Literatura, Política e Resistência! As Mulheres dos Estudos Literários

Ontem, dia 26 de outubro de 2018, tive a honra e a alegria de participar de um encontro do Mulherio das Letras. Esse grupo de mulheres, que se auto-organizou em 2016/2017 para dar voz à literatura lida e escrita por mulheres, é um dos movimentos mais lindos que já vi acontecer no Brasil. E poder estar pessoalmente com essas tantas mulheres foi uma experiência que iluminou minha jornada e renovou minha fé na vida. Então, eu gostaria de compartilhar aqui com vocês o que eu apresentei lá ontem. Eu queria dizer para todas nós, mulheres, que sabemos que nossa luta nunca foi fácil, mas que nossa força renascerá sempre que precisarmos ser resistência. Às vésperas do segundo turno das eleições brasileiras, eu queria lembrar cada mulher que eu conheço, e cada mulher que vocês conhecem, de que floresceremos quantas vezes forem necessárias! Meu amor por todas vocês <3

 

Flash mob pela democracia em Perugia

 

As Mulheres dos Estudos Literários

Cláudia Tavares Alves

 

Outubro Literário: Mulherio Europa em verso e prosa

Università degli Studi di Perugia – Italia

26/10/2018

 

Bom dia. Gostaria de agradecer ao cuidado da organização, sempre tão prestativa, e à escuta de vocês aqui hoje. Pensando em como eu poderia começar esta apresentação, me dei conta de que seria possível partir de muitos pontos diferentes para abordar o tema das Mulheres nos Estudos Literários. Eu poderia, por exemplo, começar me apresentando, dizendo que sou doutoranda na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que estudo literatura há 11 anos, e que atualmente estou na Itália fazendo um estágio de pesquisa sobre o escritor Pier Paolo Pasolini. Ou eu poderia começar dizendo que tenho um blog de divulgação científica sobre Literatura, o Marca Páginas, vinculado a um portal de blogs da Unicamp, e que nele mantenho uma série de publicações que se chama, justamente, as Mulheres dos Estudos Literários. Eu poderia também citar alguma escritora mulher que se dedicou a pensar sobre seu próprio fazer literário ou a teorizar a produção literária existente, e daí pegar um gancho para pensar a relação das mulheres com a Literatura. Quem sabe eu poderia ainda começar pela situação caótica e horrenda que estamos vivendo em nosso país e como, enquanto mulheres brasileiras, temos visto nossos direitos mais básicos serem ameaçados por um candidato à presidência. E que pouco importa não estarmos fisicamente no Brasil nesse momento de instabilidade política, continuamos sendo brasileiras onde quer que estejamos.

Apesar dessas tantas possibilidades, escolhi começar minha apresentação dizendo que hoje estou aqui não só como Cláudia Tavares Alves, mas também como alguém que conversou e ouviu companheiras da área dos Estudos Literários e que, por isso, acredita que tem algo a dizer sobre o assunto. Estou aqui como uma mulher que foi silenciada e que viu serem silenciadas diversas outras mulheres ao longo desses 11 anos de estudo e pesquisa. Estou aqui como alguém que teve que lidar durante todo esse tempo com a sensação de incapacidade, de inferioridade e de não merecimento por ocupar os lugares que ocupa e que sabe que, infelizmente, seu caso não é único nem isolado. Por isso, ainda que falando em nome de outras mulheres, é difícil não conjugar esses verbos na primeira pessoa do singular: essas experiências foram sentidas no meu corpo, na minha pele, na minha mente. E mesmo que elas não tenham acontecido exclusivamente comigo, como pude confirmar com os depoimentos que recolhi, é sempre difícil despir-se das próprias experiências individuais para falar em nome de alguma coletividade.

Mas talvez a primeira e mais importante coisa que preciso dizer antes de desdobrar esse ponto é que, de todos os inícios que imaginei, nenhum deles poderia ser imparcial ou apolítico. Estar aqui hoje, ao lado de mulheres extremamente fortes e capacitadas, é um gesto político que não podemos perder de vista. Hoje, na Itália e no Brasil, somos vozes políticas que ressoam, que lutam, que resistem. Um encontro de mulheres para falar sobre Literatura em suas diversas manifestações só pode ser um gesto político e, nesse sentido, precisamos nos lembrar de que estamos reunidas hoje por nós mesmas, e também pelas outras tantas mulheres que não puderam estar aqui.

E pensando nas Mulheres dos Estudos Literários, não consigo evitar a ideia de que temos feito tantas coisas apesar de. Apesar do machismo, dos espaços reduzidos, do silenciamento, da insegurança, do pouco incentivo e investimento, hoje temos uma rede de mulheres lendo, escrevendo, traduzindo, estudando, produzindo conhecimento de alta qualidade. Se historicamente precisamos lembrar que nosso lugar foi por muito tempo reservado a trabalhos domésticos, hoje, pelo contrário, somos maioria no Ensino Superior[1]: ocupamos 57,2% das vagas das universidades brasileiras. Esse número, entretanto, não corresponde ao número de professoras universitárias: nesse caso, somos ainda 45,5% do total de docentes de Ensino Superior em nosso país. Um número bastante baixo se pensarmos que, na Educação Básica, 80% são de professoras do sexo feminino.

Esses números foram divulgados pelo INEP (Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa), em 2016, e, para além dos dados quantitativos, tive contato com uma série de depoimentos que me fizeram perceber como não foram tantas as professoras mulheres que em geral tivemos na graduação no que se refere a crítica, teoria e história literária. Mesmo sendo uma área ligada a Letras, na qual majoritariamente vemos mulheres se graduando, a Literatura, por algum tempo, foi um território tomado por homens. Por isso foi e ainda é bastante comum que professoras sejam referenciadas, em geral, apenas como professoras, enquanto que os professores homens podem ser professores, escritores, intelectuais, renomados e reconhecidos por seus sobrenomes.

E o que dizer ainda das mulheres que foram e são sutilmente apagadas da história? Penso, por exemplo, em quantas de nós chegamos a ler Gilda de Melo e Sousa ou Viviana Bosi, grandes pensadoras e professoras universitárias de Literatura. Com certeza, não na mesma proporção com que lemos Antonio Candido e Alfredo Bosi. É claro que não estou aqui diminuindo a importância desses críticos literários devido ao seu gênero masculino, mas me pergunto há algum tempo por que será que lemos tão poucas mulheres em todas as etapas de nossa formação escolar e universitária. Me pergunto, por exemplo, por que quando me formei, em 2006 no Ensino Médio, minhas referências literárias de escritoras estavam reduzidas a Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles. Isso porque sempre fui uma aluna que gostava de Literatura, tive boas condições econômicas para adquirir livros e me interessava em ler para além das leituras obrigatórias. Quantas das minhas colegas pararam em Machado de Assis e Graciliano Ramos, e nunca souberam dos livros incríveis que foram escritos também por escritoras mulheres?

Atualmente, com as ondas do feminismo e os movimentos sociais que têm trazido para as esferas institucionais esse tipo de debate, podemos perceber um certo esforço em querer modificar esse cenário. Para pensarmos em exemplos concretos, trago a lista de leituras obrigatórias proposta pelo vestibular da Unicamp. Ele é historicamente considerado inovador e progressista no sentido de priorizar a capacidade de reflexão crítica dos candidatos. Além disso, tem sua própria lista obrigatória de leituras, a qual é uma das mais atentas às discussões atuais e busca sempre inovar e dialogar com as questões contemporâneas. Pudemos ver, recentemente, a inserção das canções do álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap Racionais MC’s, como leitura literária obrigatória. Essa escolha, com certeza, representa uma quebra importante de paradigmas dentro do que pode ou não ser considerado Literatura.

Porém, já se deram conta de que a primeira vez que uma obra literária escrita por uma mulher esteve nessa lista foi em 2016, com o conto “Amor”, de Clarice Lispector? E por mais que exista um esforço em alterar essa situação, ela não melhora tanto assim com o passar dos anos. Antes de 2016, a lista era composta por 9 livros escritos por homens e nenhum por mulheres. Depois de 2016, a lista passou a ser composta por 12 leituras e apenas um conto escrito por uma mulher foi incorporado a ela.

Para as listas de 2019 e 2020, já anunciadas, a situação apresenta uma melhora que deve ser considerada. Dentre as 12 leituras obrigatórias, agora temos 3 escritas por mulheres. Em 2019, além do já mencionado conto de Clarice, temos o livro de poemas A teus pés, de Ana Cristina César, e os diários de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Para 2020, permanecem Ana Cristina César e Carolina Maria de Jesus, sai Clarice Lispector, e acrescenta-se Júlia Lopes de Almeida, com o romance A falência.

Confesso que eu não conhecia a escritora Júlia Lopes de Almeida antes da lista do vestibular e, assim como eu, acredito que muitas outras pessoas também não a conhecessem. Conversando com alguém que estudou justamente o romantismo brasileiro em sua pesquisa de Doutorado, percebi que nem mesmo ele conhecia a escritora desse período. Então, de alguma forma, a presença desse livro na nova lista de leituras obrigatórias o reinsere na história literária brasileira, à medida que reconhece a importância de um livro esquecido por grande parte da nossa historiografia literária.

Acredito que esse movimento pode ser entendido de pelo menos duas maneiras distintas, mas complementares. A primeira a partir da ideia de que existe um movimento político de inserir a leitura dessas mulheres nas listas dos vestibulares, de forma que as próprias universidades passem a pautar os conteúdos escolares e acabem gerando dessa forma uma reação em cadeia. Ao levar os livros dessas escritoras para as salas de aula do ensino fundamental e médio, ainda que pela obrigatoriedade do vestibular, mais gente estará lendo mulheres.

A outra maneira seria entender que estamos, dentro das universidades, mais atentas a esse tipo de produção literária, e que, por isso, conforme conhecemos mais Literatura produzida por mulheres, mais encontramos boa Literatura escrita por mulheres. Então, a inserção dessas escritoras se deve à qualidade estético-literária dessas obras, que estavam até então esquecidas pela crítica e pelo público leitor, enão ao gênero a que elas estão vinculadas.

A meu ver, essas duas interpretações se complementariam e de maneira nenhuma a primeira anularia a pertinência da qualidade da segunda. Vejam, é consenso que não foram só os homens que escreveram e escrevem boa Literatura. Mas se não conhecermos a Literatura feita por mulheres, se não tivermos oportunidades para lê-las, não poderíamos sequer julgar sua qualidade.

A professora e pesquisadora Regina Dalcastagnè, em parceria com o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), tem levantado dados alarmantes, aos quais me deterei brevemente apenas para ilustrar o nível de disparidade existente. Com a pesquisa Personagens do romance brasileiro contemporâneo, foi constatado que, entre o período de 1990 e 2004, nos quase 300 romances pesquisados, apenas 27,8% das obras foram escritas por mulheres. Os 72,2% dos escritores homens eram ainda, em sua grande maioria, brancos, de classe média e habitantes do eixo Rio-São Paulo. Esse dado talvez nos ajude a entender por que, no mesmo período e baseando-se nos mesmos romances pesquisados, apenas 37,8% das personagens eram mulheres e por que cerca de 16% desses livros não apresentavam nenhuma personagem mulher significativa[2]. É ainda chocante que, em um segundo momento dessa mesma pesquisa, que compreende o período de 2005 a 2014, entre os quase 200 romances pesquisados, esses dados se alteram muito pouco: 29,4% de autoras mulheres e apenas 34,6% de personagens femininas[3].

Se as mulheres escritoras são minoria e, por isso, são pouco lidas, e ainda não são representadas nos livros que lemos, como então nos sentirmos motivadas a ocupar esse lugar de escrita e de estudo? Não nos vimos, por muito tempo, representadas nas leituras que nos foram impostas e também nas leituras que pudemos escolher. Além disso, quantas mulheres ao longo dos anos foram incentivadas a serem escritoras? Acredito que pouquíssimas. Em contrapartida, nunca tivemos tantas mulheres escrevendo e se movimentando no meio literário como hoje – e a existência do Mulherio e desse evento nos últimos anos é uma prova maravilhosa de que esse espaço existe e pode ser diferente.

Registro da minha apresentação por Ana Júlia Valezi

É por todos esses motivos que posso dizer que estamos diante de um movimento que se complementa e faz a roda girar, possibilitando uma mudança dessa situação. E à medida que políticas públicas, como as das listas dos vestibulares, colocam em jogo mais escritoras mulheres, mais escritoras mulheres se sentem representadas e aptas a escreverem e publicarem suas obras. E assim, felizmente, a literatura produzida por mulheres ganha força no cenário literário brasileiro.

