Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Não foi a primeira vez que a Cláudia, idealizadora/editora/cuidadora desse blog, tão bonito, e entusiasta da divulgação científica dos estudos literários, me convidou para escrever aqui. Devo começar dizendo que, a partir de certo momento da minha vida acadêmica, passei a me sentir cada vez mais formatada para um tipo único e padronizado de escrita e, com medo e me sentindo insegura, neguei tentar qualquer outra estrutura. É nesse contexto que me desafio para essa tarefa – ainda que entenda as minhas limitações diante dela. Por outro lado, o convite da Cláudia me pareceu dessa vez irrecusável: contar a minha participação em um evento acadêmico sobre literatura, a III Jornada de Crítica Literária: Literatura e Ditaduras, ocorrido na Universidade de Brasília (UnB) nos dias 4 e 5 de junho de 2018.

Não teria como falar desse evento sem olhar rapidamente para o presente brasileiro, em que as ressonâncias e as consequências do recente passado autoritário parecem cada vez mais fortes. Nas décadas de 1960 e 1970, a América Latina foi tomada por diversos regimes militares. As estruturações e as formas de atuação foram diferentes em cada país, bem como as respectivas transições para a democracia. No caso do Brasil[1], que viveu sob uma ditadura militar de 1964 a 1985, pouco se discutiu e se acolheu das reivindicações de memória e de justiça desde a redemocratização. Nunca levaram os torturadores à Justiça, por exemplo. Não se desmilitarizou a polícia. As famílias não foram efetivamente reparadas pelos mortos, torturados e desaparecidos até hoje. Não se debateu ampla e publicamente o que aconteceu nos 21 anos de ditadura – mesmo quando tínhamos uma presidenta que era ex-guerrilheira ou mesmo depois da abertura de uma Comissão Nacional da Verdade[2] para averiguar o que havia acontecido naquele período.

Já hoje, o sentimento geral é de angústia e de paralisia diante da política. Há dois anos, a primeira presidenta mulher eleita do Brasil sofreu um impeachment. Durante este processo, vimos um pré-candidato à presidência homenagear, em televisão aberta, um reconhecido torturador da ditadura militar brasileira. Desde então, nos sentimos atacados por todos os lados e vemos nossos direitos mais básicos serem ameaçados. Foi aprovada uma PEC que congelou os gastos públicos (inclusive de saúde e educação, por exemplo) por vinte anos e sofremos ataques complicadíssimos à cultura, aos direitos trabalhistas e das mulheres, de LGBTs, e de negros e negras. Há alguns meses, na cidade do Rio de Janeiro, foi decretada uma nova intervenção militar e foi nesta mesma cidade que a quinta vereadora mais votada do município, Marielle Franco, defensora dos direitos humanos, foi brutalmente assassinada, junto de seu motorista, Anderson Gomes. Por fim, recentemente, durante uma das maiores greves dos últimos anos, vimos pedidos explícitos e irresponsáveis de “intervenção militar”, que começaram a pipocar pelo Brasil todo.

Foto por Lua Gill.

E o que tudo isso tem a ver com o evento que assisti em Brasília? Ou como se relaciona com esse blog? A jornada da UnB teve como objetivo principal debater exatamente como a literatura tem pensado e refletido sobre as ditaduras, especialmente as da América Latina e, principalmente, a do Brasil. E por que “voltamos” a debater isso, décadas depois da redemocratização desses países? Por tudo que tem acontecido atualmente, mas também porque, ao contrário do que alguns querem nos fazer acreditar, a literatura e a crítica literária não são isentas, imparciais, mas podem e devem nos fazer tomar partido, nos posicionar.

Para não dizer que não falamos das flores, a ascensão do conservadorismo, antes e agora, não veio sem resistência, inclusive no campo da crítica literária atual, sobre a qual quero discutir aqui. Desde que comecei a pesquisar sobre as relações entre literatura e ditadura, em 2013, o tema vem crescendo, se expandindo, ainda mais nos últimos dois anos (o que, evidentemente, não se dá por acaso): autores e críticos literários têm se debruçado sobre esse assunto na medida em que tentam também entender e atuar no presente. As produções e as críticas artísticas têm debatido o apagamento histórico, apontando para a necessidade de uma política de memória e dando voz àqueles que não tiveram o seu testemunho ouvido.

O evento em Brasília foi um exemplo grandioso dessa atenção. O local escolhido para a realização da jornada, isto é, a UnB, por si só já diz bastante. Nessa universidade, professores e alunos resistiram amplamente durante o regime militar. Tão perto da Esplanada dos Ministérios e do Palácio do Planalto, hoje ela se abre novamente para novas formas de resistência da crítica literária, especialmente graças ao Grupo de Estudos em Literatura Contemporânea Brasileira – referência nessa temática para o Brasil inteiro –, da UnB, por meio dos professores Regina Dalcastagnè, Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz. Não por acaso, o primeiro curso sobre o Golpe de 2016 foi proposto e houve tentativa de censura na mesma universidade. Por tudo isso, foi, para mim, um privilégio ter a oportunidade de estar com pesquisadores, escritores e professores extremamente reconhecidos e competentes em seus trabalhos, ver e ouvir pessoas que li, dar rosto a quem saía apenas das palavras impressas, além de ter a possibilidade de realizar uma troca efetiva sobre o meu tema de pesquisa (o que não é tão comum para a maioria das pesquisas de estudos literários feitas em nosso país).

O próprio evento, na sua organização, se estruturou de forma extremamente democrática, destacando-se de outros eventos dos quais já participei. Estiveram lado a lado, nas falas, nas mesas e na organização, pesquisadores e professores da área, estudantes de graduação e de pós-graduação e autores de romance e poesia, muitos deles testemunhas vivas do tempo da ditadura. Outra coisa que me chamou a atenção foi a presença massiva, nas mesas, de mulheres, as quais totalizaram mais de 70%, o que também não costuma ser comum em eventos desse tipo.

