A Indústria Química do Futuro

Fig. 1 - “Bioreator”, arte de K-Kom - DeviantART.

Fig. 1 – “Bioreator”, arte de K-Kom – DeviantART.

          “Um Químico é um mexedor de sopa, um operador fedorento.
           Um Zimologista é alguém que ajuda a manter bilhões de pessoas vivas. Eu sou um especialista em cultura de leveduras. (…)
           Este laboratório mantém a New York Yeast funcionando. Não há um dia, nenhuma maldita hora, que nós não tenhamos culturas de cada linhagem de levedura na empresa crescendo em nossas caldeiras. Nós checamos e ajustamos os fatores dos requisitos de comida. Nós garantimos que estão se reproduzindo bem. Nós ‘dobramos’ a genética, começamos as novas linhagens e as ‘limpamos’, descobrimos suas propriedades e moldamos elas novamente.(…)
            Vinte anos atrás a Saccharomyces olei Benedictae era só uma linhagem com gosto horrível de sebo e boa para nada. Ela ainda tem gosto de sebo, mas seu conteúdo de lipídios foi forçado de 15 para 87 por cento. Se você usou a Esteira Expressa hoje, apenas se lembre que ela é lubrificada estritamente com S. o. Benedictae, linhagem AG-7. Desenvolvida aqui mesmo nesta sala.”

Trecho de “As Cavernas de Aço” (1953), de Isaac Asimov – tradução livre.

ResearchBlogging.orgDia 2 de Janeiro é aniversário do “bom doutor” Isaac Asimov, que já nos anos 50 descrevia um planeta Terra apinhado de pessoas em enormes conjuntos de construções urbanas, as “Cavernas de Aço”, título do livro que faz parte de sua série de romances sobre robôs que o fez ser um ícone da ficção científica. Mas um fato pouco lembrado é sua visão de como seria a indústria química do futuro, que se reflete até os dias de hoje. Antes de escritor, Asimov era bioquímico e portanto não é à toa que no mesmo ano em que foi descoberta a estrutura do DNA, ele já conseguisse prever as possibilidades industriais da manipulação genética como no trecho acima de seu livro. Nele um “zimologista” defende a importância de seu trabalho em criar leveduras que possam produzir os mais variados tipos de químicos, num futuro onde o petróleo mundial já se esgotou e a única fonte de matéria-prima é biomassa vegetal.

Fábrica da BASF em 1886 em Ludwigshafen, onde é a sede da empresa até os dias de hoje. Pelo menos olhando de longe, não é muito diferente das fábricas de hoje em dia, não? - Fonte: WIkimedia

Fábrica da BASF em 1886 em Ludwigshafen, onde é a sede da empresa até os dias de hoje. Pelo menos olhando de longe, não é muito diferente das fábricas de hoje em dia, não? – Fonte: WIkimedia

            Essa “bioindústria do futuro” nunca foi tão real como hoje. E já estava na hora. O cerne da maior parte da indústria química mundial ainda é a mesma desde quando o Brasil ainda era um império, mais ou menos na mesma época em que o petróleo começa a ser usado como principal fonte para fabricar produtos químicos industriais. Naquele tempo era impensável que os pequenos seres humanos poderiam causar um impacto ambiental tão grande num mundo tão vasto. Mas está ficando cada vez mais claro para a população de 7,7 bilhões de pessoas que esse modelo de 200 anos precisa mudar, ou ainda vamos ter que aceitar conviver com catástrofes climáticas.

            Todo esse tempo de existência dá um privilégio enorme para esse sistema de produção permanecer desse jeito. Foi só com uma verdadeira revolução científica que a indústria de hoje ficou pronta para começar a mudar: a revolução da decodificação genética. Quando os cientistas terminaram de montar o quebra-cabeça que explicava como o DNA guardava instruções para as reações químicas que coisas vivas conseguem fazer, um universo de possibilidades se abriu. Tudo isso culminou nos anos 2000, com uma nova abordagem do que um dia foi conhecido como engenharia genética, a Biologia Sintética. Tratando células da mesma maneira como engenheiros elétricos tratam circuitos eletrônicos, os avanços da aplicação dessa nova disciplina foram muito mais rápidos do que a manufatura de químicos e hoje a bioindústria não apenas existe mas já prospera. A manufatura de químicos por rotas biológicas já está em estágio comercial (ver Figura 3) e a OCDE (o “clube dos países ricos”) estima que em 2030 produtos derivados dessa indústria corresponderão até 2,7% do PIB de seus países membros – para se ter uma ideia, é um valor próximo da riqueza média que toda a agricultura, pesca e extração de madeira geram nesses países hoje em dia.

