As mulheres dos estudos literários: Lígia Balista

Para dar continuidade à série de posts sobre as mulheres dos estudos literários, essa semana divulgamos o trabalho de Lígia Balista. Formada em Letras pela Unicamp em 2007, Lígia começou sua carreira acadêmica ainda durante a graduação, com uma pesquisa de Iniciação Científica sobre crônicas. Na sequência, já no mestrado na Unicamp, se dedicou a pesquisar a metáfora da caminhada nos livros Autos da Alma, de Gil Vicente, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Essa pesquisa foi feita sob orientação da Professora Jeanne Marie Gagnebin, mais uma mulher incrível que merece ser lembrada aqui por seus trabalhos envolvendo literatura e filosofia.

Após se dedicar por alguns anos à experiência de trabalhar em escolas e em uma universidade federal, Lígia voltou ao doutorado, dessa vez na USP, para estudar a representação do caipira na obra de Carlos Alberto Soffredini. Hoje, prestes a defender sua tese, comemora um ano da publicação da coleção Soffredini: obras principais (2017), organizada por ela em parceria com Renata Soffredini. A publicação das quatro peças teatrais que integram a coleção (“Vem buscar-me que ainda sou teu”, “Na carrêra do divino”, “Pássaro do poente” e “De onde vem o verão”) é um importante passo para a dramaturgia brasileira, pois coloca em circulação obras inéditas que fazem parte da história do teatro nacional.

Motivada pela admiração que tenho por seu trabalho e também pelo lançamento da coleção, convidei a pesquisadora para uma entrevista. Foi ótimo aprender mais sobre o processo editorial que envolve a publicação de uma coleção inédita e conhecer uma nova pesquisa sobre literatura brasileira. Agradeço a Lígia pela disponibilidade e pelo carinho com que trocou mensagens comigo. Como sempre, reafirmo o quanto me sinto honrada por estar ao lado dessas mulheres tão competentes que compõem os estudos literários no Brasil.

Marca Páginas: Lígia, quando estamos com um livro pronto e finalizado nas mãos, às vezes nos esquecemos de como existe um trabalho extenso e cansativo por trás daquele objeto, que depende de várias etapas, como pesquisa, seleção e estabelecimento dos textos definitivos, além da dedicação a textos introdutórios, prefácios, posfácios etc. Como foi o processo de organização das obras principais de Carlos Alberto Soffredini? Quanto tempo vocês ficaram envolvidas com esse trabalho? E o que você considerou mais difícil e mais prazeroso nesse processo?