É muito recorrente ouvirmos pessoas justificarem a ditadura brasileira dizendo que a perseguição atingiu apenas um grupo de pessoas: uma certa classe média, branca, intelectual, do sudeste do Brasil, “comunista e terrorista”, como se isso o justificasse. Se, por um lado, o número de mortos da CNV mantém esse dado, tal definição é bastante redutora e problemática. Devemos lembrar, como mostraram as falas no evento, que o regime militar afetou o Brasil como um todo e principalmente grupos minoritários, subjugados politicamente (há um cálculo de algo como 8 mil indígenas mortos durante a ditadura e mil camponeses, para além do número de 434 mortos, apresentado e mantido pela CNV). Durante as falas, pude ouvir outras perspectivas e testemunhos desse tempo, a exemplo de Sonia Bischain, uma das fundadoras do Sarau da Brasa, a qual relatou o contexto de produção literária e resistência na periferia paulista durante o regime; a pesquisadora e poeta negra Lívia Nathalia, que apresentou a produção negra contemporânea e denunciou o genocídio da juventude negra de ontem e de hoje; a escritora indígena Eliane Potiguara, que demonstrou o histórico de escravização e perseguição das diversas etnias indígenas e o esforço pela manutenção da cultura e da língua; a apresentação do livro “O fuzil e as flechas”, no qual o jornalista Rubens Valente recupera mais um capítulo apagado da história da ditadura civil-militar brasileira e analisa mais de 80 entrevistas de indígenas, sertanistas, indigenistas e antropólogos; ou ainda a apresentação da pós-graduanda Leocádia Chaves, sobre o testemunho do período ditatorial de uma transexual, Ruddy Pinho.

Além dessas novas e extremamente ricas perspectivas para o debate contemporâneo de recuperação da memória, guardarei com carinho três outras falas: Maria Pilla, autora de Volto semana que vem (2015); Maria José Silveira, autora de O fantasma de Luis Buñuel (2004) e A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002); e Pedro Tierra, autor de Poemas do povo da noite (1979). Todos eles são escritores e ex-guerrilheiros. Os seus testemunhos sobre as perseguições, a clandestinidade e as torturas que sofreram, e o processo posterior de elaboração e de testemunho, através da literatura, foram emocionantes e serviram de inspiração, principalmente para mim (e imagino que para grande parte do público presente) que não teve que lutar para ter seus direitos mais básicos garantidos.

Programação do evento Literatura e Ditaduras.

Depois dessa experiência, convido os leitores a acompanharem as produções que virão desses pesquisadores e autores citados, inclusive por meio das falas desse evento, que devem ser publicadas em breve. Hoje, mais do que nunca, precisamos reforçar a defesa da Universidade pública, do investimento à pesquisa (também de crítica literária), da autonomia universitária e da liberdade de expressão. Os atos de debater com nossos amigos, colegas, irmos a eventos, fazermos as nossas pesquisas são essenciais nesse contexto. Hoje, nosso trabalho também se dá como uma forma de resistirmos. Isso não é pouco. Não é hora de omissões. Como no passado, as futuras gerações dependem disso e do nosso compromisso com a memória e com a justiça.

Da minha parte, fica o agradecimento à UnB e aos professores organizadores, pela acolhida, pela atenção ao tema e pela organização de um evento tão importante para o debate atual, político e literário. Senti, ao fim dos dois dias, um sopro de esperança diante das angústias sentidas. Resistimos juntos. Assim como Maria José Silveira apontou, a resistência partia, e ainda parte, de uma profunda crença de que o afeto, a solidariedade e a felicidade, enfim, devem ser coletivos e de todos.

Deixo por fim uma breve lista de romances que tematizam a questão e que, entre outros, valem a pena serem lidos:

Em câmara lenta (1979), de Renato Tapajós

Memórias do esquecimento (1999), de Flávio Tavares

Não falei (2004), de Beatriz Bracher

Soledad no Recife (2009), de Uraniano Mota

Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa

Nem tudo é silêncio (2010), de Sônia Bischain

K. – relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski

Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla

Antes do passado (2015), de Liniane Haag Brum

Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva

A resistência (2015), de Julián Fuks

Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende

[1] Um breve histórico sobre a ditadura civil-militar brasileira: iniciou-se em 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas por parte da sociedade civil, perpetraram o golpe contra o governo eleito do presidente João Goulart. O Regime Militar chegou ao seu ápice em 1968, quando entrou em vigência o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, que intensificou o poder dado aos governantes para punir arbitrariamente toda e qualquer pessoa que fosse considerada “inimiga do regime”. Nesse momento, o estado de exceção passou a controlar efetivamente não só as instituições, como também as pessoas, em seus cotidianos privados e em suas relações sociais e públicas. O número de mortos, desaparecidos e torturados é enorme.

[2] A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 2012 pela então presidenta Dilma Rousseff e teve como objetivo investigar os graves desrespeitos dos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988. Em 2014, a Comissão entregou seu relatório final depois de entrevistar agentes envolvidos, organizar audiências públicas e pesquisar, em diferentes contextos e lugares, as perseguições do período militar. Entre as conclusões, está o fato de que as detenções ilegais e arbitrárias, como tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, foram uma prática generalizada e de política estatal, caracterizando-se como crimes contra a humanidade.

África em debate no IEL/Unicamp: ressignificando perspectivas e caminhos literários, por Natasha Magno

As manifestações culturais dos países do continente africano ganharam espaço e importância nos estudos literários ao longo das últimas décadas. Reconhecer esse movimento é lidar com uma série de questões históricas que precisam ser encaradas de frente no mundo todo e, principalmente, no Brasil. No texto de hoje, a pesquisadora Natasha Magno conta como sua trajetória acadêmica acompanhou suas lutas pessoais, que envolvem entre outras coisas o reconhecimento das literaturas africanas como um campo de estudos. Natasha é bacharel em Estudos Literários pela Unicamp e, ainda pela mesma universidade, finaliza a licenciatura em Letras. Sob uma perspectiva pós-colonial, sua pesquisa de mestrado investiga o livro O último voo do flamingo, do escritor moçambicano Mia Couto. Em 2010, fundou ainda o GELCA (Grupo de Estudos de Cultura e Literaturas Africanas), no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, dando um passo muito importante para os estudos literários no Brasil.