Quanto à área dos Estudos Literários, a situação também é ainda hoje um campo de ressignificação constante. Ouvi de mais de uma amiga, assim como ouvi de mim mesma por muito tempo, que a carreira acadêmica na área de Literatura não foi sequer desejada por pensarmos que essa área não seria para nós. O que significa, então, quando mulheres nem sequer cogitam uma possibilidade profissional por acreditarem que não servem, que não se encaixam naquela posição social? Com que frequência, aliás, ocorre essa espécie de autossabotagem em que, antes mesmo de considerarmos que não teremos capacidade para alcançar algo, dizemos a nós mesmas, em silêncio, que determinado lugar simplesmente não nos pertence? A construção social é tão forte, e estamos tão imersas nas escolhas que nos seriam óbvias, que não conseguimos mais conceber o que estão nos dizendo que é impossível de realizarmos.

Mas afirmo mais uma vez que estamos aqui hoje reunidas para lembrarmos umas às outras, cada qual com sua própria caminhada, que somos sim uma rede de mulheres extremamente capacitadas para fazermos o que quisermos. Estamos ocupando espaços que até pouco tempo atrás eram pouco imagináveis porque estamos nos vendo espelhadas em outras mulheres que conseguiram, que são brilhantes, que merecem estar onde estão porque têm capacidade de sobra para ocupar as posições que ocupam. E quando vemos outras mulheres nessas posições em que gostaríamos de estar, o impossível se torna possível.

Hoje, depois de tantos anos formulando e lidando com essas inquietações, faço questão de estar atenta à produção literária e crítica feita por mulheres. Mas é fato que grande parte desse acompanhamento se dá de maneira não institucionalizada, para além do universo acadêmico. O que quero dizer com isso é que é preciso que eu faça um esforço para chegar à Literatura e à crítica literária produzida por mulheres, pois nós ainda ocupamos um espaço reduzido na academia. Uma série de iniciativas, como o próprio Mulherio, nos ajudam a acessar esse tipo de conteúdo produzido por mulheres. Além disso, a pesquisa formal, nas bibliotecas, e a informal, em passeios despretensiosos por livrarias, não me deixam perder de vista que a cada homem que tenho a chance de ler, pois seu livro está exposto na vitrine, existe provavelmente uma mulher contemporânea a ele que não teve oportunidades igualitárias de ter seu trabalho divulgado.

E com isso retorno aos nossos dias presentes e penso que, quando o trabalho das mulheres em geral é diminuído até mesmo por um candidato à presidência do Brasil – e, infelizmente, isso provavelmente não o fará perder uma eleição –, estamos diante de um cenário pouco animador. Pesquisas realizadas recentemente, em 2017 e 2018, pela agência de empregos CATHO, mostram que ainda somos pior remuneradas em todas as áreas profissionais. Mulheres com ensino superior ganham ainda hoje um salário 43,5% menor do que homens ocupando exatamente os mesmos cargos. Além disso, somos minoria em cargos importantes e de gestão, e apenas aproximadamente 25% dos cargos de presidência são ocupados por mulheres. Nem mesmo na área da Educação, onde, como já vimos, somos maioria no ensino básico, essa disparidade salarial deixa de existir: as mulheres ainda recebem 9% a menos do que os homens[4].

E obviamente nada disso está relacionado à nossa menor capacidade de atuação. Pelo contrário, as experiências de trabalho tendem a ser melhores com mulheres ocupando cargos importantes, justamente porque precisamos nos preparar muito mais para fazer o que precisamos fazer, já que sabemos que seremos mais cobradas e mais questionadas por qualquer deslize cometido. E precisamos ainda demonstrar mais seriedade e compromisso com o trabalho, pois estamos sujeitas ao assédio moral e sexual recorrentes em ambientes de trabalho, inclusive dentro das universidades.

É diante desse cenário alarmante, entretanto, que nos refazemos. Somos mulheres, conhecemos desde sempre a força que nos habita e nos encoraja. Nossa própria existência é um ato constante de resistência e, por isso, os percalços de um mundo difícil de mudar não nos assusta. Estamos cercadas de boas companhias: boas companheiras de luta, boa literatura feita por mulheres, boas professoras, pesquisadoras e estudantes que hoje configuram uma geração que se questiona sobre as reflexões que tentei apresentar aqui hoje. A geração de crianças e adolescentes meninas que vem por aí, por sua vez, está chegando ainda mais consciente de que ninguém poderá limitar sua existência.

Eu gostaria então de terminar minha apresentação com a leitura de um poema escrito pela poeta italiana Piera Oppezzo, falecida em 2009, que está recolhido no livro Donne in poesia, de 1976. Fiz essa tradução há alguns meses quando a legalização do aborto não foi aprovada pelo Senado, na Argentina. Eu queria dizer para nossas hermanas, assim como eu gostaria de dizer aqui para todas nós hoje, que nossa existência como mulheres é a nossa maior força e que é com os nossos medos, com os nossos fracassos e os nossos erros, que reconstruímos essa nossa força. Com ela, nos reinventamos e reinventamos, inclusive, nossa própria esperança de que, um dia, um mundo menos desigual floresça. Obrigada.

 

O grande medo, de Piera Oppezzo

A história da minha pessoa

é a história de um grande medo

de ser eu mesma,

contraposto ao medo de me perder de mim mesma,

contraposto ao medo do medo.

Não poderia ser diferente:

na apreensão se perde a memória,

na submissão, tudo.

Não poderia

a minha infância,

saqueada pela família,

me permitir uma maturidade estável, concreta.

Nem a minha vida isolada

me permitir algo menos frágil

do que este debater-me entre ânsias e incertezas.

À infância, eu sobrevivi,

À idade adulta, eu sobrevivi.

Quase nada em comparação à vida.

Eu sobrevivi, no entanto.

E agora, entre as ruínas do meu ser,

Alguma coisa, uma utopia imóvel, está para florescer.[5]

[1] http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-sao-maioria-na-educacao-superior-brasileira/21206

[2] https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/03/19/as-mulheres-dos-estudos-literarios-regina-dalcastagne/

[3] https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/

[4] https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-os-homens-em-todos-os-cargos-e-areas-diz-pesquisa.ghtml

[5] https://internopoesia.com/2014/09/09/piera-oppezzo/

Literatura, Política e Resistência! A quem interessa queimar livros?, por Danielle Chagas de Lima

A quem interessa queimar livros?

O ano é 2018, século 21. Apesar da imensa distância espaço-temporal e também das diferenças entre as sociedades, vira e mexe eu me pego pensando em uma obra datada do século 2. São declarações como “Os livros que não trazem a verdade sobre o regime de 1964 têm que ser eliminados[1] e notícias como “Livros de direitos humanos são rasgados na biblioteca da UnB”[2] que me transportam à introdução da obra Agrícola, de P. Cornélio Tácito, escrita por volta do ano 98 d.C.[3]

Queima de livros. 30 ilustrações para “A História de Dom Quixote” (Fonte: The British Museum)

Tácito nasceu por volta do ano 56 e faleceu no ano 118 d. C. Ele foi um importante historiador de sua época e sua obra, que retrata o período do Império romano, nos chegou em grande parte conservada[4]. A obra da qual sempre me lembro intitula-se A vida de Júlio Agrícola (De uita Iulli Agricolae) e narra, conforme o título sugere, a biografia de seu sogro, Júlio Agrícola. Bem, tentando não me afastar demais do porquê tal livro me vem à mente, faço um breve resumo de seu contexto de produção.

Trata-se do início do principado de Trajano, em Roma, quando Tácito finalmente sente-se livre e seguro para escrever sem correr perigo por causa do conteúdo da obra que pretende produzir. No texto, antes de apresentar a personagem principal, o autor faz uma reflexão sobre a escrita da história, mais especificamente, de textos biográficos e autobiográficos. Segundo ele, desde tempos muito remotos, homenagear a vida daqueles considerados ilustres na sociedade era um costume bastante comum. Mas Tácito nos conta que, em seu ofício de historiador, durante muito tempo encontrou dificuldades para compor uma homenagem a Agrícola, um homem que julgava exemplar naquele contexto. Essa personagem central da obra viveu durante os principados de Nero e de Domiciano: dois imperadores que comumente são vistos como os mais cruéis da história do Império romano[5]. Ainda na abertura da obra, Tácito explica também sobre a impossibilidade de compor sua obra à época de Domiciano e relembra o que houve com aqueles que se atreveram a escrever:

Fyodor Bronnikov lendo a sentença de morte de Trásea Peto (Fonte: http://www.art-catalog.ru/picture.php?id_picture=11335)

Nós lemos que quando Trásea Peto e Helvídio Prisco foram louvados por Aruleno Rústico e Herênio Senecião, respectivamente, isso se tornou motivo de pena capital. E não se enfureceram só contra os próprios autores, mas também contra seus livros. Delegou-se aos triúnviros a tarefa de queimar as memórias dos mais ilustres espíritos, no comício do fórum. Certamente, pensavam ter também coibido com aquele fogo a voz do povo romano, a liberdade do senado e a consciência do ser humano. Sem contar os filósofos que foram expulsos e toda a nobre arte levada para o exílio, para que nada se encontrasse de honesto em parte alguma. Fornecemos, sem dúvida, uma grande prova de paciência, e tal como a geração antiga viu o extremo da liberdade, do mesmo modo nós vimos o extremo da escravidão e até o acordo entre o falar e o ouvir foi suprimido por meio de inquéritos. Também teríamos perdido com a voz a própria memória, se em nosso poder estivesse tanto o esquecer quanto o calar[6].

Aruleno Rústico e Herênio Senecião, seguindo a tradição literária, escreveram obras em homenagem a duas personalidades conhecidas na história romana por sua oposição à autoridade do imperador e à falta de liberdade de expressão do senado[7]. Ambos foram punidos com a morte. Seus livros, e talvez outros mais, foram queimados em público. Tudo isso porque representavam condutas de personagens que em certa medida questionavam a autoridade única do imperador e denunciavam a corrupção de seus pares. O fogo, como Tácito nos diz, também deveria silenciar a voz do povo, suas ideias, sua consciência. A liberdade de pensamento também foi censurada, expulsando-se dali os filósofos. Ou seja, havia uma grande preocupação em limitar os discursos circulantes. Pode-se dizer que a Literatura (e, consequentemente, o pensamento em circulação) só poderia representar aquilo que passasse pelo crivo do imperador[8].

Por um lado, quando eu vejo notícias como as que mencionei no início deste texto, não consigo deixar de pensar que, infelizmente, há mais de 2000 anos obras são lançadas ao fogo, a fim de apagar a pluralidade de visões em determinados momentos históricos. Nem era preciso ter ido tão longe para encontrar testemunhos desse tipo, tantas outras vezes isso já aconteceu na história da humanidade[9]. Por outro lado, eu fico feliz e me fortaleço ao pensar em como a Literatura dispõe de força, valor político e atua como resistência. Não é à toa que os livros tornam-se vítimas concretas e simbólicas daqueles que pretendem contar uma história única. Tácito passou quinze anos em silêncio para preservar sua vida. Ao primeiro sinal de abertura, não deixou de relatar o autoritarismo existente outrora e as consequências daqueles que escreviam obras livres de uma adulação ao imperador. Fez de sua obra, portanto, memória daqueles que perderam suas vidas e também resistência, ao incluir na história os nomes daqueles que mereciam ser lembrados[10].

Lucio Massari (1569-1633)

As manchetes que citei me fazem pensar nesse texto porque ali algumas palavras me chamam a atenção. Propõe-se eliminar livros que não contêm a verdade sobre um momento histórico há muito estudado e documentado. Mas qual verdade, afinal? Livros sobre direitos humanos são rasgados… a quem isso interessa nesse momento? A que tipo de políticas interessa suprimir obras, e mesmo seus autores, ao longo da História?

O nosso mundo e a nossa história são feitos de narrativas. De pontos de vistas. São sempre tempos lamentáveis aqueles em que vozes são silenciadas, concreta e simbolicamente. Mas a literatura resiste e, por meio dela, podemos também nós sempre resistir e buscar a liberdade de pensamento e de expressão. Afinal, a “arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós”[11].