Lígia Balista e Renata Soffredini no lançamento da coleção em Santos

Lígia Balista: De fato, o processo é sempre muito interessante também, e em geral muito longo e cheio de etapas variadas. A organização dessa coleção começou, pra mim, anos antes: em 2014 (começo do meu doutorado), quando conheci pessoalmente a herdeira do Soffredini – a atriz e diretora Renata Soffredini, em um evento na Unicamp. Para ela, a ideia da coleção já vinha de antes ainda! Já tinha havido uma tentativa de publicação da obra como coleção, mas até então o projeto não havia seguido adiante.  No ano de 2015 fizemos vários movimentos nessa tentativa de publicação. Entrei em contato com diversas editoras, cheguei a fazer reuniões presencias para mostrar o material e discutir possibilidades. Alguns retornos eram bem animados, mas nenhum seguiu muito adiante. Publicar teatro é uma luta! Em meados de 2015 a Renata ficou sabendo do edital da Proac/SP para publicação de inéditos. Já tínhamos algum acúmulo entre nós sobre quais seriam as peças principais e como gostaríamos de estruturar a coleção. Foi a hora de sistematizar tudo e enviar a proposta! Montamos o projeto e tentamos! Quando foi aprovado, além da enorme alegria, começou um período de bastante trabalho: definição dos convidados para escrita de prefácios e posfácios; seleção de fotos para compor os livros (acompanhar cada peça) e a parte biográfica; decisões sobre como montar a cronologia (minibiografia) sobre o autor; decisões sobre o estabelecimento de texto; ideias para as capas etc… Foi muito gostoso ver que todos os professores convidados para escrever prefácios e posfácios aceitaram com alegria participar do projeto! Outra etapa importante foi convidar a editora Giostri para fazer a parceria na publicação. O trabalho deles foi fundamental para alguns processos, como a criação das capas, por exemplo, e a própria impressão do livro. Mas também foram momentos de muitas idas e vindas. A produção de um livro é um trabalho coletivo, né? E várias mudanças e pequenos ajustes foram necessários nessa etapa. Tínhamos a pressão do prazo com a prestação de contas do edital. Foi um período de muitas reuniões (presenciais ou às vezes por telefone mesmo) e era um processo constante de importantes decisões! Sobre o estabelecimento de texto, eu participei mais diretamente e pessoalmente do trabalho com a peça “Na carrêra do divino” – o que foi muito rico para o desenvolvimento do meu processo de pesquisadora sobre essa peça. Ganhei uma familiaridade enorme com o texto, após tantas leituras, tantas pesquisas para revisão. No final do ano passado tive a alegria de poder dividir um pouco mais sobre esse processo (e sobre o que ele representou para minha pesquisa, inclusive) em um artigo que saiu pela revista da ECA/USP. A peça mais recente, “De onde vem o verão” de 1990, já foi escrita pelo autor com uso do computador, o que facilitou um pouco o processo do trabalho com o texto. Sobre sua última pergunta: acho que o mais difícil é ver algumas coisas não saírem como planejamos… Tentamos ter o maior cuidado possível com o material todo que estava sendo elaborado, mas… nem tudo depende só de nós, né! Faz parte de um processo grande e longo como esse. E talvez o mais gostoso pra mim, além do enorme aprendizado que tive sobre o processo completo de organização e produção de um livro (de uma coleção!), foi a aproximação intensa com a obra e o acervo de materiais do autor. Como pesquisadora, foi riquíssimo poder mergulhar nesses textos todos e em alguns materiais pessoais de Soffredini. E, como professora e leitora, acho que o mais legal é ver a obra circulando! Realmente podendo chegar aos leitores agora… Tive, nesse sentido, alguns retornos de leitura muito interessantes e emocionantes! Daqueles que nos faz ver que já valeu a pena!

Capas dos 4 volumes que compõem a coleção Soffredini: obras principais (2017)

Marca Páginas: Seu doutorado na USP é sobre a representação do caipira na obra de Soffredini. Você acredita que sua pesquisa contribuiu para a organização desses livros? De que maneira esses dois trabalhos se relacionam e se afetam entre si?

Lígia Balista: Acredito que sim. Desde antes de entrar no doutorado, em meus primeiros contatos com a Renata Soffredini para conseguir os textos para ler e decidir o recorte a pesquisar, essa ideia se apresentou. Era um desejo antigo dela conseguir pensar uma publicação das obras do pai, então ela quis saber mais de que universidade eu era e qual era exatamente o projeto – pensando inclusive nessa possível aproximação com as editoras universitárias. Pra mim, a ideia – que era também só um sonho no início (seria ótimo, mas eu não fazia ideia da viabilidade ou não de uma publicação como essa) – foi se tornando cada vez mais uma construção real e parte de minha pesquisa. Para estudar o dramaturgo não publicado eu precisava acessar os textos; a cada texto acessado, a vontade de publicá-los só aumentava. Para criar um círculo maior de debate em torno da obra do autor era importantíssimo que ele passasse a circular como livro. Acho que senti isso mais ainda por estar nos estudos literários. Quando meus encontros eram com os estudiosos de artes cênicas, em geral eles conheciam o trabalho do Soffredini. Já nas letras, era mais raro. Poder contar com as peças em livro agora talvez mude esse cenário um pouquinho… Em uma das disciplinas de pós sobre teatro brasileiro que fiz na universidade, por exemplo, um professor chegou a comentar comigo que teria incluído uma das peças de Soffredini no programa, mas não tinha o texto para ler e disponibilizar aos alunos. Aquilo me marcou muito (sobre as barreiras que as materialidades do texto impõem, mas também no outro sentido: sobre as possibilidades reais e a importância de investir na publicação). Hoje sinto, com muito orgulho, que foi também uma conquista importante da minha dedicação à pesquisa que possibilitou conseguir tocar esse processo de publicação dos livros da coleção. Sempre com o enorme empenho e abertura da herdeira do dramaturgo, é claro. Sem a confiança da Renata nada disso seria possível.