África em debate no IEL/Unicamp: ressignificando perspectivas e caminhos literários

Natasha Magno

Quando pensei de alguma forma poder contribuir para o blog Marca Páginas e poder compartilhar minhas reflexões ao lado de talentosas pesquisadoras, o primeiro sentimento que me tomou foi o desconforto de não saber sobre o que falar num espaço como este. E essa lacuna não se sustenta através de uma ignorância pessoal e sim de uma dificuldade de se desenhar uma reflexão sem pensar no que me trouxe até aqui. E é exatamente esse segundo desconforto que me guiará a expor o motivo pelo qual proponho refletirmos juntos sobre a África em debate no IEL/Unicamp.

Impossível falar sobre a minha relação com as Literaturas Africanas e a ressignificação sobre as suas literaturas nos últimos 10 anos sem antes conseguir mencionar a minha trajetória pessoal e o motivo pelo qual eu continuo persistindo no ensino e na pesquisa que envolvem os estudos africanos. Em 2010, prestei Estudos Literários na Unicamp, pois tinha lido um romance africano chamado O ultimo voo do flamingo, do escritor Mia Couto, e aquele livro mudou a maneira como eu poderia ver o mundo e a literatura.

Capa de O último voo do flamingo

Lembro-me de pela primeira vez ter percebido que a literatura poderia transformar a sociedade em que vivemos, e foi porque eu li um romance sobre diálogos entre um mundo nunca antes conhecido e o meu que eu decidi fazer esse curso. Mas o meu entusiasmo se transformou logo em decepção, ao perceber que nenhum professor do departamento de Teoria e História Literária estudava qualquer autor africano. E o mais triste foi perceber que não só nenhum professor pesquisava diretamente sobre esse assunto, mas que muitos não se interessavam sobre qualquer produção que viesse do continente africano.

Em seguida, o meu desconforto se transformou em luta e ao longo desses 7 anos montei o GELCA (Grupo de Estudos de Culturas e Literaturas Africanas) e não abandonei a minha ambição acadêmica de pesquisar sobre a literatura africana, e foi através de outros ambientes universitários, como a USP e a Universidade do Porto, que pude buscar material suficiente para fortalecer a justificativa de começar a estudar as literaturas africanas dentro do IEL. Em 2016, após uma luta estudantil árdua, conseguimos reivindicar a contratação de um docente na área de teoria literária, que foi destinada às literaturas africanas. Isso só foi possível, pois tivemos docentes aliados que nos ajudaram muito no processo e alunos obstinados a mudarem os rumos dessa história. Tais diálogos e parcerias se fortaleceram ao longo desse tempo e, após todas essas lutas, debates, ocupações e trocas, pude constatar que a ausência de pesquisa sobre a África, principalmente dentro de um ambiente universitário, é uma postura política e que reflete muito o modo como a representamos e a vemos.

O Brasil, em decorrência do processo de escravização de africanos, iniciado no período colonial, tem hoje uma das maiores populações negras do mundo. Os elementos africanos estão presentes não só na genética de grande parte da população brasileira, mas também em expressões sociais, culturais e religiosas, que, ainda hoje, continuam à margem do universo acadêmico e, por consequência, são vítimas de preconceitos. Com o objetivo de reverter esse quadro de marginalização das expressões africanas e afro-brasileiras, o governo brasileiro aprovou, no dia 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639, que alterou o currículo oficial dos Ensinos Fundamental e Médio e tornou obrigatório o ensino da história da África e da história e cultura afro-brasileira. Apesar da iniciativa do governo, nos deparamos com um cenário em que as escolas ainda não estão aptas a colocarem essa lei em prática, pois muitos docentes não tiveram contato com os estudos africanos em sua formação universitária.

Nos últimos anos, e até hoje, existem poucas disciplinas que preparam os alunos de licenciatura de fato para trabalharem os conteúdos exigidos pela lei em questão. Como trabalhar um autor africano no ensino básico? Como pensar uma perspectiva ameríndia dentro de sala de aula? Tais questionamentos ainda parecem sem resposta não só na Unicamp, mas em muitas universidades do país.  Percebe-se que, no decorrer dos anos, somente alternativas paliativas foram criadas, como o oferecimento de disciplinas que dialoguem com as literaturas e culturas africanas, mas nunca algo que atribuísse uma unicidade e identidade ao conteúdo didático.

Pensar e estudar África enquanto fonte de conhecimento histórico, social e literário há menos de um século seria impensável. Hoje é mandatório. A proposta da minha reflexão encontra-se justamente em explicitar as motivações políticas e acadêmicas que contribuem para que cada vez mais pesquisadores dediquem-se ao grande campo de estudo das literaturas e culturas africanas e afro-brasileiras – pensando numa perspectiva educacional, de ensino. A descoberta do continente africano enquanto campo de produção de conhecimento é um feito recente na história mundial; as primeiras universidades a adotarem a África enquanto disciplina acadêmica o fizeram principalmente após a Segunda Guerra Mundial – não por acaso, quando o continente começou a se emancipar de sua última colonização, realizada no século XIX.

Curiosamente, o Brasil não seguiu o fluxo das universidades estadunidenses, europeias e africanas; enquanto a África atingia sua maioridade nos meios intelectuais e universitários externos, as pesquisas brasileiras centravam-se sobre a escravidão e seus descendentes em território nacional e seu papel na fundação do brasileiro, esquecendo-se da matriz, a África. Se, após 1500, não conseguimos estudar o Brasil sem dialogar com a Europa, é incabível que após quatro séculos de escravidão negra-africana consigamos ser indiferentes aos acontecimentos africanos: a história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a nos explicar. Mas é importante também por seu valor próprio e porque nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica ou só campo para a própria teoria literária. Ainda que disto não tenhamos consciência, o imperador Ngungunhane está mais próximo de nós do que os antigos reis da França. Não é à toa: dentre as características comuns aos didáticos quanto à inserção dos conteúdos sobre a África está a aparente maior preocupação em cumprir as exigências legais do que uma verdadeira reflexão sobre a importância da inclusão desses temas. Os motivos dessa impressão aparecem, pois os capítulos ou as seções relativas a esse conteúdo surgem muitas vezes nos livros didáticos sem alterarem a lógica dos demais processos nele desenvolvidos. No limite, é possível supor que diante de um cronograma puxado o docente poderia fazer a opção de pular os capítulos destinados à África sem sofrer grandes prejuízos na compreensão dos professores dos demais processos tratados. A mesma opção não poderia ser feita diante de diversos outros temas, pois são narrados de forma a estarem intrinsecamente relacionados a uma série de processos transcontinentais.

