As manifestações culturais dos países do continente africano ganharam espaço e importância nos estudos literários ao longo das últimas décadas. Reconhecer esse movimento é lidar com uma série de questões históricas que precisam ser encaradas de frente no mundo todo e, principalmente, no Brasil. No texto de hoje, a pesquisadora Natasha Magno conta como sua trajetória acadêmica acompanhou suas lutas pessoais, que envolvem entre outras coisas o reconhecimento das literaturas africanas como um campo de estudos. Natasha é bacharel em Estudos Literários pela Unicamp e, ainda pela mesma universidade, finaliza a licenciatura em Letras. Sob uma perspectiva pós-colonial, sua pesquisa de mestrado investiga o livro O último voo do flamingo, do escritor moçambicano Mia Couto. Em 2010, fundou ainda o GELCA (Grupo de Estudos de Cultura e Literaturas Africanas), no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, dando um passo muito importante para os estudos literários no Brasil.
África em debate no IEL/Unicamp: ressignificando perspectivas e caminhos literários
Natasha Magno
Quando pensei de alguma forma poder contribuir para o blog Marca Páginas e poder compartilhar minhas reflexões ao lado de talentosas pesquisadoras, o primeiro sentimento que me tomou foi o desconforto de não saber sobre o que falar num espaço como este. E essa lacuna não se sustenta através de uma ignorância pessoal e sim de uma dificuldade de se desenhar uma reflexão sem pensar no que me trouxe até aqui. E é exatamente esse segundo desconforto que me guiará a expor o motivo pelo qual proponho refletirmos juntos sobre a África em debate no IEL/Unicamp.
Impossível falar sobre a minha relação com as Literaturas Africanas e a ressignificação sobre as suas literaturas nos últimos 10 anos sem antes conseguir mencionar a minha trajetória pessoal e o motivo pelo qual eu continuo persistindo no ensino e na pesquisa que envolvem os estudos africanos. Em 2010, prestei Estudos Literários na Unicamp, pois tinha lido um romance africano chamado O ultimo voo do flamingo, do escritor Mia Couto, e aquele livro mudou a maneira como eu poderia ver o mundo e a literatura.
Lembro-me de pela primeira vez ter percebido que a literatura poderia transformar a sociedade em que vivemos, e foi porque eu li um romance sobre diálogos entre um mundo nunca antes conhecido e o meu que eu decidi fazer esse curso. Mas o meu entusiasmo se transformou logo em decepção, ao perceber que nenhum professor do departamento de Teoria e História Literária estudava qualquer autor africano. E o mais triste foi perceber que não só nenhum professor pesquisava diretamente sobre esse assunto, mas que muitos não se interessavam sobre qualquer produção que viesse do continente africano.
Em seguida, o meu desconforto se transformou em luta e ao longo desses 7 anos montei o GELCA (Grupo de Estudos de Culturas e Literaturas Africanas) e não abandonei a minha ambição acadêmica de pesquisar sobre a literatura africana, e foi através de outros ambientes universitários, como a USP e a Universidade do Porto, que pude buscar material suficiente para fortalecer a justificativa de começar a estudar as literaturas africanas dentro do IEL. Em 2016, após uma luta estudantil árdua, conseguimos reivindicar a contratação de um docente na área de teoria literária, que foi destinada às literaturas africanas. Isso só foi possível, pois tivemos docentes aliados que nos ajudaram muito no processo e alunos obstinados a mudarem os rumos dessa história. Tais diálogos e parcerias se fortaleceram ao longo desse tempo e, após todas essas lutas, debates, ocupações e trocas, pude constatar que a ausência de pesquisa sobre a África, principalmente dentro de um ambiente universitário, é uma postura política e que reflete muito o modo como a representamos e a vemos.
O Brasil, em decorrência do processo de escravização de africanos, iniciado no período colonial, tem hoje uma das maiores populações negras do mundo. Os elementos africanos estão presentes não só na genética de grande parte da população brasileira, mas também em expressões sociais, culturais e religiosas, que, ainda hoje, continuam à margem do universo acadêmico e, por consequência, são vítimas de preconceitos. Com o objetivo de reverter esse quadro de marginalização das expressões africanas e afro-brasileiras, o governo brasileiro aprovou, no dia 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639, que alterou o currículo oficial dos Ensinos Fundamental e Médio e tornou obrigatório o ensino da história da África e da história e cultura afro-brasileira. Apesar da iniciativa do governo, nos deparamos com um cenário em que as escolas ainda não estão aptas a colocarem essa lei em prática, pois muitos docentes não tiveram contato com os estudos africanos em sua formação universitária.