Em tempo: este texto é sobre livros, mas não pode deixar de lembrar e lamentar a perda de tantos registros culturais, de obras de artes e de documentos que se perderam com o incêndio de museus importantes em nosso país. Museus que, negligenciados e abandonados pelo investimento público, foram consumidos pelo fogo junto com memórias do passado. Nos últimos três anos, o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa e o Museu Nacional tornaram-se vítimas desse fogo institucionalizado.

[1] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/28/general-ligado-a-bolsonaro-fala-em-banir-livros-sem-a-verdade-sobre-1964.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acesso em 09/10/18.

[2] Fonte: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2018/10/04/livros-de-direitos-humanos-sao-rasgados-na-biblioteca-da-unb.ghtml. Acesso em 09/10/18.

[3] Antes de continuarmos, é importante ressaltar que a leitura de obras antigas requer atenção a diversos conceitos e ao funcionamento próprio daquela sociedade para que não sejamos anacrônicos. Além disso, mesmo a ideia de História, como disciplina, é muito diferente daquela que temos hoje, bem como os procedimentos de sua escrita, questões que escapam ao espaço deste post. Para mais informações a esse respeito, indicamos a tradução completa e anotada dessa obra, disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/271127/1/Lima_DanielleChagasde_M.pdf.

[4] Mais sobre o autor e outros historiadores romanos em FUNARI, P. P.; GARRAFONNI, R. S. Historiografia: Salústio, Tito Lívio e Tácito. Coleção Bibliotheca Latina. Campinas: Editora Unicamp, 2016.

[5] Tácito escreveu sobre o principado de Nero na obra Anais (Annales), nos livros 13 a 16.

[6] Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 2. Tradução do latim de minha autoria. Temos outro testemunho antigo sobre este fato: Suetônio, que escreveu a obra A Vida dos doze césares, também menciona esse ocorrido na biografia de Domiciano.

[7] Trásea Peto foi um senador romano cujo comportamento é lembrado como símbolo da oposição a Nero. Lutou por seus ideais até a morte. Helvídio Prisco foi exilado pelo imperador na mesma época. Para saber mais, indicamos os Anais e as Histórias, de Tácito.

[8] Domiciano não foi o único imperador a agir desta forma. O imperador Tibério também condenara o historiador Cremúcio Cordo, cujos escritos não lhe agradaram; sua obra foi queimada, conforme relatam Tácito (Anais, 4.34-5) e Suetônio (Vida de Tibério, 61.3).

[9] Em diversos momentos e sociedades, livros com discursos diferentes daquele dos regimes vigentes foram incinerados. O caso da biblioteca de Alexandria é bastante conhecido. Durante a Inquisição isso também ocorreu. Em 1933, livros foram queimados durante o Nazismo, na Alemanha. Mais recentemente, em 1973, Pinochet também ordenara queimar livros. Para mais eventos do tipo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_de_livros.

[10] Assim Tácito nos conta: Pois, se por quinze anos, um grande espaço de tempo da vida humana, muitos foram mortos por circunstâncias fortuitas e os mais diligentes pela crueldade do príncipe, poucos, por assim dizer, somos não só sobreviventes a outros, mas também a nós mesmos. Fomos arrebatados do meio da vida tantos anos, durante os quais viemos em silêncio, jovens até a velhice, velhos até quase o próprio fim de sua geração. Mas eu não lamentarei ter composto, mesmo com tom grosseiro e rude, a memória da servidão passada e o testemunho dos êxitos do presente (Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 3.2).

[11] De Eliane Brum, Como resistir em tempos brutos, aqui: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html.

Literatura, Política e Resistência! Em nome da cultura me retiro do Prêmio Strega, por Pier Paolo Pasolini (tradução Cláudia Alves)

A Guilherme Ivo, com quem tive a honra de compartilhar o ofício da tradução, a alegria pelas leituras e o desajuste em nosso mundo. Se hoje ouso traduzir Pasolini, é porque um dia ele me disse que eu poderia (e deveria) fazer isso.

Em 1968, o escritor italiano Pier Paolo Pasolini decidiu se retirar de um dos maiores prêmios literários da Itália (senão o maior) por não concordar com a forma como a produção literária vinha sendo tratada em seu país. Sua maior crítica estava relacionada à transformação do mercado editorial em mais uma engrenagem do complexo sistema de dominação da indústria cultural e do consumismo. Com essa atitude, o escritor mostrou estar disposto a colocar em prática uma reflexão que começava a ganhar consistência em seus escritos jornalísticos. Seu gesto de protesto reflete, por sua vez, o compromisso com suas reflexões críticas e não com um mercado editorial sedento por enjaular escritores em um sistema de produção comercial. Movido por seus “interesses culturais”, isto é, pela crença de que a verdadeira literatura só poder ser criada com total liberdade de pensamento, Pasolini se retirou de uma cadeia de produção que, infelizmente, está presente em nossa vida literária hoje mais do que nunca. Coerência de conduta: Pasolini foi um dos poucos em nossa história que teve coragem de viver sua vida com a mesma criticidade com que observava as mudanças sociais e políticas de sua época. E é por isso que seu texto abre a nova série sobre Literatura, Política e Resistência que se inicia hoje aqui no blog Marca Páginas. Porque precisamos protestar e defender, sempre, aquilo em que acreditamos, em todas os espaços da nossa existência. Boa leitura a todos!

 

Em nome da cultura me retiro do Prêmio Strega[1]

Pier Paolo Pasolini

Tradução: Cláudia T. Alves

 

A primeira reação de um observador pragmático e um pouco indiferente quando descobre que, pouco antes da segunda votação, um participante retira seu livro do Prêmio Strega é que se trata de uma ação incorreta. Pois bem, e é mesmo. Trata-se de um erro formal, e sabe-se que o acerto formal é uma das bases da convivência democrática. Ainda que isso não tenha exigido muito esforço, precisei então usar uma certa violência contra mim mesmo nessa decisão de me retirar do prêmio (formalmente, de acordo com o regulamento, a minha saída não existe na prática: meus 62 eleitores estão portanto livres para fazer o que quiserem – e sabemos que sou plenamente grato a eles por seus votos, inclusive porque 40 deles foram inesperados).

Por que usei desta violência contra o meu legalismo e o meu respeito pelas formalidades democráticas? Porque eu estava diante de um dilema: ou sair incorretamente – e isso seria ruim – ou ficar – corretamente – e isso seria pior ainda. É muito simples dizer o porquê. Mas, primeiro, quero fazer um resumo do que aconteceu nesses dias.

Como o leitor talvez saiba, na primeira votação do prêmio os candidatos estavam restritos a 5 nomes: Bevilacqua (103 votos), eu (62 votos), Cattaneo (56 votos), Barolini (52 votos) e Zavattini (37 votos). Eu tinha decidido participar do prêmio como se fosse um jogo (ou uma loteria, como disse Zavattini): para ter a satisfação infantil de ser premiado. Enfim, participei com leveza, com o gosto do risco, com curiosidade, com vaidade – talvez para agradar a minha mãe, como eu fazia quando voltava para casa, durante a primeira série, e mostrava lá da rua, ela olhando da janela, a fita verde da medalha de primeiro aluno da classe, conquistada semanalmente (ai, que hábito maldoso). Bom, aos poucos a minha leveza se mostrou ingenuidade e essa ingenuidade, cumplicidade.

É verdade que outras vezes já participei do prêmio: com Ragazzi di vita, em 1955 ou 1956, e com Una vita violenta, em 1959. Os eleitores (escolhidos arbitrariamente, e por isso digo que quem decide participar do prêmio Strega decide participar de um jogo e não de uma “competição democrática”) decretaram minha derrota de forma exemplar. Mas aqueles eram outros tempos, eram os anos 50, com a Itália ainda paleocapitalística, com o Sul, com seus subgovernos etc. etc. Hoje tudo mudou. Enquanto o Prêmio Strega era, como dizem, uma coisa de família, participar dele parecia jogar bingo com os vizinhos – ou seja, todas as pequenas bagunças, as míseras alianças, as contratações forçadas faziam parte de uma “imoralidade”, contra a qual nem valia a pena polemizar. Hoje, por outro lado, o Prêmio Strega se tornou parte integrante da chamada “indústria cultural” e se enquadra em um novo tipo de Itália burguesa, sobre a qual não paira mais a ameaça romântica e ultrapassada de uma revolução operária, a qual no final das contas não aconteceu. A “imoralidade” portanto não é mais um fenômeno parcial, no cerne de uma particularidade social (a vida literária), mas é um fenômeno total, relacionado ao conjunto da sociedade italiana.

A imoralidade que imperava no Prêmio Strega nos anos anteriores ao novo rumo da sociedade italiana não me ofendia mais do que parcialmente e eu me permitia um certo cinismo, mas hoje não mais. Quando aceitei concorrer ao prêmio esse ano, estava iludido – por culpa da minha natureza relutante em reconhecer o mal e a má fé – de que as coisas não seriam tão graves. A minha ingenuidade me fez cometer um erro; seria estúpido se eu agora não reconhecesse publicamente esse erro e não tentasse repará-lo talvez até erroneamente, isto é, cometendo uma nova ingenuidade.

Em resumo, tomei consciência dos fatos (dos quais, infelizmente, não posso e, acho, nunca poderei ter provas) que me convenceram de que o Prêmio Strega está completa e irreparavelmente nas mãos do arbítrio neocapitalístico; que aquilo que aconteceu em 1966 não foi um caso, mas um precedente: e que esse ano as coisas estão se repetindo. Devo me tornar cúmplice? Um editor certamente tem o direito de exercer as pressões que deseja, os seus interesses são do tipo industrial e, diante da concorrência, sabemos que os “patrões”, mesmo que adocicados pelo novo rumo, são capazes de qualquer coisa. Os meus interesses, pelo contrário, são de tipo cultural e, para mim, ser capaz de qualquer coisa pode significar apenas uma atitude: protestar. Assim me retiro incorretamente da segunda votação do prêmio, em protesto: protesto contra a interferência do editor industrial em um campo que considero ainda, arcaicamente, não industrial, a qual se concretiza na criação de valores falsos e na extinção de valores verdadeiros. Digo extinção porque o neocapitalismo não tem escrúpulos: a América reacionária o educa. Circulam palavras de ordem e velinas[2]. Sobre esse livro podem falar, sobre esse outro se calam; este livro ganha um prêmio, esse outro não. E ai de você, Editor de revista, se publicar boas resenhas sobre esse livro. E se você, Escritor, não fizer uma boa resenha sobre esse outro, você vai me pagar caro por isso: nenhum dos meus periódicos vai mais falar de você. Ah, e você, Literato, é amigo de outro literato? Pois bem, traia-o, se não eu não renovo seu contrato com a minha editora. Você é jurado de algum prêmio? Ótimo, me dê a cédula de votação ou entre na lista dos banidos. Vai, pegue esse dinheiro e me dê a cédula. Ah, velhos tempos, quando uma delegação de jurados do Strega ia até algum escritor (bom) para pedir-lhe que se retirasse do prêmio porque a filha de algum outro escritor (bom) precisava se casar, e então o dinheiro do prêmio ia para ela! Hoje, a indústria do livro tende a transformá-lo em um produto como outro qualquer, para puro consumo, logo não há necessidade de bons escritores. E isso responde perfeitamente à exigência da nova burguesia, que parece completamente dona da situação, das obras de entretenimento, de escape e de falsa inteligência.

Repito: não quero me tornar cúmplice desse estado das coisas de jeito nenhum. E assim como odeio a cumplicidade, odeio também o compromisso. Eu poderia continuar formalmente fingindo ser um concorrente democrático e, de acordo com Maria Bellonci, apoiando pela última vez, fosse com uma vitória ou com uma derrota apertada, o Prêmio Strega assim como ele é: isto é, um campo de operações do consumismo mais brutal. Na verdade, a senhora Bellonci me prometeu que para o próximo ano o prêmio seria reformado, garantindo um nível melhor das obras apresentadas etc.

Não. Não quero fazer parte de tal acordo. Acredito que somente um protesto completo, rigoroso e sem compromissos possa ser útil para que o prêmio, se precisar ser reformulado, seja reformulado por completo, recolocando-o integralmente em discussão. Estou convencido de que só assim poderá existir um “outro” Prêmio Strega, que garanta de fato os interesses culturais “contra” os interesses industriais. Se querem chegar a isso por meio de acordos, compromissos, silêncios, então quer dizer que a boa vontade não existe de verdade.