Diante de tal cenário, sob um ponto de vista político e educacional, estudar e pensar África na universidade é urgente. Contudo, a questão não se encerra aí. Estudar África, território marginal, é também propor novos meios de construção do conhecimento, é acreditar que há formas diversas de manifestação intelectual e cultural e na inexistência de uma hierarquia entre elas. Assim, temos configurada uma segunda razão para estudar-se África no Brasil, tão iminente quanto a primeira: precisamos dos Estudos Africanos e Pós-coloniais para nos descolonizarmos.

  • Para acompanhar o GELCA no Facebook: @gelcaiel
  • Blog destinado a divulgar a III Jornada de Teoria Literária e Estudos Africanos, organizada pelo GELCA e pelo Departamento de Teoria Literária/IEL, que acontecerá nos dias 25, 26 e 27 de abril: https://jornadagelca.wordpress.com

As mulheres dos estudos literários: Lígia Balista

Para dar continuidade à série de posts sobre as mulheres dos estudos literários, essa semana divulgamos o trabalho de Lígia Balista. Formada em Letras pela Unicamp em 2007, Lígia começou sua carreira acadêmica ainda durante a graduação, com uma pesquisa de Iniciação Científica sobre crônicas. Na sequência, já no mestrado na Unicamp, se dedicou a pesquisar a metáfora da caminhada nos livros Autos da Alma, de Gil Vicente, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Essa pesquisa foi feita sob orientação da Professora Jeanne Marie Gagnebin, mais uma mulher incrível que merece ser lembrada aqui por seus trabalhos envolvendo literatura e filosofia.

Após se dedicar por alguns anos à experiência de trabalhar em escolas e em uma universidade federal, Lígia voltou ao doutorado, dessa vez na USP, para estudar a representação do caipira na obra de Carlos Alberto Soffredini. Hoje, prestes a defender sua tese, comemora um ano da publicação da coleção Soffredini: obras principais (2017), organizada por ela em parceria com Renata Soffredini. A publicação das quatro peças teatrais que integram a coleção (“Vem buscar-me que ainda sou teu”, “Na carrêra do divino”, “Pássaro do poente” e “De onde vem o verão”) é um importante passo para a dramaturgia brasileira, pois coloca em circulação obras inéditas que fazem parte da história do teatro nacional.

Motivada pela admiração que tenho por seu trabalho e também pelo lançamento da coleção, convidei a pesquisadora para uma entrevista. Foi ótimo aprender mais sobre o processo editorial que envolve a publicação de uma coleção inédita e conhecer uma nova pesquisa sobre literatura brasileira. Agradeço a Lígia pela disponibilidade e pelo carinho com que trocou mensagens comigo. Como sempre, reafirmo o quanto me sinto honrada por estar ao lado dessas mulheres tão competentes que compõem os estudos literários no Brasil.

Marca Páginas: Lígia, quando estamos com um livro pronto e finalizado nas mãos, às vezes nos esquecemos de como existe um trabalho extenso e cansativo por trás daquele objeto, que depende de várias etapas, como pesquisa, seleção e estabelecimento dos textos definitivos, além da dedicação a textos introdutórios, prefácios, posfácios etc. Como foi o processo de organização das obras principais de Carlos Alberto Soffredini? Quanto tempo vocês ficaram envolvidas com esse trabalho? E o que você considerou mais difícil e mais prazeroso nesse processo?

Lígia Balista e Renata Soffredini no lançamento da coleção em Santos

Lígia Balista: De fato, o processo é sempre muito interessante também, e em geral muito longo e cheio de etapas variadas. A organização dessa coleção começou, pra mim, anos antes: em 2014 (começo do meu doutorado), quando conheci pessoalmente a herdeira do Soffredini – a atriz e diretora Renata Soffredini, em um evento na Unicamp. Para ela, a ideia da coleção já vinha de antes ainda! Já tinha havido uma tentativa de publicação da obra como coleção, mas até então o projeto não havia seguido adiante.  No ano de 2015 fizemos vários movimentos nessa tentativa de publicação. Entrei em contato com diversas editoras, cheguei a fazer reuniões presencias para mostrar o material e discutir possibilidades. Alguns retornos eram bem animados, mas nenhum seguiu muito adiante. Publicar teatro é uma luta! Em meados de 2015 a Renata ficou sabendo do edital da Proac/SP para publicação de inéditos. Já tínhamos algum acúmulo entre nós sobre quais seriam as peças principais e como gostaríamos de estruturar a coleção. Foi a hora de sistematizar tudo e enviar a proposta! Montamos o projeto e tentamos! Quando foi aprovado, além da enorme alegria, começou um período de bastante trabalho: definição dos convidados para escrita de prefácios e posfácios; seleção de fotos para compor os livros (acompanhar cada peça) e a parte biográfica; decisões sobre como montar a cronologia (minibiografia) sobre o autor; decisões sobre o estabelecimento de texto; ideias para as capas etc… Foi muito gostoso ver que todos os professores convidados para escrever prefácios e posfácios aceitaram com alegria participar do projeto! Outra etapa importante foi convidar a editora Giostri para fazer a parceria na publicação. O trabalho deles foi fundamental para alguns processos, como a criação das capas, por exemplo, e a própria impressão do livro. Mas também foram momentos de muitas idas e vindas. A produção de um livro é um trabalho coletivo, né? E várias mudanças e pequenos ajustes foram necessários nessa etapa. Tínhamos a pressão do prazo com a prestação de contas do edital. Foi um período de muitas reuniões (presenciais ou às vezes por telefone mesmo) e era um processo constante de importantes decisões! Sobre o estabelecimento de texto, eu participei mais diretamente e pessoalmente do trabalho com a peça “Na carrêra do divino” – o que foi muito rico para o desenvolvimento do meu processo de pesquisadora sobre essa peça. Ganhei uma familiaridade enorme com o texto, após tantas leituras, tantas pesquisas para revisão. No final do ano passado tive a alegria de poder dividir um pouco mais sobre esse processo (e sobre o que ele representou para minha pesquisa, inclusive) em um artigo que saiu pela revista da ECA/USP. A peça mais recente, “De onde vem o verão” de 1990, já foi escrita pelo autor com uso do computador, o que facilitou um pouco o processo do trabalho com o texto. Sobre sua última pergunta: acho que o mais difícil é ver algumas coisas não saírem como planejamos… Tentamos ter o maior cuidado possível com o material todo que estava sendo elaborado, mas… nem tudo depende só de nós, né! Faz parte de um processo grande e longo como esse. E talvez o mais gostoso pra mim, além do enorme aprendizado que tive sobre o processo completo de organização e produção de um livro (de uma coleção!), foi a aproximação intensa com a obra e o acervo de materiais do autor. Como pesquisadora, foi riquíssimo poder mergulhar nesses textos todos e em alguns materiais pessoais de Soffredini. E, como professora e leitora, acho que o mais legal é ver a obra circulando! Realmente podendo chegar aos leitores agora… Tive, nesse sentido, alguns retornos de leitura muito interessantes e emocionantes! Daqueles que nos faz ver que já valeu a pena!