Nos últimos anos, e até hoje, existem poucas disciplinas que preparam os alunos de licenciatura de fato para trabalharem os conteúdos exigidos pela lei em questão. Como trabalhar um autor africano no ensino básico? Como pensar uma perspectiva ameríndia dentro de sala de aula? Tais questionamentos ainda parecem sem resposta não só na Unicamp, mas em muitas universidades do país. Percebe-se que, no decorrer dos anos, somente alternativas paliativas foram criadas, como o oferecimento de disciplinas que dialoguem com as literaturas e culturas africanas, mas nunca algo que atribuísse uma unicidade e identidade ao conteúdo didático.
Pensar e estudar África enquanto fonte de conhecimento histórico, social e literário há menos de um século seria impensável. Hoje é mandatório. A proposta da minha reflexão encontra-se justamente em explicitar as motivações políticas e acadêmicas que contribuem para que cada vez mais pesquisadores dediquem-se ao grande campo de estudo das literaturas e culturas africanas e afro-brasileiras – pensando numa perspectiva educacional, de ensino. A descoberta do continente africano enquanto campo de produção de conhecimento é um feito recente na história mundial; as primeiras universidades a adotarem a África enquanto disciplina acadêmica o fizeram principalmente após a Segunda Guerra Mundial – não por acaso, quando o continente começou a se emancipar de sua última colonização, realizada no século XIX.
Curiosamente, o Brasil não seguiu o fluxo das universidades estadunidenses, europeias e africanas; enquanto a África atingia sua maioridade nos meios intelectuais e universitários externos, as pesquisas brasileiras centravam-se sobre a escravidão e seus descendentes em território nacional e seu papel na fundação do brasileiro, esquecendo-se da matriz, a África. Se, após 1500, não conseguimos estudar o Brasil sem dialogar com a Europa, é incabível que após quatro séculos de escravidão negra-africana consigamos ser indiferentes aos acontecimentos africanos: a história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a nos explicar. Mas é importante também por seu valor próprio e porque nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica ou só campo para a própria teoria literária. Ainda que disto não tenhamos consciência, o imperador Ngungunhane está mais próximo de nós do que os antigos reis da França. Não é à toa: dentre as características comuns aos didáticos quanto à inserção dos conteúdos sobre a África está a aparente maior preocupação em cumprir as exigências legais do que uma verdadeira reflexão sobre a importância da inclusão desses temas. Os motivos dessa impressão aparecem, pois os capítulos ou as seções relativas a esse conteúdo surgem muitas vezes nos livros didáticos sem alterarem a lógica dos demais processos nele desenvolvidos. No limite, é possível supor que diante de um cronograma puxado o docente poderia fazer a opção de pular os capítulos destinados à África sem sofrer grandes prejuízos na compreensão dos professores dos demais processos tratados. A mesma opção não poderia ser feita diante de diversos outros temas, pois são narrados de forma a estarem intrinsecamente relacionados a uma série de processos transcontinentais.
Diante de tal cenário, sob um ponto de vista político e educacional, estudar e pensar África na universidade é urgente. Contudo, a questão não se encerra aí. Estudar África, território marginal, é também propor novos meios de construção do conhecimento, é acreditar que há formas diversas de manifestação intelectual e cultural e na inexistência de uma hierarquia entre elas. Assim, temos configurada uma segunda razão para estudar-se África no Brasil, tão iminente quanto a primeira: precisamos dos Estudos Africanos e Pós-coloniais para nos descolonizarmos.
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- Blog destinado a divulgar a III Jornada de Teoria Literária e Estudos Africanos, organizada pelo GELCA e pelo Departamento de Teoria Literária/IEL, que acontecerá nos dias 25, 26 e 27 de abril: https://jornadagelca.wordpress.com