Para terminar, gostaria de dizer que sei que a essa altura alguém poderia perguntar por que estou sozinho, ou com poucos amigos – outros concorrentes ao prêmio, por exemplo –, a travar essa batalha, e se por acaso não existe um “sindicato dos escritores” que intervenha, com força e autoridade (em dose dupla: sindical e literária), para defender seus filiados da verdadeira “escravidão” à qual estão começando a serem reduzidos pela indústria cultural. Pois bem, essa é uma pergunta que faço a mim mesmo sem saber respondê-la, mas à qual se deve, agora ou depois, dar uma resposta.

[1] Publicado originalmente no jornal Il Giorno, em 24 de junho de 1968. Integra a coletânea Saggi sulla politica e sulla società, na coleção I Meridiani (Milão: Arnaldo Mondadori Editore, 1999), pp. 151-155. Os direções autorais do texto pertencem portanto à editora Mondadori e por isso a presente publicação da minha tradução deve ser utilizada apenas com a finalidade de leitura e estudo.

[2] Velina era uma espécie de nota emitida pelo governo fascista italiano (1922-1943) com o intuito de manipular e regular o que e como as notícias circulariam na imprensa da época. Foram proibidas em 1943, mas foram usadas até 1945.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Hoje o dia amanheceu chuvoso em muitas cidades, e aqui em Roma também. Andando pelas ruas, reparei em quantas pessoas carregavam seus guarda-chuvas. Não pude evitar o pensamento: nenhuma delas estava com medo de levar um tiro e morrer por causa do que carregavam. Esse post é em memória de Rodrigo Serrano, brutalmente assassinado no dia 17 de setembro de 2018 pela polícia militar do Rio de Janeiro.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Quem escolhe ser pesquisador em nosso país (e no mundo todo) acaba se acostumando com o questionamento recorrente sobre a utilidade prática do que faz, do seu trabalho. Nas ciências humanas, esse questionamento é talvez ainda mais frequente porque nossas pesquisas não produzem, na maioria das vezes, resultados imediatos, pragmáticos, mensuráveis pelos parâmetros da sociedade de consumo. Estudar as diversas perspectivas da representação literária ao longo dos anos na literatura brasileira não parece ter o mesmo prestígio que compreender a reprodução de uma bactéria a fim de criar um novo remédio, por exemplo. E por que será que isso acontece? Arrisco um palpite: porque, nessa sociedade, pesquisas que não geram patentes, sobretudo porque não geram lucros, não despertam muito interesse.

Sempre que posso, faço questão de começar meus textos por aí, porque acredito que precisamos lembrar – e relembrar quantas vezes pudermos – que estamos vivendo em uma época em que a formação e a reflexão de tipo humanística correm o risco de cair em desuso. Atualmente, a ideia de trabalho e produção de conhecimento está ligada a valores capitalizados, tecnocráticos, pouco ideológicos ou apolíticos, e, nesse espaço, a maturação de reflexões humanas não tem tempo suficiente para acontecer. Tudo precisa ser rápido e funcional. Já deu para perceber que a conversa é tensa, né? Mas todo esse preâmbulo é para pensarmos juntos como a ideia de produção científica se encaixa nesse contexto – e como fazer ciência, em todas as áreas, principalmente dentro de uma universidade pública, só pode ser entendido como um gesto político.

Nos estudos literários (e talvez posso afirmar que no âmbito das pesquisas sobre linguagem em geral), existe um esforço em se pensar os poderes que estão em disputa. Nosso trabalho muitas vezes se volta à desnaturalização de ideias consolidadas e de pensamentos enraizados em nossa cultura. Nesse sentido, fica difícil imaginar como uma pesquisa desse tipo pode ser considerada apolítica: estamos constantemente exercitando nossa reflexão crítica ao olhar para o mundo e estudar suas diversas manifestações ao longo do tempo.

É por esse caminho que muitos estudiosos pensam na capacidade transformadora que a própria literatura exerce. Escrever seria um gesto de colocar no papel aquilo que precisa ser revisto em nosso mundo e, a partir daí, gerar no leitor um pensamento com potencial para se tornar atitude. Estamos então em um terreno em que a literatura pode ser vista como um espaço público de politização e também de disputa de histórias. Por meio dos livros, seria possível contar uma história que sistematicamente determinadas esferas de poder quiseram (e querem) calar, assim como poderia despertar nos leitores uma reflexão. Ou seja: quanto mais a gente lê, mais a gente se depara com versões diferentes para uma mesma história e dificilmente sairemos dessas leituras da mesma forma que entramos.

Jean Paul Sartre, importante filósofo e escritor francês do século XX, publicou em 1948 o livro Que é a literatura? (Editora Ática, 2004, tradução Carlos Felipe Moisés), no qual discute, após o final da Segunda Guerra Mundial, o que, por que e para quem escrever literatura. Depois das atrocidades cometidas pelos governos fascistas e nazistas nos anos anteriores, Sartre e tantos outros intelectuais voltaram seus pensamentos em direção às ainda possíveis perspectivas de existência humana – e como o ato de pensar e escrever sobre essa existência ainda poderia ter alguma função.

Foto por Daniel Frank.

Sartre defende a ideia de que “através da literatura (…) a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar” (2004, p. 217). Sua posição parece estar entre dois caminhos já bastante trilhados quando se pensa no fazer literário: a ideia de que a literatura vai salvar a humanidade, despertando-lhe a consciência necessária para isso, mas também a ideia de que essa consciência é infeliz, desequilibrada, mediada, o que significa que não necessariamente ela atingirá seu potencial de conscientização nos indivíduos.

Muito complicado? É mais ou menos pensar que ler não é sinônimo de caráter – há muitos exemplos por aí de gente que já leu muito, mas continua tendo comportamentos questionáveis. E também que nem toda literatura é questionadora e progressista, afinal é também no âmbito literário que versões opressoras da história se consolidam. O ponto principal é que, repito, parece que estamos diante do potencial de reflexão e de crítica que pode emanar da literatura. A ideia de que, com esse esforço de leitura, a coletividade pode tomar conhecimento de si mesma, reconhecer onde estão suas falhas e, a partir daí, buscar modificá-las e aperfeiçoá-las. Em outras palavras, escrever e pensar a literatura como pequenos movimentos de transformação.

O lugar que ocupamos como pesquisadoras e pesquisadores, me parece, passa também por essas mesmas questões. A ideia de produzir ciência, ou seja, de produzir conhecimento, em um país com tantas desigualdades (sociais, econômicas, culturais) como o nosso não deve estar isenta de sua potencialidade de reflexão e de transformação social. Porque são ausências políticas em momentos conturbados como os que estamos vivendo ultimamente que podem criar monstruosidades históricas com as quais certamente não queremos conviver.

E assim chegamos ao Brasil do ano de 2018, onde ainda é preciso debater machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos enraizados na nossa história. Esse debate, que perpassa todas as esferas públicas de produção de conhecimento (e por isso também todas as universidades, programas de pós-graduação e institutos de pesquisa), não pode ser diminuído ou silenciado, pois estamos disputando a história que se fará daqui por diante. A reflexão humanística, que deveria ser uma guia aos estudos literários e também às demais ciências, reafirma sua importância nesse processo como aquela que não nos deixa esquecer os momentos em que a humanidade se viu ameaçada por seu próprio desenvolvimento e capacidades destrutivas. Posicionar-se politicamente em todas as esferas que nos cabem é então reconhecer a função pública que cada indivíduo carrega em si e estimular a reflexão crítica em todas as frentes imagináveis. Resistir em todos os espaços que ocupamos: esse é o compromisso científico e político do qual não podemos nos isentar.

 

Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Não foi a primeira vez que a Cláudia, idealizadora/editora/cuidadora desse blog, tão bonito, e entusiasta da divulgação científica dos estudos literários, me convidou para escrever aqui. Devo começar dizendo que, a partir de certo momento da minha vida acadêmica, passei a me sentir cada vez mais formatada para um tipo único e padronizado de escrita e, com medo e me sentindo insegura, neguei tentar qualquer outra estrutura. É nesse contexto que me desafio para essa tarefa – ainda que entenda as minhas limitações diante dela. Por outro lado, o convite da Cláudia me pareceu dessa vez irrecusável: contar a minha participação em um evento acadêmico sobre literatura, a III Jornada de Crítica Literária: Literatura e Ditaduras, ocorrido na Universidade de Brasília (UnB) nos dias 4 e 5 de junho de 2018.

Não teria como falar desse evento sem olhar rapidamente para o presente brasileiro, em que as ressonâncias e as consequências do recente passado autoritário parecem cada vez mais fortes. Nas décadas de 1960 e 1970, a América Latina foi tomada por diversos regimes militares. As estruturações e as formas de atuação foram diferentes em cada país, bem como as respectivas transições para a democracia. No caso do Brasil[1], que viveu sob uma ditadura militar de 1964 a 1985, pouco se discutiu e se acolheu das reivindicações de memória e de justiça desde a redemocratização. Nunca levaram os torturadores à Justiça, por exemplo. Não se desmilitarizou a polícia. As famílias não foram efetivamente reparadas pelos mortos, torturados e desaparecidos até hoje. Não se debateu ampla e publicamente o que aconteceu nos 21 anos de ditadura – mesmo quando tínhamos uma presidenta que era ex-guerrilheira ou mesmo depois da abertura de uma Comissão Nacional da Verdade[2] para averiguar o que havia acontecido naquele período.

Já hoje, o sentimento geral é de angústia e de paralisia diante da política. Há dois anos, a primeira presidenta mulher eleita do Brasil sofreu um impeachment. Durante este processo, vimos um pré-candidato à presidência homenagear, em televisão aberta, um reconhecido torturador da ditadura militar brasileira. Desde então, nos sentimos atacados por todos os lados e vemos nossos direitos mais básicos serem ameaçados. Foi aprovada uma PEC que congelou os gastos públicos (inclusive de saúde e educação, por exemplo) por vinte anos e sofremos ataques complicadíssimos à cultura, aos direitos trabalhistas e das mulheres, de LGBTs, e de negros e negras. Há alguns meses, na cidade do Rio de Janeiro, foi decretada uma nova intervenção militar e foi nesta mesma cidade que a quinta vereadora mais votada do município, Marielle Franco, defensora dos direitos humanos, foi brutalmente assassinada, junto de seu motorista, Anderson Gomes. Por fim, recentemente, durante uma das maiores greves dos últimos anos, vimos pedidos explícitos e irresponsáveis de “intervenção militar”, que começaram a pipocar pelo Brasil todo.

Foto por Lua Gill.

E o que tudo isso tem a ver com o evento que assisti em Brasília? Ou como se relaciona com esse blog? A jornada da UnB teve como objetivo principal debater exatamente como a literatura tem pensado e refletido sobre as ditaduras, especialmente as da América Latina e, principalmente, a do Brasil. E por que “voltamos” a debater isso, décadas depois da redemocratização desses países? Por tudo que tem acontecido atualmente, mas também porque, ao contrário do que alguns querem nos fazer acreditar, a literatura e a crítica literária não são isentas, imparciais, mas podem e devem nos fazer tomar partido, nos posicionar.

Para não dizer que não falamos das flores, a ascensão do conservadorismo, antes e agora, não veio sem resistência, inclusive no campo da crítica literária atual, sobre a qual quero discutir aqui. Desde que comecei a pesquisar sobre as relações entre literatura e ditadura, em 2013, o tema vem crescendo, se expandindo, ainda mais nos últimos dois anos (o que, evidentemente, não se dá por acaso): autores e críticos literários têm se debruçado sobre esse assunto na medida em que tentam também entender e atuar no presente. As produções e as críticas artísticas têm debatido o apagamento histórico, apontando para a necessidade de uma política de memória e dando voz àqueles que não tiveram o seu testemunho ouvido.