Capas dos 4 volumes que compõem a coleção Soffredini: obras principais (2017)

Marca Páginas: Seu doutorado na USP é sobre a representação do caipira na obra de Soffredini. Você acredita que sua pesquisa contribuiu para a organização desses livros? De que maneira esses dois trabalhos se relacionam e se afetam entre si?

Lígia Balista: Acredito que sim. Desde antes de entrar no doutorado, em meus primeiros contatos com a Renata Soffredini para conseguir os textos para ler e decidir o recorte a pesquisar, essa ideia se apresentou. Era um desejo antigo dela conseguir pensar uma publicação das obras do pai, então ela quis saber mais de que universidade eu era e qual era exatamente o projeto – pensando inclusive nessa possível aproximação com as editoras universitárias. Pra mim, a ideia – que era também só um sonho no início (seria ótimo, mas eu não fazia ideia da viabilidade ou não de uma publicação como essa) – foi se tornando cada vez mais uma construção real e parte de minha pesquisa. Para estudar o dramaturgo não publicado eu precisava acessar os textos; a cada texto acessado, a vontade de publicá-los só aumentava. Para criar um círculo maior de debate em torno da obra do autor era importantíssimo que ele passasse a circular como livro. Acho que senti isso mais ainda por estar nos estudos literários. Quando meus encontros eram com os estudiosos de artes cênicas, em geral eles conheciam o trabalho do Soffredini. Já nas letras, era mais raro. Poder contar com as peças em livro agora talvez mude esse cenário um pouquinho… Em uma das disciplinas de pós sobre teatro brasileiro que fiz na universidade, por exemplo, um professor chegou a comentar comigo que teria incluído uma das peças de Soffredini no programa, mas não tinha o texto para ler e disponibilizar aos alunos. Aquilo me marcou muito (sobre as barreiras que as materialidades do texto impõem, mas também no outro sentido: sobre as possibilidades reais e a importância de investir na publicação). Hoje sinto, com muito orgulho, que foi também uma conquista importante da minha dedicação à pesquisa que possibilitou conseguir tocar esse processo de publicação dos livros da coleção. Sempre com o enorme empenho e abertura da herdeira do dramaturgo, é claro. Sem a confiança da Renata nada disso seria possível.

Lígia Balista com os manuscritos das peças teatrais de Soffredini

Marca Páginas: Parece ser comum, entre pós-graduandos e pesquisadores, uma certa angústia relacionada às poucas oportunidades de diálogo existentes entre a pesquisa acadêmica e a comunidade que está fora das universidades. Você sente ou concorda com essa angústia? Quais são, em sua opinião, possibilidades válidas para atenuar essa distância?

Lígia Balista: Em geral concordo sim. Já senti isso muitas vezes. Acho que especialmente em nossa área, os objetos de estudos podem parecer muito distantes dos problemas reais e atuais do mundo, da vida das pessoas. Mas fui aprendendo que isso é mais uma barreira que um certo imaginário de mundo nos coloca… Porque, afinal, se pesquisamos/estudamos cultura, isso sem dúvidas está relacionado ao modo de viver das pessoas. E também nesse sentido a publicação dos livros inéditos é muito bacana! A dramaturgia do Soffredini vira acessível! Parece que nosso objeto de estudo passa a ser, digamos, mais real! Parte do planejamento de divulgação da coleção Soffredini: obras principais era realizar duas palestras em escolas, após a publicação dos livros. A Renata fez uma e eu outra. E o retorno dos alunos de Ensino Médio foi maravilhoso!

Marca Páginas: E sobre ser mulher na nossa área de pesquisa… você acha que fazer parte dos estudos literários no Brasil, hoje, passa também por questões relacionadas a gênero?

Lígia Balista: Acho que o fato de seguirmos carreira acadêmica nos aproxima de um lugar de nossa profissão em que, em geral, predomina a presença de homens. É muito significativo olhar o número de mulheres que entram na graduação para estudar literatura e a porcentagem de professoras mulheres que seguem na vida acadêmica. Fui representante discente durante um período na pós aqui na USP. E alguns casos de dificuldades em seguir a pós que chegavam até mim passavam sim pelo machismo – não só presente na universidade, mas na sociedade em geral, né… A licença maternidade, por exemplo: é uma coisa só reconhecida pelo mundo da pós graduação há pouquíssimo tempo! Vale, por exemplo, conhecer o trabalho de divulgação que as pesquisadoras do Gepô têm feito, nos últimos dias: #generoemação. Na vida acadêmica, especificamente, algumas atitudes vão sendo associadas a uma maneira de estar no mundo mais “masculinizada”, digamos. E é muito curioso (difícil!) lidar com isso no dia a dia… Mas seguimos!