Figura 3: Exemplos de casos de sucesso de manufatura de químicos por rotas biológicas. Retirado de “Industrialization of Biology”, National Research Council, 2015.

Figura 3: Exemplos de casos de sucesso de manufatura de químicos por rotas biológicas. Retirado de “Industrialization of Biology”, National Research Council, 2015. (Clique para ver melhor)

            Boa parte das pessoas está completamente alheia a essas mudanças, muito porque falta algum tempo até verificarmos as estimativas para 2030 e ainda estamos vivendo só começo da mudança de “mexedores de sopa” para “zimologistas” na indústria. Até agora a Biologia Sintética foi a disciplina que melhor atendeu as expectativas do que seria o futuro da bioindústria, mas ainda estamos longe de produzirmos tudo a partir de microrganismos. Hoje a fronteira com o futuro está na imprevisibilidade e complexibilidade dos sistemas biológicos. Apesar da analogia ser válida, “programar” microrganismos não é a mesma coisa que computadores: são tantas variáveis ainda mal compreendidas dentro de uma simples célula que as coisas simplesmente não funcionam como deveriam e muitas vezes os cientistas não sabem exatamente o porquê. Pensando em focar esforços, vários pesquisadores convocados pelo conselho nacional de pesquisa norte-americano montaram um plano para os próximos 10 anos com os desafios a serem superados para uma “manufatura avançada de químicos” a nível industrial (ver Figura 4). Dentre os principais desafios estão o barateamento dos processos de uso de matérias-primas renováveis, aumento da eficiência dos processos de ganho de escala de bioprodução, desenvolvimento de ferramentas mais ágeis de construção de sistemas genéticos e “domesticação” de microrganismos ainda não explorados para uso industrial.

Figura 4: Planejamento de desafios a serem superados nos próximos 10 anos para concretização do potencial industrial da biotecnologia. Fonte: “Industrialization of Biology”, National Research Council, 2015.

Figura 4: Planejamento de desafios a serem superados nos próximos 10 anos para concretização do potencial industrial da biotecnologia. Fonte: “Industrialization of Biology”, National Research Council, 2015. (Clique para ver melhor)

            Parte dos executores desse plano são novos de laboratórios de biotecnologia chamados de “biofoundries”. São basicamente laboratórios altamente automatizados (Figura 5), capazes de realizar uma quantidade sem precedentes de experimentos e fazer medições, quase 24 horas por dia, 7 dias por semana. A estratégia é usar a “força bruta” das máquinas para conseguir lidar com uma quantidade enorme de variáveis, o que seria impraticável em outras condições.

Figura 5: “Biofoundry” versus um Laboratório de Biotecnologia comum. As bancadas de trabalho da Biofoundry são tomadas por robôs que automatizam todos os processos com baixa intervenção humana, enquanto um laboratório comum apenas produz conforme o número de pessoas que é possível caber numa mesma bancada! - Fonte: Ginkgo Bioworks (imagem da esquerda) e Wikimedia (imagem da direita).

Figura 5: “Biofoundry” versus um Laboratório de Biotecnologia comum. As bancadas de trabalho da Biofoundry são tomadas por robôs que automatizam todos os processos com baixa intervenção humana, enquanto um laboratório comum apenas produz conforme o número de pessoas que é possível caber numa mesma bancada! – Fonte: Ginkgo Bioworks (imagem da esquerda) e Wikimedia (imagem da direita). (Clique para ver melhor)

            Em alguns lugares do mundo, como nos EUA, já se inicia um processo de estratificação de um ecossistema de empresas de biotecnologia e indústria: enquanto “biofoundries” fazem o “design” dos microrganismos (como a Ginkgo Bioworks, Genomatica e Zymergen), grandes empresas investem em bioprodução de commodities químicas (como Braskem, Dow, Basf) e moléculas de alto valor agregado, ao mesmo tempo que startups surgem barateando sequenciamento e síntese de DNA (como a Twist Biosciences) e viabilizando softwares necessários para toda a automação funcionar bem (como a Teselagen – que NÃO é uma empresa hipster reinventando a tecelagem, como pode parecer). Como a matéria prima desse tipo de indústria não é o petróleo, seria possível por exemplo existir um sistema de produção mais distribuído, como acontece hoje com as microcervejarias regionais: a manufatura acontece em muitas fábricas de pequena escala, usando fontes locais de material para servir de alimento para os microrganismos.