O evento em Brasília foi um exemplo grandioso dessa atenção. O local escolhido para a realização da jornada, isto é, a UnB, por si só já diz bastante. Nessa universidade, professores e alunos resistiram amplamente durante o regime militar. Tão perto da Esplanada dos Ministérios e do Palácio do Planalto, hoje ela se abre novamente para novas formas de resistência da crítica literária, especialmente graças ao Grupo de Estudos em Literatura Contemporânea Brasileira – referência nessa temática para o Brasil inteiro –, da UnB, por meio dos professores Regina Dalcastagnè, Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz. Não por acaso, o primeiro curso sobre o Golpe de 2016 foi proposto e houve tentativa de censura na mesma universidade. Por tudo isso, foi, para mim, um privilégio ter a oportunidade de estar com pesquisadores, escritores e professores extremamente reconhecidos e competentes em seus trabalhos, ver e ouvir pessoas que li, dar rosto a quem saía apenas das palavras impressas, além de ter a possibilidade de realizar uma troca efetiva sobre o meu tema de pesquisa (o que não é tão comum para a maioria das pesquisas de estudos literários feitas em nosso país).

O próprio evento, na sua organização, se estruturou de forma extremamente democrática, destacando-se de outros eventos dos quais já participei. Estiveram lado a lado, nas falas, nas mesas e na organização, pesquisadores e professores da área, estudantes de graduação e de pós-graduação e autores de romance e poesia, muitos deles testemunhas vivas do tempo da ditadura. Outra coisa que me chamou a atenção foi a presença massiva, nas mesas, de mulheres, as quais totalizaram mais de 70%, o que também não costuma ser comum em eventos desse tipo.

É muito recorrente ouvirmos pessoas justificarem a ditadura brasileira dizendo que a perseguição atingiu apenas um grupo de pessoas: uma certa classe média, branca, intelectual, do sudeste do Brasil, “comunista e terrorista”, como se isso o justificasse. Se, por um lado, o número de mortos da CNV mantém esse dado, tal definição é bastante redutora e problemática. Devemos lembrar, como mostraram as falas no evento, que o regime militar afetou o Brasil como um todo e principalmente grupos minoritários, subjugados politicamente (há um cálculo de algo como 8 mil indígenas mortos durante a ditadura e mil camponeses, para além do número de 434 mortos, apresentado e mantido pela CNV). Durante as falas, pude ouvir outras perspectivas e testemunhos desse tempo, a exemplo de Sonia Bischain, uma das fundadoras do Sarau da Brasa, a qual relatou o contexto de produção literária e resistência na periferia paulista durante o regime; a pesquisadora e poeta negra Lívia Nathalia, que apresentou a produção negra contemporânea e denunciou o genocídio da juventude negra de ontem e de hoje; a escritora indígena Eliane Potiguara, que demonstrou o histórico de escravização e perseguição das diversas etnias indígenas e o esforço pela manutenção da cultura e da língua; a apresentação do livro “O fuzil e as flechas”, no qual o jornalista Rubens Valente recupera mais um capítulo apagado da história da ditadura civil-militar brasileira e analisa mais de 80 entrevistas de indígenas, sertanistas, indigenistas e antropólogos; ou ainda a apresentação da pós-graduanda Leocádia Chaves, sobre o testemunho do período ditatorial de uma transexual, Ruddy Pinho.

Além dessas novas e extremamente ricas perspectivas para o debate contemporâneo de recuperação da memória, guardarei com carinho três outras falas: Maria Pilla, autora de Volto semana que vem (2015); Maria José Silveira, autora de O fantasma de Luis Buñuel (2004) e A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002); e Pedro Tierra, autor de Poemas do povo da noite (1979). Todos eles são escritores e ex-guerrilheiros. Os seus testemunhos sobre as perseguições, a clandestinidade e as torturas que sofreram, e o processo posterior de elaboração e de testemunho, através da literatura, foram emocionantes e serviram de inspiração, principalmente para mim (e imagino que para grande parte do público presente) que não teve que lutar para ter seus direitos mais básicos garantidos.

Programação do evento Literatura e Ditaduras.

Depois dessa experiência, convido os leitores a acompanharem as produções que virão desses pesquisadores e autores citados, inclusive por meio das falas desse evento, que devem ser publicadas em breve. Hoje, mais do que nunca, precisamos reforçar a defesa da Universidade pública, do investimento à pesquisa (também de crítica literária), da autonomia universitária e da liberdade de expressão. Os atos de debater com nossos amigos, colegas, irmos a eventos, fazermos as nossas pesquisas são essenciais nesse contexto. Hoje, nosso trabalho também se dá como uma forma de resistirmos. Isso não é pouco. Não é hora de omissões. Como no passado, as futuras gerações dependem disso e do nosso compromisso com a memória e com a justiça.

Da minha parte, fica o agradecimento à UnB e aos professores organizadores, pela acolhida, pela atenção ao tema e pela organização de um evento tão importante para o debate atual, político e literário. Senti, ao fim dos dois dias, um sopro de esperança diante das angústias sentidas. Resistimos juntos. Assim como Maria José Silveira apontou, a resistência partia, e ainda parte, de uma profunda crença de que o afeto, a solidariedade e a felicidade, enfim, devem ser coletivos e de todos.

Deixo por fim uma breve lista de romances que tematizam a questão e que, entre outros, valem a pena serem lidos:

Em câmara lenta (1979), de Renato Tapajós

Memórias do esquecimento (1999), de Flávio Tavares

Não falei (2004), de Beatriz Bracher

Soledad no Recife (2009), de Uraniano Mota

Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa

Nem tudo é silêncio (2010), de Sônia Bischain

K. – relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski

Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla

Antes do passado (2015), de Liniane Haag Brum

Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva

A resistência (2015), de Julián Fuks

Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende

[1] Um breve histórico sobre a ditadura civil-militar brasileira: iniciou-se em 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas por parte da sociedade civil, perpetraram o golpe contra o governo eleito do presidente João Goulart. O Regime Militar chegou ao seu ápice em 1968, quando entrou em vigência o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, que intensificou o poder dado aos governantes para punir arbitrariamente toda e qualquer pessoa que fosse considerada “inimiga do regime”. Nesse momento, o estado de exceção passou a controlar efetivamente não só as instituições, como também as pessoas, em seus cotidianos privados e em suas relações sociais e públicas. O número de mortos, desaparecidos e torturados é enorme.

[2] A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 2012 pela então presidenta Dilma Rousseff e teve como objetivo investigar os graves desrespeitos dos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988. Em 2014, a Comissão entregou seu relatório final depois de entrevistar agentes envolvidos, organizar audiências públicas e pesquisar, em diferentes contextos e lugares, as perseguições do período militar. Entre as conclusões, está o fato de que as detenções ilegais e arbitrárias, como tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, foram uma prática generalizada e de política estatal, caracterizando-se como crimes contra a humanidade.

Vai ter Racionais na universidade sim! Entrevista com Alan Osmo

Quem tem acompanhado a imprensa e as redes sociais nas últimas semanas certamente viu uma novidade que movimentou as discussões na área dos estudos literários: o álbum Sobrevivendo no inferno (1997), do grupo de rap Racionais MC’s, passou a fazer parte do vestibular da Unicamp. A inclusão desse álbum na lista de leituras obrigatórias mexe com muitos pressupostos, teóricos e sociais, e traz tanto para as escolas, quanto para as universidades, questões que são importantíssimas de serem debatidas.

É interessante pensar que o rap também vem sendo estudado na academia e, para falar sobre isso, convidei Alan Osmo para uma entrevista. Ele gentilmente aceitou o convite e se dispôs a partilhar conosco aqui no blog seu ponto de vista sobre o assunto. Alan é graduado em Psicologia e em Letras pela USP e é mestre em Psicologia, também pela USP. Atualmente, faz doutorado no programa de Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, com a pesquisa “A literatura tomada de assalto: testemunho e resistência em produções periféricas de São Paulo”, sob orientação do Prof. Márcio Seligmann-Silva.

Marca Páginas: A Comvest, comissão que organiza o vestibular da Unicamp, anunciou recentemente a inclusão do álbum Sobrevivendo no inferno na lista de leituras obrigatórias do vestibular 2020. Essa atitude abre precedentes para uma série de mudanças, como a ruptura de certas barreiras sociais que isolariam o rap nas periferias, o qual passa a ser acolhido em ambientes escolares e acadêmicos historicamente ocupados pelas classes média e alta. Que tipo de impacto você acredita que uma ação como essa pode ter na nossa sociedade?

Alan Osmo: Acho importante destacar que o rap, assim como o funk, é bastante ouvido em diversas classes sociais, não ficando, portanto, restrito apenas às periferias. No caso especificamente do Racionais MC’s, é bastante curioso que, mesmo entre os “playboys” (que são tematizados em diversas canções), há também muitos fãs do grupo. Acredito que o rap e o Racionais não estejam isolados na periferia, pois já possuem uma grande circulação social. Mas é claro que, pelo fato de se tratar de produções que vêm das periferias e, mais importante, de vozes que afirmam uma identidade negra e periférica, elas são vistas por parcela da sociedade, principalmente das elites, com uma série de preconceitos. Nesse sentido, cabe destacar que os ambientes escolares e acadêmicos no Brasil historicamente foram bastante fechados a produções de cultura popular, principalmente àquelas de matrizes afro-brasileira e indígena. Ao levarmos em conta que o Brasil era até poucas décadas atrás um país predominantemente analfabeto, aquilo que era considerado literatura nos ambientes escolares e acadêmicos, com raras exceções, se restringia ao que era produzido por pessoas que tinham certa circulação dentro de uma elite branca das grandes cidades, que tinham contato com o que estava sendo produzido na Europa no campo das artes e da literatura. Desse modo, a visão da literatura também passou de alguma forma a ser marcada e valorizada pelos padrões que eram definidos na Europa. Enquanto isso, no Brasil, toda uma tradição riquíssima de cultura popular, que se manifestava sobretudo na música e na dança, era desvalorizada como não sendo um objeto digno de ser estudado nas escolas e universidades. Acredito que essa escolha do disco do Racionais é uma iniciativa (ainda tímida, é verdade) no sentido de tornar aquilo que é estudado nas escolas e universidades um pouco mais representativo da diversidade brasileira e da complexidade de nossa realidade social.

Mano Brown, compositor e cantor do Racionais MC’s. Fonte: Instagram.

Marca Páginas: Ainda sobre a decisão da Comvest, vimos que muita gente questionou a credibilidade dessa inclusão, seja pela temática, que desagrada um público mais conservador, seja pela forma, já que música pode não ser vista como literatura de acordo com certa crítica tradicional. Na sua opinião, a presença desse álbum na lista de leituras obrigatórias abala as discussões dentro da academia? De que maneira o rap tem sido recebido e pesquisado nas universidades brasileiras?

Alan Osmo: É importante não deixarmos de ter um ponto de vista crítico em relação ao vestibular – à forma como ele determina aquilo que é estudado nas escolas, e ao fato de ele funcionar como um filtro social de quem vai estudar nas universidades públicas. Nesse sentido, a inclusão de uma obra que traz uma voz que representa uma parcela da população que não costuma ser abarcada sob aquilo que se legitima como “literatura” é ainda uma mudança tímida. É importante considerarmos também o novo contexto das universidades públicas, com as cotas sociais e raciais. Os alunos das universidades públicas agora representam um pouco mais a diversidade da população brasileira. Além disso, uma parcela de jovens que historicamente se viu privada de cursar o ensino superior passou a estudar em locais que antes eram quase que restritos a pessoas brancas de classe média e alta. Com uma mudança do perfil dos alunos das universidades públicas, acho compreensível o questionamento daquilo que é estudado e pesquisado nessas universidades. No caso de um curso de Letras ou Estudos Literários: por que se estudam tão poucos autores africanos, autores negros, autores indígenas? Na minha opinião, as críticas que são feitas sobre a inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular, seja usando o argumento da temática das canções, seja usando o argumento de que se trata de música e não de literatura, partem de um ponto de vista conservador. Ora, a temática do disco do Racionais é sobretudo a violência da sociedade brasileira na década de 1990, o cotidiano vivido na periferia de uma grande cidade no Brasil, as terríveis desigualdades que geram verdadeiros abismos entre parcelas da população, o racismo e a violência policial voltados principalmente a jovens negros da periferia. Se essa temática choca, é porque nossa realidade social é chocante. Querer ignorar esses temas, estudando apenas autores que abordam outros assuntos, é também querer ignorar algo que marca profundamente a realidade social em que vivemos. E é importante destacar que a obra do Racionais aborda esses temas partindo do ponto de vista do negro morador da periferia, um ponto de vista que costuma ser bastante ignorado e silenciado por aquilo que tradicionalmente se considera “literatura”. Também considero conservador o ponto de vista que vê uma divisão nítida entre música e literatura, de modo que uma canção não possa ser vista como uma poesia. Se pegarmos a distinção de gêneros estabelecida na Grécia Antiga entre a poesia lírica, épica e dramática, a poesia lírica era aquela que era cantada e acompanhada de instrumentos musicais (o nome lírica vem do fato de ela ser acompanhada pela lira). Mesmo se pegarmos do ponto de vista de uma história da literatura mais tradicional, diversos poemas foram inicialmente feitos para ser musicados, ou então foram musicados em um período posterior. Pelo fato de um poema ser acompanhado de música, ele deixa de ser literatura? No Brasil, há toda uma tradição de canção popular que é riquíssima do ponto de vista poético e acredito ser uma grande perda para a área dos estudos literários ignorá-la. No caso do rap, é interessante destacar também que as letras que compõem o nome rap são frequentemente associadas a rhythm and poetry – ritmo e poesia. É característico desse gênero o destaque para aquilo que é falado, de modo a se enfatizar a parte poética da canção. Além disso, o rap já vem sendo objeto de diversas pesquisas acadêmicas no Brasil (principalmente em mestrados e doutorados) em distintas áreas do conhecimento: ciências sociais, geografia, educação, canção brasileira, estudos literários, linguística aplicada… Ainda assim, é bastante frequente uma certa resistência para se estudar o rap na área de estudos literários. Dificilmente é um assunto que vai ser abordado num curso de literatura brasileira, por exemplo. Torçamos para que essa inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular da Unicamp contribua para mudar um pouco isso.