Sugestões de leitura:

  • O artigo que Lígia menciona na entrevista, “PESQUISANDO SOFFREDINI: um mergulho por seu acervo e na história da publicação de um autor “quase” popular”, está disponível aqui: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/138376
  • Para conhcer o Gepô (Grupo de Estudos de Gênero e Política DCP USP): https://www.facebook.com/gepo.dcp.usp/
  • Indicação da coleção de peças teatrais de Carlos Alberto Soffredini (1939-2001): Soffredini: obras principais. “Vem buscar-me que ainda sou teu”, “Na carrêra do divino”, “Pássaro do poente” e “De onde vem o verão”. Organização Renata Soffredini e Lígia Balista; São Paulo: Giostri, 2017.

As mulheres dos estudos literários: Regina Dalcastagnè

Esse post é dedicado à memória de Marielle Franco: socióloga, pesquisadora, vereadora, feminista, militante dos direitos humanos, mulher, negra, lésbica, favelada, e brutalmente assassinada pelo Estado brasileiro em 14 de março de 2018.

Nesse mês de março, historicamente dedicado às lutas das mulheres, gostaria de divulgar, numa série de posts aqui no blog Marca Páginas, os trabalhos de algumas das mulheres que nos dias de hoje se dedicam aos estudos literários no Brasil. Nesse campo de pesquisa tomado por vozes masculinas (como tantos outros), vale a pena lembrar que esse espaço é ocupado também por mulheres incríveis, professoras-pesquisadoras que são referências pela qualidade de seus estudos. São apenas alguns nomes dentre tantos que poderiam ser citados, mas espero que cada uma de nós – professoras, pesquisadoras, estudantes – se sinta contemplada e reconheça a importância de compor esse círculo de mulheres competentes. Como sempre repito: a cada vez que nos percebemos menos sozinhas em nossas lutas, nos tornamos mais fortes.

Regina Dalcastagnè 

Fonte: Facebook.com

Falar sobre os estudos de literatura brasileira contemporânea atualmente passa, sem dúvida, por reconhecer a importâncias das pesquisas que Regina Dalcastagnè vem desenvolvendo nos últimos anos. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Regina se dedicou especificamente à literatura a partir do mestrado e do doutorado: no primeiro, com a dissertação “O espaço da dor: o regime de 64 na produção romanesca brasileira”, defendida na Universidade de Brasília em 1993 e publicada em livro em 1996 com o título O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro; no segundo, com a tese “Uma obra em movimento: leitura(s) de Avalovara, de Osman Lins”, defendida em 1997 na Universidade Estadual de Campinas, sob orientação de Vilma Âreas, outra grande mulher dos estudos literários brasileiros e professora aposentada do Instituto de Estudos da Linguagem aqui na Unicamp.

Atualmente, Dalcastagnè é professora titular livre de literatura brasileira na UnB e pesquisadora de produtividade CNPq. Além disso, coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC) e faz parte do corpo editorial de várias revistas importantes da área. Suas principais linhas de pesquisa estão relacionadas aos estudos de representação na literatura contemporânea e da narrativa contemporânea brasileira, passando pela representação de grupos marginalizados, ocupação dos espaços urbanos e crítica literária em periódicos. Vale citar alguns de seus projetos de pesquisa mais recentes: “Fora do retrato, no meio da história: a Brasília contada pelas periferias”, “A superfície das coisas: objetos e memória na literatura brasileira contemporânea” e “Narrativas da cidade: Brasília e a experiência urbana na literatura brasileira contemporânea”. Regina publicou e organizou ainda vários livros e artigos com os resultados de suas pesquisas, dentre os quais destaco Literatura e exclusão, de 2017, Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea e Representación y resistencia en la literatura brasileña contemporánea, ambos de 2015. A extensa lista de suas publicações e atuações profissionais pode ser consultada em <http://lattes.cnpq.br/2599879538822377>.

Como já dito, uma das pesquisas mais importantes desenvolvidas por Dalcastagnè nas últimas décadas diz respeito aos modelos sociais representados na literatura brasileira contemporânea, além do perfil desses escritores. Você sabia, por exemplo, que quase 73% dos romances brasileiros publicados de 1990 a 2005 foram escritos por homens, em sua maioria brancos e de classe média? E que 62% das personagens criadas nesse mesmo período são também homens? Esses números ficam mais assustadores se pensarmos que, entre os 258 romances estudados nessa pesquisa, apenas 3 protagonistas eram mulheres negras. A seguir, reproduzo o infográfico [http://arquivo.pontoeletronico.me/2013/02/18/eu-quero-escrever-um-livro-sobre-literatura-brasileira/] de Niege Borges, publicado no site Ponto Eletrônico, que organiza os dados impressionantes recolhidos pelo GELBC durante a pesquisa “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”:

Esses números chocam, o que reforça mais uma vez a relevância que esse tipo de pesquisa tem. Regina Dalcastagnè, acompanhada por seu grupo de pesquisa, realiza esse importante trabalho, e por isso deve ser lembrada como uma mulher dos estudos literários.

Para mais informações sobre as pesquisas desenvolvidas por Regina Dalcastagnè, seguem alguns links:

Conhecendo uma pesquisa acadêmica em estudos literários, por Nina Borges Amaral

Que tal conhecer alguns dos passos possíveis para a realização de uma pesquisa acadêmica na área dos estudos literários? Nina Borges Amaral, bacharel e mestranda pela Unicamp, nos conta um pouco de sua trajetória: como iniciou sua pesquisa durante a graduação, como chegou ao seu tema de mestrado e os recortes escolhidos para realizar essa pesquisa sobre o escritor  brasileiro Bernardo Élis.

