Competições de Biotecnologia e os novos Rituais de um Fazer Ciência Marginal

Vários meses treinando. Às vezes anos. Tudo pra chegar nas Olimpíadas e ganhar um pedaço de metal que nem de longe paga o custo e esforço para chegar até ali naquele momento. A pessoa toda abandonada, sem dinheiro, sem apoio  – aquela que vira o alvo preferido doa jornalistas quando ganha alguma coisa – faz tudo isso só por causa dessas benditas medalhas. Pra que todo esse esforço, não é mesmo?

Rio 2016 - Judô

Mas vá lá e pergunte pro Diego Hypólito se ele pararia com isso. Ou se a Rafaela Silva desistiria do judô. Até mesmo quem só assiste tudo de longe consegue sentir o quão aquilo tudo é emocionante – a não ser que você tenha o coração de pedra, aí você não vai sentir nada mesmo. A questão é que essas pessoas e as competições que elas vivem são reflexos de coisas muito mais antigas que as próprias Olimpíadas: os rituais do caminho do herói; do caminho do indivíduo efêmero na Terra. Em um dos seus livros mais famosos (O Herói de Mil Faces), o mitólogo Joseph Campbell aponta como os rituais são importantes no caminho do “herói”. Essa figura é presente em vários contos, histórias e mitos de diversas culturas de diversas épocas e lugares do mundo, é no fundo uma tradução cultural de coisas inexoráveis na vida de todos: nascimento, morte, crescimento, separação, dúvida, medo, sexo… Os rituais seriam então muito importantes no desenvolvimento da percepção e verdadeira vivência das diferentes fases da vida. Nós precisamos de rituais para viver, somos o herói que precisa fazer suas passagens e travessias para salvar o mundo e a si mesmo. A ausência de rituais geraria portanto uma estagnação, um sentimento de que as coisas não acabaram quando deveriam – por isso, à grosso modo, velamos nossos mortos, mudamos de corte de cabelo, arrumamos a casa, mudamos de endereço. Segundo Campbell, na nossa sociedade contemporânea esses rituais tornam-se mais ausentes e a falta deles é o que contribui para o desenvolvimento de transtornos da mente. Então, de certo modo, vivenciamos esse rituais como podemos. As competições, sejam elas quais forem, são perfeitas para isso.

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Capa da primeira edição do “O Herói de Mil Faces”

O Fazer científico talvez seja um conjunto de rituais muito mais explícito que a maioria dos esportes. A situação pelo menos é a mesma: pouco dinheiro, pouco apoio, falta de compreensão, reconhecimento como objetivo principal de carreira… A carreira científica inclusive é uma competição (para muitos). Os ritos são aliás muito mais frequentes e explícitos; pense na expressão “iniciação científica”, nas roupas cerimoniais de formatura, nos chapéus engraçados, nas cabeças raspadas, “prova”, “defesa” de tese, na maneira como são dadas as palavras e proferidos os juramentos – finja que você não sabe o que é a academia e tudo vai parecer uma seita muito bizarra. E tudo isso fica inclusive marcado em todo processo científico, como por exemplo, a quem é permitido (ou esperado) fazer determinados tipos de questionamentos, a quem pertence a fala, as decisões – tudo passa por um ritual de validação que transforma o “herói” para capacitá-lo a “ser”. Pelas ideias de Campbell, a academia seria excelente para preencher o vazio de rituais de passagem no nosso mundo contemporâneo. Só que não. Não é isso que acontece. Essa seita bizarra está mais para uma… uma gangue de drogas, dizem alguns. A forma não está mais junta de significado, não há herói nem transformação modificadora de verdade nesses rituais. A não ser no aspecto menos formal (e um tanto negligenciado) da universidade: a extensão.

Desde 2012 o Clube de Biologia Sintética da USP é o projeto de extensão brasileiro que mais gerou equipes para a competição internacional de máquinas geneticamente modificadas, o iGEM. Assim como o Diego Hypólito ou a Rafaela Silva, um monte de pessoas vieram e vêm participar do Clube de Biologia Sintética e vivenciam, talvez da maneira mais intensa que se pode, a jornada ritualística do herói dentro do caminho da ciência que os empolgam: a biotecnologia. Essa terça-feira foi o último dia para documentar todo o trabalho feito pelos times brasileiros da USP de Lorena, USP de São Paulo e pela Federal do Amazonas em suas wikis, e é época perfeita para se olhar para trás e se perguntar o que tudo isso significa – já que semana que vem todos estão embarcando para os EUA. Depois de participar de três iGEMs e um BIOMOD posso dizer que o significado de fazer isso tudo é exatamente por TER significado, coisa que os antigos rituais acadêmicos já não fazem mais – novos e “verdadeiros” rituais são uma necessidade para seguir em frente. Pensar o próprio projeto coletivamente e interdisciplinarmente “do zero”, buscar apoio, financiamento e espaço; protagonismo, autonomia, trabalhar em equipe, organizar experimentos, resolver problemas experimentais inesperados, fazer a wiki, barganhar interesses, colaborar com outras equipes, viajar para Boston e ainda publicar os projetos em revistas científicas! Todas essas provações e rituais também refletem novas formas de se fazer ciência, questionando a quem pertence a capacidade de fazer perguntas, a quem deveria pertencer o poder de respondê-las e quais são as perguntas podem/deveriam ser feitas – não é à toa que o movimento “DIYbio” ou biohacking e iniciativas de ciência cidadã ganharam mais força em boa parte à partir de grupos ex-iGEMers (o Clube de Synbio é um exemplo vivo disso).

As minas do synbio extraindo uns DNAs, checando uns protocolos e conversando sobre technoporn no Garoa Hacker Clube.

As minas do synbio extraindo uns DNAs, checando uns protocolos e conversando sobre technoporn no Garoa Hacker Clube.

Mas a  ainda talvez demore alguns anos para a biotecnologia, que existe a décadas, deixar de ser encarada como coisa de ficção científica, não pertencida à pessoas. Enquanto isso o que está em disputa são diferentes formas de se fazer biotecnologia, cada uma com sua dialética própria e diferentes níveis de consciência política. Mas quem sabe um dia, quando uma bactéria fluorescente não for mais mágica do que um mini computador de bolso (vulgo celular), equipes do iGEM não precisem mais passar tão batidas depois de tanto ralar para se fazer projetos de biotecnologia “marginais” na academia – e que conseguir apoio para esses projetos não precise mais ser “parte do mérito”, como uma drama olímpico forçado do atleta que sofreu provações (vendendo miçangas, por exemplo) antes do pódio. Até lá, seguimos tumultuando tudo, passando batido e sendo uns mlks muito liso.