            Nesse futuro muito próximo, a riqueza da biodiversidade é o código de DNA. É como se todo organismo, seja ele microscópico ou gigantesco como um Jatobá, fosse uma máquina biotecnológica que a própria natureza produziu, com “programas” para fabricação de tudo o que o organismo é capaz de fazer. Bastaria então fazer o “download” desse programa, estudá-lo, e fazer “upload” dele em espécies de microrganismos industriais.

            O jeito que a indústria química fabrica produtos hoje em dia é baseado em “rotas de síntese”. Ou seja, para se chegar em uma molécula, é preciso planejar todas as reações químicas, que devem acontecer do jeito certo, para no final se ter em grande quantidade o produto que se deseja. E essas rotas não surgem “do nada”, são resultados de anos de pesquisa teórica e prática; uma criação verdadeiramente humana. A visão da “bioindústria” química do futuro aproveitaria as “rotas” programadas nos “softwares” da Natureza. Dentro desse imaginário, a riqueza da biodiversidade está em descobrir novas rotas “prontas” inclusive para moléculas químicas que já existem. Daí a importância da “domesticação” de novas espécies para uso industrial. Hoje por enquanto é possível se contar com os dedos de apenas uma mão a quantidade de espécies que são mais usadas para bioprodução industrial – e sim, a levedura S. cerevisiae sugerida por Asimov está entre elas. Quantas espécies de microrganismos ainda não conhecidos pela ciência podem existir em uma grama de solo amazônico, por exemplo? Enquanto engenheiros biológicos se esforçam para pressionar essas poucas espécies a produzir mais “bioproduto”, podem haver centenas de espécies que, se exploradas geneticamente, poderiam produzir muito mais e muito mais facilmente do que a melhor cepa que já se conseguiu construir.

            É claro que ainda existe toda uma indústria química para se “biotecnologizar”, mas já é um grande feito ter as principais commodities químicas sendo bioproduzidas e comercializadas de maneira competitiva com a indústria petroquímica. Isso mostra o peso dos imaginários sociotecnológicos que criamos: mesmo com grandes desafios a serem resolvidos, as consequências políticas e sociais dessas expectativas atraíram e atraem investimento suficiente para tornar real aquilo que a pouco tempo atrás era mera ficção científica. Esse imaginário de uma biotecnologia futurista já tem até organização política representativa no Brasil: a “frente parlamentar da bioeconomia”, que defende os interesses das bioindústrias emergentes, em articulação com o agronegócio.

            Asimov com certeza sabia que uma posição visionária precisa de expectativas familiares o suficiente para produzir um futuro reconhecível. A série “Black Mirror” (se você não conhece, fica a dica!) usa essa mesma receita. Se essas expectativas forem muito diferentes da experiência coletiva ninguém a levará a sério, e talvez seja por isso que as histórias de Asimov parecem envelhecer pouco com o passar das décadas: elas se baseiam em imaginários sociais sólidos que existem até hoje, e que são provavelmente tão importantes quanto as próprias tecnologias para dar forma ao futuro. 

           E aí, já imaginou? É assim que o futuro começa.

Referências

  • National Academies Press (2015).
    Industrialization of Biology: A Roadmap to Accelerate the Advanced Manufacturing of Chemicals
    Report of National Research Council of the National Academies Epub ISBN: 0-309-31655-3
  • ASIMOV, Isaac. The caves of steel. 1954. New York: Spectra, 1991.
  • HILGARTNER, Stephen; MILLER, Clark; HAGENDIJK, Rob (Ed.). Science and democracy: making knowledge and making power in the biosciences and beyond. Routledge, 2015.
  • https://www.camara.leg.br/noticias/560651-camara-lanca-frente-parlamentar-mista-da-bioeconomia/