Conhecendo uma pesquisa acadêmica em estudos literários: o exemplo de Bernardo Élis

Nina Borges Amaral

Minha pesquisa acadêmica sobre o escritor goiano Bernardo Élis começou em 2013, no meu último ano de graduação em Estudos Literários[1] pela Unicamp. No curso, dentre as variadas disciplinas que cada estudante tem que fazer para se formar, estão duas obrigatórias finais: as disciplinas chamadas Monografia I e II. Nelas, desenvolve-se uma pesquisa de final de curso, cujos resultados são apresentados para uma banca de professores avaliadores na forma de um trabalho de conclusão de curso.

Diferentemente de alguns dos meus colegas, que encontraram um assunto particular que lhes interessasse e começaram suas respectivas pesquisas durante a graduação[2], passei pelo curso gostando muito de diferentes assuntos (como tradução e poesia francesa, para citar apenas dois exemplos), mas acabei não me aprofundando em nenhum. Entretanto, já quase no fim do curso, tomei conhecimento da existência do acervo Bernardo Élis no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (o CEDAE), e foi esse material que despertou meu interesse e que proporcionou meu primeiro contato mais próximo tanto com essa literatura, quanto com a pesquisa na academia.

Naquele momento inicial, parte considerável do meu trabalho foi fazer um levantamento da fortuna crítica[3] sobre o escritor e, ao perceber que muitos críticos literários o classificavam como regionalista (como é também o caso de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, por exemplo), tentar entender quais seriam as implicações de tal afirmação. Na minha monografia, portanto, apresentei uma compilação e análise de textos de crítica sobre a literatura bernardiana, assim como um breve estudo sobre o conceito de regionalismo literário.

Depois de defendida a monografia e concluída a graduação, entrei no mestrado com um projeto de pesquisa ainda sobre Bernardo Élis, já que, muitas vezes, a pesquisa que desenvolvemos na graduação (seja em uma iniciação científica ou mesmo nas disciplinas de monografia ou TCC) acaba levantando novos questionamentos para além de nossos objetivos iniciais.

No mestrado, passei a estudar, de um lado, o papel da identidade regional goiana na literatura bernardiana e, de outro, a relação entre regionalismo e modernismo em sua obra, pois, para muitos críticos, Bernardo Élis é o principal expoente do modernismo em Goiás. Atualmente, estou na reta final da pesquisa de mestrado: a escrita da dissertação – que é o principal requisito para a obtenção do título de mestre. A dissertação nada mais é que um texto final, mais longo e aprofundado, que cada aluno de mestrado deve apresentar para uma banca avaliadora explicando seus procedimentos de pesquisa, discutindo questões importantes relacionadas a seu objeto de estudo e apontando conclusões para os problemas e questionamentos levantados.

E essa reta final é muito importante, pois, tanto na graduação quanto na pós-graduação, só então podemos verificar os resultados materializados de uma ocupação solitária como é a pesquisa acadêmica.

Sugestões de leitura:

Bernardo Élis. Ermos e Gerais. São Paulo: Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, 1944; 2. ed. Goiânia: Ed. Oió, 1959; reedição (org. Luiz Gonzaga Marchezan). São Paulo: Martins Fontes, 2005 (Coleção Contistas e Cronistas do Brasil).

Dossiê Bernardo Élis – Remate de Males: revista do Departamento de Teoria Literária. Disponível em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/issue/view/220

[1] Para conhecer mais sobre a graduação em Estudos Literários e sobre as disciplinas que formam seu currículo acadêmico, visite http://www.iel.unicamp.br/br/content/estudos-liter%C3%A1rios.

[2] Quando isso acontece, os alunos podem ser orientados de maneira mais ou menos formal, seja por meio da participação em grupos de estudo, de disciplinas voltadas para a pesquisa acadêmica ou do desenvolvimento da chamada Iniciação Científica (http://cnpq.br/iniciacao-cientifica).

[3] Fortuna crítica é o termo usado para se referir a um conjunto de textos feitos por críticos literários para analisar uma produção literária específica. Aqui, os textos que fazem parte da fortuna crítica bernardiana são, portanto, textos de diferentes autores que analisam sua obra.

 

Carolina Maria de Jesus e a polêmica sobre o que é literatura

Em abril desse ano, a Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest) divulgou a lista de livros para o vestibular de 2019. Entre os já canonizados Luís de Camões, Antônio Vieira e Camilo Castelo Branco, a grande novidade foi encontrar o nome da escritora Carolina Maria de Jesus e seu livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960) entre as leituras obrigatórias.

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977)

Entre tantos livros escritos por homens e já conhecidos pelos vestibulandos, essa foi a primeira vez que a obra de uma mulher negra apareceu na lista da Unicamp. Há muito o que comemorar quando uma mudança como essa acontece em um dos maiores vestibulares do país: aos poucos, mais vozes começam a contar histórias que já conhecemos, mas que nos foram sempre contadas pelas mesmas perspectivas.

O fato dos candidatos ao vestibular terem que se preparar para a prova de literatura lendo uma obra que muitos nem sequer conheciam gera uma reação em cadeia muito interessante. Mais pessoas começam a ler Carolina de Jesus nas escolas e cursinhos, logo, mais pessoas têm contato com um universo literário distante dos padrões que já conhecemos. Não estamos habituados a ler escritoras mulheres, muito menos mulheres negras e pobres. Ao inserir essa escolha no vestibular, a Unicamp acaba por apresentar essa leitura a estudantes de todo o país, os quais precisarão pensar, discutir, refletir sobre isso. Não é pouca coisa.

Capa – Quarto de Despejo

É importante conhecer as particularidades desse livro. Quarto de despejo foi lançado em 1960 e descreve o cotidiano de Carolina de Jesus na favela do Canindé, em São Paulo, entre os anos de  1955 e 1960. De maneira bastante realista e impactante, a escritora relata em uma espécie de diário as dificuldades de viver em um barraco sem saneamento e condições básicas para criar seus filhos. Para sobreviver, catava papel e ferro pelas ruas da cidade e os trocava por dinheiro e comida. Nem sempre era suficiente, e em muitos momentos Carolina descreve a fome que sentia. Só a partir de sua descoberta pelo jornalista Audálio Dantas que seus livros foram publicados, venderam milhares de exemplares e passaram a ser traduzidos para diversas línguas.