Marca Páginas: “Capítulo 4 Versículo 3” escancara a realidade das periferias da cidade de São Paulo: “60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais / Já sofreram violência policial”. Depois de mais de 20 anos do lançamento do álbum, de que maneira você acha possível falar sobre esse assunto? Em sua pesquisa de doutorado, como você aborda a questão da representação dessa realidade?

Alan Osmo: A forma como esses e os outros dados são apresentados no início da canção “Capítulo 4 Versículo 3” é muito interessante. São dados reais, objetivos, que poderiam estar sendo apresentados em um jornal ou na televisão. Além disso, são dados escandalosos que escancaram a violência e o racismo que caracterizam nossa sociedade. Mas o curioso é que esses dados não têm repercussão, ou não repercutem da forma como deveriam, isto é, na grande mídia e na elaboração de políticas públicas pelo governo. O racismo continua sendo negado por parcela da sociedade que acredita no mito da “democracia racial” e a violência segue sendo vista de forma simplista, como se fosse um problema de bandidos versus mocinhos. É impressionante também que esses dados apresentados na canção desse disco de 1998 seguem extremamente atuais, mesmo 20 anos depois: essas estatísticas mudaram muito pouco, ou inclusive pioraram. Seguimos com uma taxa elevadíssima de homicídios, principalmente de jovens negros. Seguimos com abordagens policiais violentas nas periferias, tendo como alvo sobretudo jovens negros, de modo que ao ouvirmos isso na canção, hoje, somos lembrados de que essa realidade pouco mudou. É como se o Racionais, na canção, jogasse na cara como nossa sociedade é hipócrita e segue ignorando esse problema, ou ao menos segue não sendo efetiva para mudar essa realidade de injustiça. Nesse sentido, cabe destacar que a canção do Racionais se insere em um contexto de luta política, sendo a música também vista como um instrumento de transformação social. Por meio do rap, são denunciadas injustiças e são reivindicadas mudanças. Por isso eu me interessei pelo Racionais, para pensar a violência no Brasil no período que se inicia na democratização pós-ditadura militar e segue até hoje. As décadas de 1980 e 1990, sobretudo, podem ser caracterizadas por um contexto de crescimento das desigualdades sociais; crescimento desordenado das grandes cidades, com condições de moradia precárias, falta de saneamento e uma quase ausência de serviços públicos; a consolidação de um mercado ilegal altamente lucrativo das drogas; e uma política sem sentido por parte do Estado de guerra às drogas. Nesse contexto, houve um grande crescimento dos índices de homicídio. É possível pensar também que, apesar de a ditadura militar oficialmente ter acabado em 1985, o aparato repressor continuou muito forte e presente, agindo sobretudo na população negra e periférica. Acredito que o Racionais, em suas canções, fala de forma eloquente sobre esse contexto. O primeiro disco do grupo, lançado em 1990, chama-se Holocausto urbano. Ou seja, logo de início eles se propuseram a falar sobre um verdadeiro extermínio que atinge parcela da população nas grandes cidades. É importante destacar que essa violência atinge de forma extremamente desigual a sociedade. Na cidade de São Paulo da década de 1990, por exemplo, enquanto havia bairros com índices de homicídio comparáveis aos dos países da Escandinávia, ou seja, baixíssimos, em outros bairros os índices eram comparáveis às regiões mais violentas do mundo. Acredito que as canções do Racionais testemunham sobre essa realidade de violência, fazendo isso a partir de um ponto de vista do jovem negro da periferia.

Marca Páginas: Por último, podemos dizer que a lista de leituras para vestibulares é uma grande influenciadora do que os jovens brasileiros leem. Em geral, o movimento é que uma obra seja cobrada pelos vestibulares e que, a partir disso, passe a integrar os materiais didáticos e a terem sua leitura cobrada em sala de aula. No caso do álbum do Racionais MC’s, porém, é possível que presenciemos, pela primeira vez, o caminho inverso; isto é, muitos jovens possivelmente já escutam e gostam da obra, independentemente da obrigatoriedade escolar. De que maneira você acredita que esse movimento inverso pode desempenhar um papel diferencial na formação desses jovens? Se pensarmos na representatividade que o rap carrega consigo, você acha que os jovens podem sentir sua realidade contemplada pelos conteúdos escolares e, consequentemente, pelo próprio vestibular?

Capa do álbum Sobrevivendo no Inferno

Alan Osmo: Eu concordo bastante com sua colocação. É muito frequente que a “literatura” ensinada nas escolas seja vista pelos jovens como algo distante e descolado de sua realidade. Desse modo, pode ser difícil se interessar por algo que diga pouco a respeito da realidade em que você vive, que fale de personagens com os quais você não se identifica, enfim, que fale de um contexto que se distancie muito, seja temporalmente, seja espacialmente daquele em que você se insere. Como consequência, a “literatura” pode acabar sendo vista como uma coisa chata e difícil. Pelo fato de muitos jovens já conhecerem e se interessarem pelo Racionais MC’s, é possível que seja um assunto mais fácil de ser abordado em sala de aula. Além disso, esses jovens podem se surpreender com o fato de que aquilo que é falado nas canções que eles gostam também pode ser considerado “literatura” e que, portanto, a “literatura” pode ser interessante e dizer respeito a algo próximo da realidade em que vivem. Além disso, há, nas canções, o ponto de vista do negro morador da periferia que dificilmente aparece em obras que se costumam estudar nas salas de aula. Isso pode propiciar que os jovens se identifiquem com os personagens de que falam as canções.

Marca Páginas: Antes de terminar, você gostaria de acrescentar mais alguma informação?

Alan Osmo: Eu gostaria apenas de destacar a importância da canção “Diário de um detento”, presente no disco Sobrevivendo no inferno, ainda mais em nosso contexto de hoje. De 1998 para cá, a população carcerária no Brasil aumentou de forma significativa, de modo que hoje o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. A canção “Diário de um detento” tem muita importância por falar da realidade de um presídio a partir do ponto de vista de um detento. Além disso, a canção é uma das mais importantes produções feitas sobre o Massacre do Carandiru, de 1992, em que pelo menos 111 presos foram brutalmente assassinados pela polícia militar. Já se passaram mais de 25 anos desse fato, mas ele segue sendo uma ferida aberta em nossa sociedade. No início de 2017, vimos novos massacres em diversos presídios no Brasil, em que pelo menos 133 pessoas foram mortas em 15 dias. Recentemente, no final de 2016, o julgamento que havia condenado os policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru foi anulado. Depois dessa decisão, o caso vai voltar para o tribunal do júri, para ser julgado novamente desde o início. Caso crimes como o do Massacre do Carandiru não sejam julgados, tendo seus fatos esclarecidos e punindo os responsáveis, podemos sempre recear que crimes parecidos voltem a acontecer. A pergunta feita no final da canção do Racionais – “Mas quem vai acreditar no meu depoimento?” – continua em aberto, lembrando que os sobreviventes e familiares das vítimas do Massacre do Carandiru ainda não tiveram o devido reconhecimento e reparação pelo crime que ocorreu.

África em debate no IEL/Unicamp: ressignificando perspectivas e caminhos literários, por Natasha Magno

As manifestações culturais dos países do continente africano ganharam espaço e importância nos estudos literários ao longo das últimas décadas. Reconhecer esse movimento é lidar com uma série de questões históricas que precisam ser encaradas de frente no mundo todo e, principalmente, no Brasil. No texto de hoje, a pesquisadora Natasha Magno conta como sua trajetória acadêmica acompanhou suas lutas pessoais, que envolvem entre outras coisas o reconhecimento das literaturas africanas como um campo de estudos. Natasha é bacharel em Estudos Literários pela Unicamp e, ainda pela mesma universidade, finaliza a licenciatura em Letras. Sob uma perspectiva pós-colonial, sua pesquisa de mestrado investiga o livro O último voo do flamingo, do escritor moçambicano Mia Couto. Em 2010, fundou ainda o GELCA (Grupo de Estudos de Cultura e Literaturas Africanas), no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, dando um passo muito importante para os estudos literários no Brasil.

África em debate no IEL/Unicamp: ressignificando perspectivas e caminhos literários

Natasha Magno

Quando pensei de alguma forma poder contribuir para o blog Marca Páginas e poder compartilhar minhas reflexões ao lado de talentosas pesquisadoras, o primeiro sentimento que me tomou foi o desconforto de não saber sobre o que falar num espaço como este. E essa lacuna não se sustenta através de uma ignorância pessoal e sim de uma dificuldade de se desenhar uma reflexão sem pensar no que me trouxe até aqui. E é exatamente esse segundo desconforto que me guiará a expor o motivo pelo qual proponho refletirmos juntos sobre a África em debate no IEL/Unicamp.

Impossível falar sobre a minha relação com as Literaturas Africanas e a ressignificação sobre as suas literaturas nos últimos 10 anos sem antes conseguir mencionar a minha trajetória pessoal e o motivo pelo qual eu continuo persistindo no ensino e na pesquisa que envolvem os estudos africanos. Em 2010, prestei Estudos Literários na Unicamp, pois tinha lido um romance africano chamado O ultimo voo do flamingo, do escritor Mia Couto, e aquele livro mudou a maneira como eu poderia ver o mundo e a literatura.

Capa de O último voo do flamingo

Lembro-me de pela primeira vez ter percebido que a literatura poderia transformar a sociedade em que vivemos, e foi porque eu li um romance sobre diálogos entre um mundo nunca antes conhecido e o meu que eu decidi fazer esse curso. Mas o meu entusiasmo se transformou logo em decepção, ao perceber que nenhum professor do departamento de Teoria e História Literária estudava qualquer autor africano. E o mais triste foi perceber que não só nenhum professor pesquisava diretamente sobre esse assunto, mas que muitos não se interessavam sobre qualquer produção que viesse do continente africano.

Em seguida, o meu desconforto se transformou em luta e ao longo desses 7 anos montei o GELCA (Grupo de Estudos de Culturas e Literaturas Africanas) e não abandonei a minha ambição acadêmica de pesquisar sobre a literatura africana, e foi através de outros ambientes universitários, como a USP e a Universidade do Porto, que pude buscar material suficiente para fortalecer a justificativa de começar a estudar as literaturas africanas dentro do IEL. Em 2016, após uma luta estudantil árdua, conseguimos reivindicar a contratação de um docente na área de teoria literária, que foi destinada às literaturas africanas. Isso só foi possível, pois tivemos docentes aliados que nos ajudaram muito no processo e alunos obstinados a mudarem os rumos dessa história. Tais diálogos e parcerias se fortaleceram ao longo desse tempo e, após todas essas lutas, debates, ocupações e trocas, pude constatar que a ausência de pesquisa sobre a África, principalmente dentro de um ambiente universitário, é uma postura política e que reflete muito o modo como a representamos e a vemos.

