteur utilizava o cofre de um banco para esse fim, antes de construir instalações adequadas na sua sede.


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