Recentemente, em um evento da Academia Carioca de Letras em homenagem à escritora,  o estatuto de obra literária atribuído a Quarto de despejo foi questionado. E muito se falou sobre o assunto nos últimos tempos. Parece que estamos diante de uma pergunta incômoda, que tantos tentam responder, mas poucos chegam de fato a uma conclusão: o que é literatura?

Para a crítica literária e professora Marisa Lajolo, esse tipo de embate já apareceu outras vezes em nossa história e recorrentemente ressurge. Seria o mesmo caso dos estudos literários que se dedicaram às letras das canções de Chico Buarque, por exemplo, ou o mesmo questionamento que houve quando Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura. Para a estudiosa, essa questão mostra que o conceito de literatura precisa se relativizar e se reinventar à medida que novos tempos e novas demandas surgem: “o conceito de literatura – felizmente! – alarga-se”.

E, felizmente, os estudos literários também se renovam. Hoje, existem diversas pesquisas interessadas em compreender as condições de produção e os efeitos produzidos pelas obras de Carolina Maria de Jesus. Sua repercussão também lhe garantiu 8 livros publicados e traduções em mais de 10 línguas. Carolina tem sido lida cada vez por mais pessoas, de origens diversificadas, o que gera reflexões cada vez mais democráticas sobre o que é literatura e o que pode pertencer ao cânone literário de língua portuguesa.

Motivada por essa nova onda de leituras, a Banca de elaboração do vestibular Unicamp toma uma atitude que começa a mudar os rumos da literatura brasileira. Como já disse, não estamos habituados a ler escritoras negras, mas essa situação começa a mudar. E a Unicamp e a sociedade brasileira como um todo só tem a ganhar com isso.

 

 

 

A tradução de textos literários – parte 1

INTRODUÇÃO

Quando iniciamos a leitura de um livro em português, isto é, no nosso próprio idioma, somos muitas vezes levados a acreditar que aquelas palavras foram concebidas daquela forma pelo autor. Muitos tradutores realizam um trabalho tão bom com as obras originais, que praticamente se apagam durante a nossa leitura, sendo eventualmente esquecidos pelos leitores. Porém, nos estudos literários, há vários campos de pesquisa que se dedicam a desnaturalizar os processos de tradução e a compreender os métodos e as teorias que embasam esse trabalho.

O assunto é vasto, então vamos pegar um gancho em um livro de 1964, Paris é uma festa (que, vejam só, foi publicado originalmente em inglês como A Moveable Feast), de Ernest Hemingway. Em uma conversa ocorrida por volta dos anos 1920, o escritor estadunidense comenta com seu amigo Evan Shipman sobre a leitura que está fazendo de um dos maiores escritores russos de todos os tempos, Fiódor Dostoiévski:

” — Tenho meditado muito sobre Dostoiévski ultimamente – disse eu. – Como é possível alguém escrever tão mal, tão incrivelmente mal, e ainda assim comunicar tanta emoção a quem o lê?

— Não creio que seja culpa da tradutora – respondeu Evan. – Constance Garnett nos dá um Tolstói bem legível.

— É verdade. Tentei ler Guerra e paz não sei quantas vezes, até encontrar uma tradução de Constance.

— Há quem diga que ainda poderia ser melhor – disse Evan – e acredito que sim, embora não conheça russo, para opinar com segurança. Mas nós dois conhecemos muito bem esse negócio de traduções, e não há dúvida de que ela trabalhou direito. É um romance fenomenal, talvez o melhor de todos os romances, penso eu. Tão bom que é possível relê-lo várias vezes.”

(Paris é uma festa. Trad. Ênio Silveira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013).

Quem poderia conhecer a língua russa o bastante para ler um livro de Dostoiévski no original? Sabemos que a grande maioria dos leitores, assim como o próprio Hemingway, precisa recorrer a traduções, o que demonstra a importância que elas têm na circulação de obras literárias escritas em línguas estrangeiras. E se hoje em dia é assim, mesmo na era da globalização e de facilidades como Google Translator, imaginem no começo do século XX. Por isso, o tradutor é um grande mediador entre a obra original e seu leitor. E é graças ao seu trabalho que podemos ter acesso a tantos livros.

QUANTAS LÍNGUAS UM TRADUTOR PRECISA FALAR?

O trabalho de um tradutor não é nada fácil. Além de ler e reler, na língua original, a obra que será traduzida, ele ainda precisa ter total domínio da segunda língua para conseguir escrevê-la nesse outro idioma. Ou seja, ele precisa conhecer muito bem, no mínimo, duas línguas. Porém, há muitos que não param por aí, e conseguem traduzir para português, por exemplo, mais de uma língua românica (por exemplo, espanhol, italiano, francês).

É curioso, entretanto, como cada tradutor se identifica com as línguas estrangeiras que irá traduzir e acaba por se reconhecer como tradutor. Existem várias histórias como a da tradutora Constance Garnett, que possibilitou a Hemingway e a muitas outras pessoas que lessem os autores russos em inglês. Ela foi uma das principais responsáveis pela difusão mundial das obras russas do século XIX, mas ela não falava russo até começar a traduzir as primeiras obras! Foi graças às suas traduções que pôde aprender o novo idioma. Segundo um artigo da revista italiana Studio, Garnett aprendeu o idioma sozinha e traduziu cerca de 70 volumes. Até hoje, continua a ser uma referência para as traduções posteriores.

Ainda há muito que conversar sobre esse assunto… Já parou para pensar em quem traduziu o último livro estrangeiro que você leu? Dê uma olhada nas informações que ficam nas primeiras páginas dos livros, pois muitas vezes o nome do tradutor não aparece na capa. E será que deveria?

Comentem e continuemos a falar sobre tradução em um novo post!

Link para o artigo da Rivista Studio (em italiano): http://www.rivistastudio.com/cose-che-succedono/prima-traduttrice-tolstoj-e-dostoevskij-non-parlava-russo/