O Brasil, em decorrência do processo de escravização de africanos, iniciado no período colonial, tem hoje uma das maiores populações negras do mundo. Os elementos africanos estão presentes não só na genética de grande parte da população brasileira, mas também em expressões sociais, culturais e religiosas, que, ainda hoje, continuam à margem do universo acadêmico e, por consequência, são vítimas de preconceitos. Com o objetivo de reverter esse quadro de marginalização das expressões africanas e afro-brasileiras, o governo brasileiro aprovou, no dia 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639, que alterou o currículo oficial dos Ensinos Fundamental e Médio e tornou obrigatório o ensino da história da África e da história e cultura afro-brasileira. Apesar da iniciativa do governo, nos deparamos com um cenário em que as escolas ainda não estão aptas a colocarem essa lei em prática, pois muitos docentes não tiveram contato com os estudos africanos em sua formação universitária.

Nos últimos anos, e até hoje, existem poucas disciplinas que preparam os alunos de licenciatura de fato para trabalharem os conteúdos exigidos pela lei em questão. Como trabalhar um autor africano no ensino básico? Como pensar uma perspectiva ameríndia dentro de sala de aula? Tais questionamentos ainda parecem sem resposta não só na Unicamp, mas em muitas universidades do país.  Percebe-se que, no decorrer dos anos, somente alternativas paliativas foram criadas, como o oferecimento de disciplinas que dialoguem com as literaturas e culturas africanas, mas nunca algo que atribuísse uma unicidade e identidade ao conteúdo didático.

Pensar e estudar África enquanto fonte de conhecimento histórico, social e literário há menos de um século seria impensável. Hoje é mandatório. A proposta da minha reflexão encontra-se justamente em explicitar as motivações políticas e acadêmicas que contribuem para que cada vez mais pesquisadores dediquem-se ao grande campo de estudo das literaturas e culturas africanas e afro-brasileiras – pensando numa perspectiva educacional, de ensino. A descoberta do continente africano enquanto campo de produção de conhecimento é um feito recente na história mundial; as primeiras universidades a adotarem a África enquanto disciplina acadêmica o fizeram principalmente após a Segunda Guerra Mundial – não por acaso, quando o continente começou a se emancipar de sua última colonização, realizada no século XIX.

Curiosamente, o Brasil não seguiu o fluxo das universidades estadunidenses, europeias e africanas; enquanto a África atingia sua maioridade nos meios intelectuais e universitários externos, as pesquisas brasileiras centravam-se sobre a escravidão e seus descendentes em território nacional e seu papel na fundação do brasileiro, esquecendo-se da matriz, a África. Se, após 1500, não conseguimos estudar o Brasil sem dialogar com a Europa, é incabível que após quatro séculos de escravidão negra-africana consigamos ser indiferentes aos acontecimentos africanos: a história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a nos explicar. Mas é importante também por seu valor próprio e porque nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica ou só campo para a própria teoria literária. Ainda que disto não tenhamos consciência, o imperador Ngungunhane está mais próximo de nós do que os antigos reis da França. Não é à toa: dentre as características comuns aos didáticos quanto à inserção dos conteúdos sobre a África está a aparente maior preocupação em cumprir as exigências legais do que uma verdadeira reflexão sobre a importância da inclusão desses temas. Os motivos dessa impressão aparecem, pois os capítulos ou as seções relativas a esse conteúdo surgem muitas vezes nos livros didáticos sem alterarem a lógica dos demais processos nele desenvolvidos. No limite, é possível supor que diante de um cronograma puxado o docente poderia fazer a opção de pular os capítulos destinados à África sem sofrer grandes prejuízos na compreensão dos professores dos demais processos tratados. A mesma opção não poderia ser feita diante de diversos outros temas, pois são narrados de forma a estarem intrinsecamente relacionados a uma série de processos transcontinentais.

Diante de tal cenário, sob um ponto de vista político e educacional, estudar e pensar África na universidade é urgente. Contudo, a questão não se encerra aí. Estudar África, território marginal, é também propor novos meios de construção do conhecimento, é acreditar que há formas diversas de manifestação intelectual e cultural e na inexistência de uma hierarquia entre elas. Assim, temos configurada uma segunda razão para estudar-se África no Brasil, tão iminente quanto a primeira: precisamos dos Estudos Africanos e Pós-coloniais para nos descolonizarmos.

  • Para acompanhar o GELCA no Facebook: @gelcaiel
  • Blog destinado a divulgar a III Jornada de Teoria Literária e Estudos Africanos, organizada pelo GELCA e pelo Departamento de Teoria Literária/IEL, que acontecerá nos dias 25, 26 e 27 de abril: https://jornadagelca.wordpress.com

As mulheres dos estudos literários: Lígia Balista

Para dar continuidade à série de posts sobre as mulheres dos estudos literários, essa semana divulgamos o trabalho de Lígia Balista. Formada em Letras pela Unicamp em 2007, Lígia começou sua carreira acadêmica ainda durante a graduação, com uma pesquisa de Iniciação Científica sobre crônicas. Na sequência, já no mestrado na Unicamp, se dedicou a pesquisar a metáfora da caminhada nos livros Autos da Alma, de Gil Vicente, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Essa pesquisa foi feita sob orientação da Professora Jeanne Marie Gagnebin, mais uma mulher incrível que merece ser lembrada aqui por seus trabalhos envolvendo literatura e filosofia.

Após se dedicar por alguns anos à experiência de trabalhar em escolas e em uma universidade federal, Lígia voltou ao doutorado, dessa vez na USP, para estudar a representação do caipira na obra de Carlos Alberto Soffredini. Hoje, prestes a defender sua tese, comemora um ano da publicação da coleção Soffredini: obras principais (2017), organizada por ela em parceria com Renata Soffredini. A publicação das quatro peças teatrais que integram a coleção (“Vem buscar-me que ainda sou teu”, “Na carrêra do divino”, “Pássaro do poente” e “De onde vem o verão”) é um importante passo para a dramaturgia brasileira, pois coloca em circulação obras inéditas que fazem parte da história do teatro nacional.

Motivada pela admiração que tenho por seu trabalho e também pelo lançamento da coleção, convidei a pesquisadora para uma entrevista. Foi ótimo aprender mais sobre o processo editorial que envolve a publicação de uma coleção inédita e conhecer uma nova pesquisa sobre literatura brasileira. Agradeço a Lígia pela disponibilidade e pelo carinho com que trocou mensagens comigo. Como sempre, reafirmo o quanto me sinto honrada por estar ao lado dessas mulheres tão competentes que compõem os estudos literários no Brasil.

Marca Páginas: Lígia, quando estamos com um livro pronto e finalizado nas mãos, às vezes nos esquecemos de como existe um trabalho extenso e cansativo por trás daquele objeto, que depende de várias etapas, como pesquisa, seleção e estabelecimento dos textos definitivos, além da dedicação a textos introdutórios, prefácios, posfácios etc. Como foi o processo de organização das obras principais de Carlos Alberto Soffredini? Quanto tempo vocês ficaram envolvidas com esse trabalho? E o que você considerou mais difícil e mais prazeroso nesse processo?

Lígia Balista e Renata Soffredini no lançamento da coleção em Santos

Lígia Balista: De fato, o processo é sempre muito interessante também, e em geral muito longo e cheio de etapas variadas. A organização dessa coleção começou, pra mim, anos antes: em 2014 (começo do meu doutorado), quando conheci pessoalmente a herdeira do Soffredini – a atriz e diretora Renata Soffredini, em um evento na Unicamp. Para ela, a ideia da coleção já vinha de antes ainda! Já tinha havido uma tentativa de publicação da obra como coleção, mas até então o projeto não havia seguido adiante.  No ano de 2015 fizemos vários movimentos nessa tentativa de publicação. Entrei em contato com diversas editoras, cheguei a fazer reuniões presencias para mostrar o material e discutir possibilidades. Alguns retornos eram bem animados, mas nenhum seguiu muito adiante. Publicar teatro é uma luta! Em meados de 2015 a Renata ficou sabendo do edital da Proac/SP para publicação de inéditos. Já tínhamos algum acúmulo entre nós sobre quais seriam as peças principais e como gostaríamos de estruturar a coleção. Foi a hora de sistematizar tudo e enviar a proposta! Montamos o projeto e tentamos! Quando foi aprovado, além da enorme alegria, começou um período de bastante trabalho: definição dos convidados para escrita de prefácios e posfácios; seleção de fotos para compor os livros (acompanhar cada peça) e a parte biográfica; decisões sobre como montar a cronologia (minibiografia) sobre o autor; decisões sobre o estabelecimento de texto; ideias para as capas etc… Foi muito gostoso ver que todos os professores convidados para escrever prefácios e posfácios aceitaram com alegria participar do projeto! Outra etapa importante foi convidar a editora Giostri para fazer a parceria na publicação. O trabalho deles foi fundamental para alguns processos, como a criação das capas, por exemplo, e a própria impressão do livro. Mas também foram momentos de muitas idas e vindas. A produção de um livro é um trabalho coletivo, né? E várias mudanças e pequenos ajustes foram necessários nessa etapa. Tínhamos a pressão do prazo com a prestação de contas do edital. Foi um período de muitas reuniões (presenciais ou às vezes por telefone mesmo) e era um processo constante de importantes decisões! Sobre o estabelecimento de texto, eu participei mais diretamente e pessoalmente do trabalho com a peça “Na carrêra do divino” – o que foi muito rico para o desenvolvimento do meu processo de pesquisadora sobre essa peça. Ganhei uma familiaridade enorme com o texto, após tantas leituras, tantas pesquisas para revisão. No final do ano passado tive a alegria de poder dividir um pouco mais sobre esse processo (e sobre o que ele representou para minha pesquisa, inclusive) em um artigo que saiu pela revista da ECA/USP. A peça mais recente, “De onde vem o verão” de 1990, já foi escrita pelo autor com uso do computador, o que facilitou um pouco o processo do trabalho com o texto. Sobre sua última pergunta: acho que o mais difícil é ver algumas coisas não saírem como planejamos… Tentamos ter o maior cuidado possível com o material todo que estava sendo elaborado, mas… nem tudo depende só de nós, né! Faz parte de um processo grande e longo como esse. E talvez o mais gostoso pra mim, além do enorme aprendizado que tive sobre o processo completo de organização e produção de um livro (de uma coleção!), foi a aproximação intensa com a obra e o acervo de materiais do autor. Como pesquisadora, foi riquíssimo poder mergulhar nesses textos todos e em alguns materiais pessoais de Soffredini. E, como professora e leitora, acho que o mais legal é ver a obra circulando! Realmente podendo chegar aos leitores agora… Tive, nesse sentido, alguns retornos de leitura muito interessantes e emocionantes! Daqueles que nos faz ver que já valeu a pena!

Capas dos 4 volumes que compõem a coleção Soffredini: obras principais (2017)

Marca Páginas: Seu doutorado na USP é sobre a representação do caipira na obra de Soffredini. Você acredita que sua pesquisa contribuiu para a organização desses livros? De que maneira esses dois trabalhos se relacionam e se afetam entre si?

Lígia Balista: Acredito que sim. Desde antes de entrar no doutorado, em meus primeiros contatos com a Renata Soffredini para conseguir os textos para ler e decidir o recorte a pesquisar, essa ideia se apresentou. Era um desejo antigo dela conseguir pensar uma publicação das obras do pai, então ela quis saber mais de que universidade eu era e qual era exatamente o projeto – pensando inclusive nessa possível aproximação com as editoras universitárias. Pra mim, a ideia – que era também só um sonho no início (seria ótimo, mas eu não fazia ideia da viabilidade ou não de uma publicação como essa) – foi se tornando cada vez mais uma construção real e parte de minha pesquisa. Para estudar o dramaturgo não publicado eu precisava acessar os textos; a cada texto acessado, a vontade de publicá-los só aumentava. Para criar um círculo maior de debate em torno da obra do autor era importantíssimo que ele passasse a circular como livro. Acho que senti isso mais ainda por estar nos estudos literários. Quando meus encontros eram com os estudiosos de artes cênicas, em geral eles conheciam o trabalho do Soffredini. Já nas letras, era mais raro. Poder contar com as peças em livro agora talvez mude esse cenário um pouquinho… Em uma das disciplinas de pós sobre teatro brasileiro que fiz na universidade, por exemplo, um professor chegou a comentar comigo que teria incluído uma das peças de Soffredini no programa, mas não tinha o texto para ler e disponibilizar aos alunos. Aquilo me marcou muito (sobre as barreiras que as materialidades do texto impõem, mas também no outro sentido: sobre as possibilidades reais e a importância de investir na publicação). Hoje sinto, com muito orgulho, que foi também uma conquista importante da minha dedicação à pesquisa que possibilitou conseguir tocar esse processo de publicação dos livros da coleção. Sempre com o enorme empenho e abertura da herdeira do dramaturgo, é claro. Sem a confiança da Renata nada disso seria possível.