Lígia Balista com os manuscritos das peças teatrais de Soffredini

Marca Páginas: Parece ser comum, entre pós-graduandos e pesquisadores, uma certa angústia relacionada às poucas oportunidades de diálogo existentes entre a pesquisa acadêmica e a comunidade que está fora das universidades. Você sente ou concorda com essa angústia? Quais são, em sua opinião, possibilidades válidas para atenuar essa distância?

Lígia Balista: Em geral concordo sim. Já senti isso muitas vezes. Acho que especialmente em nossa área, os objetos de estudos podem parecer muito distantes dos problemas reais e atuais do mundo, da vida das pessoas. Mas fui aprendendo que isso é mais uma barreira que um certo imaginário de mundo nos coloca… Porque, afinal, se pesquisamos/estudamos cultura, isso sem dúvidas está relacionado ao modo de viver das pessoas. E também nesse sentido a publicação dos livros inéditos é muito bacana! A dramaturgia do Soffredini vira acessível! Parece que nosso objeto de estudo passa a ser, digamos, mais real! Parte do planejamento de divulgação da coleção Soffredini: obras principais era realizar duas palestras em escolas, após a publicação dos livros. A Renata fez uma e eu outra. E o retorno dos alunos de Ensino Médio foi maravilhoso!

Marca Páginas: E sobre ser mulher na nossa área de pesquisa… você acha que fazer parte dos estudos literários no Brasil, hoje, passa também por questões relacionadas a gênero?

Lígia Balista: Acho que o fato de seguirmos carreira acadêmica nos aproxima de um lugar de nossa profissão em que, em geral, predomina a presença de homens. É muito significativo olhar o número de mulheres que entram na graduação para estudar literatura e a porcentagem de professoras mulheres que seguem na vida acadêmica. Fui representante discente durante um período na pós aqui na USP. E alguns casos de dificuldades em seguir a pós que chegavam até mim passavam sim pelo machismo – não só presente na universidade, mas na sociedade em geral, né… A licença maternidade, por exemplo: é uma coisa só reconhecida pelo mundo da pós graduação há pouquíssimo tempo! Vale, por exemplo, conhecer o trabalho de divulgação que as pesquisadoras do Gepô têm feito, nos últimos dias: #generoemação. Na vida acadêmica, especificamente, algumas atitudes vão sendo associadas a uma maneira de estar no mundo mais “masculinizada”, digamos. E é muito curioso (difícil!) lidar com isso no dia a dia… Mas seguimos!

Sugestões de leitura:

  • O artigo que Lígia menciona na entrevista, “PESQUISANDO SOFFREDINI: um mergulho por seu acervo e na história da publicação de um autor “quase” popular”, está disponível aqui: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/138376
  • Para conhcer o Gepô (Grupo de Estudos de Gênero e Política DCP USP): https://www.facebook.com/gepo.dcp.usp/
  • Indicação da coleção de peças teatrais de Carlos Alberto Soffredini (1939-2001): Soffredini: obras principais. “Vem buscar-me que ainda sou teu”, “Na carrêra do divino”, “Pássaro do poente” e “De onde vem o verão”. Organização Renata Soffredini e Lígia Balista; São Paulo: Giostri, 2017.

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