Lígia Balista com os manuscritos das peças teatrais de Soffredini

Marca Páginas: Parece ser comum, entre pós-graduandos e pesquisadores, uma certa angústia relacionada às poucas oportunidades de diálogo existentes entre a pesquisa acadêmica e a comunidade que está fora das universidades. Você sente ou concorda com essa angústia? Quais são, em sua opinião, possibilidades válidas para atenuar essa distância?

Lígia Balista: Em geral concordo sim. Já senti isso muitas vezes. Acho que especialmente em nossa área, os objetos de estudos podem parecer muito distantes dos problemas reais e atuais do mundo, da vida das pessoas. Mas fui aprendendo que isso é mais uma barreira que um certo imaginário de mundo nos coloca… Porque, afinal, se pesquisamos/estudamos cultura, isso sem dúvidas está relacionado ao modo de viver das pessoas. E também nesse sentido a publicação dos livros inéditos é muito bacana! A dramaturgia do Soffredini vira acessível! Parece que nosso objeto de estudo passa a ser, digamos, mais real! Parte do planejamento de divulgação da coleção Soffredini: obras principais era realizar duas palestras em escolas, após a publicação dos livros. A Renata fez uma e eu outra. E o retorno dos alunos de Ensino Médio foi maravilhoso!

Marca Páginas: E sobre ser mulher na nossa área de pesquisa… você acha que fazer parte dos estudos literários no Brasil, hoje, passa também por questões relacionadas a gênero?

Lígia Balista: Acho que o fato de seguirmos carreira acadêmica nos aproxima de um lugar de nossa profissão em que, em geral, predomina a presença de homens. É muito significativo olhar o número de mulheres que entram na graduação para estudar literatura e a porcentagem de professoras mulheres que seguem na vida acadêmica. Fui representante discente durante um período na pós aqui na USP. E alguns casos de dificuldades em seguir a pós que chegavam até mim passavam sim pelo machismo – não só presente na universidade, mas na sociedade em geral, né… A licença maternidade, por exemplo: é uma coisa só reconhecida pelo mundo da pós graduação há pouquíssimo tempo! Vale, por exemplo, conhecer o trabalho de divulgação que as pesquisadoras do Gepô têm feito, nos últimos dias: #generoemação. Na vida acadêmica, especificamente, algumas atitudes vão sendo associadas a uma maneira de estar no mundo mais “masculinizada”, digamos. E é muito curioso (difícil!) lidar com isso no dia a dia… Mas seguimos!

Sugestões de leitura:

  • O artigo que Lígia menciona na entrevista, “PESQUISANDO SOFFREDINI: um mergulho por seu acervo e na história da publicação de um autor “quase” popular”, está disponível aqui: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/138376
  • Para conhcer o Gepô (Grupo de Estudos de Gênero e Política DCP USP): https://www.facebook.com/gepo.dcp.usp/
  • Indicação da coleção de peças teatrais de Carlos Alberto Soffredini (1939-2001): Soffredini: obras principais. “Vem buscar-me que ainda sou teu”, “Na carrêra do divino”, “Pássaro do poente” e “De onde vem o verão”. Organização Renata Soffredini e Lígia Balista; São Paulo: Giostri, 2017.

As mulheres dos estudos literários: Regina Dalcastagnè

Esse post é dedicado à memória de Marielle Franco: socióloga, pesquisadora, vereadora, feminista, militante dos direitos humanos, mulher, negra, lésbica, favelada, e brutalmente assassinada pelo Estado brasileiro em 14 de março de 2018.

Nesse mês de março, historicamente dedicado às lutas das mulheres, gostaria de divulgar, numa série de posts aqui no blog Marca Páginas, os trabalhos de algumas das mulheres que nos dias de hoje se dedicam aos estudos literários no Brasil. Nesse campo de pesquisa tomado por vozes masculinas (como tantos outros), vale a pena lembrar que esse espaço é ocupado também por mulheres incríveis, professoras-pesquisadoras que são referências pela qualidade de seus estudos. São apenas alguns nomes dentre tantos que poderiam ser citados, mas espero que cada uma de nós – professoras, pesquisadoras, estudantes – se sinta contemplada e reconheça a importância de compor esse círculo de mulheres competentes. Como sempre repito: a cada vez que nos percebemos menos sozinhas em nossas lutas, nos tornamos mais fortes.

Regina Dalcastagnè 

Fonte: Facebook.com

Falar sobre os estudos de literatura brasileira contemporânea atualmente passa, sem dúvida, por reconhecer a importâncias das pesquisas que Regina Dalcastagnè vem desenvolvendo nos últimos anos. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Regina se dedicou especificamente à literatura a partir do mestrado e do doutorado: no primeiro, com a dissertação “O espaço da dor: o regime de 64 na produção romanesca brasileira”, defendida na Universidade de Brasília em 1993 e publicada em livro em 1996 com o título O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro; no segundo, com a tese “Uma obra em movimento: leitura(s) de Avalovara, de Osman Lins”, defendida em 1997 na Universidade Estadual de Campinas, sob orientação de Vilma Âreas, outra grande mulher dos estudos literários brasileiros e professora aposentada do Instituto de Estudos da Linguagem aqui na Unicamp.

Atualmente, Dalcastagnè é professora titular livre de literatura brasileira na UnB e pesquisadora de produtividade CNPq. Além disso, coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC) e faz parte do corpo editorial de várias revistas importantes da área. Suas principais linhas de pesquisa estão relacionadas aos estudos de representação na literatura contemporânea e da narrativa contemporânea brasileira, passando pela representação de grupos marginalizados, ocupação dos espaços urbanos e crítica literária em periódicos. Vale citar alguns de seus projetos de pesquisa mais recentes: “Fora do retrato, no meio da história: a Brasília contada pelas periferias”, “A superfície das coisas: objetos e memória na literatura brasileira contemporânea” e “Narrativas da cidade: Brasília e a experiência urbana na literatura brasileira contemporânea”. Regina publicou e organizou ainda vários livros e artigos com os resultados de suas pesquisas, dentre os quais destaco Literatura e exclusão, de 2017, Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea e Representación y resistencia en la literatura brasileña contemporánea, ambos de 2015. A extensa lista de suas publicações e atuações profissionais pode ser consultada em <http://lattes.cnpq.br/2599879538822377>.

Como já dito, uma das pesquisas mais importantes desenvolvidas por Dalcastagnè nas últimas décadas diz respeito aos modelos sociais representados na literatura brasileira contemporânea, além do perfil desses escritores. Você sabia, por exemplo, que quase 73% dos romances brasileiros publicados de 1990 a 2005 foram escritos por homens, em sua maioria brancos e de classe média? E que 62% das personagens criadas nesse mesmo período são também homens? Esses números ficam mais assustadores se pensarmos que, entre os 258 romances estudados nessa pesquisa, apenas 3 protagonistas eram mulheres negras. A seguir, reproduzo o infográfico [http://arquivo.pontoeletronico.me/2013/02/18/eu-quero-escrever-um-livro-sobre-literatura-brasileira/] de Niege Borges, publicado no site Ponto Eletrônico, que organiza os dados impressionantes recolhidos pelo GELBC durante a pesquisa “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”:

Esses números chocam, o que reforça mais uma vez a relevância que esse tipo de pesquisa tem. Regina Dalcastagnè, acompanhada por seu grupo de pesquisa, realiza esse importante trabalho, e por isso deve ser lembrada como uma mulher dos estudos literários.

Para mais informações sobre as pesquisas desenvolvidas por Regina Dalcastagnè, seguem alguns links:

Conhecendo uma pesquisa acadêmica em estudos literários, por Nina Borges Amaral

Que tal conhecer alguns dos passos possíveis para a realização de uma pesquisa acadêmica na área dos estudos literários? Nina Borges Amaral, bacharel e mestranda pela Unicamp, nos conta um pouco de sua trajetória: como iniciou sua pesquisa durante a graduação, como chegou ao seu tema de mestrado e os recortes escolhidos para realizar essa pesquisa sobre o escritor  brasileiro Bernardo Élis.

Conhecendo uma pesquisa acadêmica em estudos literários: o exemplo de Bernardo Élis

Nina Borges Amaral

Minha pesquisa acadêmica sobre o escritor goiano Bernardo Élis começou em 2013, no meu último ano de graduação em Estudos Literários[1] pela Unicamp. No curso, dentre as variadas disciplinas que cada estudante tem que fazer para se formar, estão duas obrigatórias finais: as disciplinas chamadas Monografia I e II. Nelas, desenvolve-se uma pesquisa de final de curso, cujos resultados são apresentados para uma banca de professores avaliadores na forma de um trabalho de conclusão de curso.

Diferentemente de alguns dos meus colegas, que encontraram um assunto particular que lhes interessasse e começaram suas respectivas pesquisas durante a graduação[2], passei pelo curso gostando muito de diferentes assuntos (como tradução e poesia francesa, para citar apenas dois exemplos), mas acabei não me aprofundando em nenhum. Entretanto, já quase no fim do curso, tomei conhecimento da existência do acervo Bernardo Élis no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (o CEDAE), e foi esse material que despertou meu interesse e que proporcionou meu primeiro contato mais próximo tanto com essa literatura, quanto com a pesquisa na academia.

Naquele momento inicial, parte considerável do meu trabalho foi fazer um levantamento da fortuna crítica[3] sobre o escritor e, ao perceber que muitos críticos literários o classificavam como regionalista (como é também o caso de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, por exemplo), tentar entender quais seriam as implicações de tal afirmação. Na minha monografia, portanto, apresentei uma compilação e análise de textos de crítica sobre a literatura bernardiana, assim como um breve estudo sobre o conceito de regionalismo literário.

Depois de defendida a monografia e concluída a graduação, entrei no mestrado com um projeto de pesquisa ainda sobre Bernardo Élis, já que, muitas vezes, a pesquisa que desenvolvemos na graduação (seja em uma iniciação científica ou mesmo nas disciplinas de monografia ou TCC) acaba levantando novos questionamentos para além de nossos objetivos iniciais.

No mestrado, passei a estudar, de um lado, o papel da identidade regional goiana na literatura bernardiana e, de outro, a relação entre regionalismo e modernismo em sua obra, pois, para muitos críticos, Bernardo Élis é o principal expoente do modernismo em Goiás. Atualmente, estou na reta final da pesquisa de mestrado: a escrita da dissertação – que é o principal requisito para a obtenção do título de mestre. A dissertação nada mais é que um texto final, mais longo e aprofundado, que cada aluno de mestrado deve apresentar para uma banca avaliadora explicando seus procedimentos de pesquisa, discutindo questões importantes relacionadas a seu objeto de estudo e apontando conclusões para os problemas e questionamentos levantados.

E essa reta final é muito importante, pois, tanto na graduação quanto na pós-graduação, só então podemos verificar os resultados materializados de uma ocupação solitária como é a pesquisa acadêmica.

Sugestões de leitura:

Bernardo Élis. Ermos e Gerais. São Paulo: Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, 1944; 2. ed. Goiânia: Ed. Oió, 1959; reedição (org. Luiz Gonzaga Marchezan). São Paulo: Martins Fontes, 2005 (Coleção Contistas e Cronistas do Brasil).

Dossiê Bernardo Élis – Remate de Males: revista do Departamento de Teoria Literária. Disponível em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/issue/view/220

[1] Para conhecer mais sobre a graduação em Estudos Literários e sobre as disciplinas que formam seu currículo acadêmico, visite http://www.iel.unicamp.br/br/content/estudos-liter%C3%A1rios.

[2] Quando isso acontece, os alunos podem ser orientados de maneira mais ou menos formal, seja por meio da participação em grupos de estudo, de disciplinas voltadas para a pesquisa acadêmica ou do desenvolvimento da chamada Iniciação Científica (http://cnpq.br/iniciacao-cientifica).

[3] Fortuna crítica é o termo usado para se referir a um conjunto de textos feitos por críticos literários para analisar uma produção literária específica. Aqui, os textos que fazem parte da fortuna crítica bernardiana são, portanto, textos de diferentes autores que analisam sua obra.