A Groenlândia está derretendo. Mas não como você imagina

Icebergs gigantes se desprendem da Corrente de Gelo de Upernavik, um dos glaciares estudados pelo grupo dinamarquês (Foto: Science)

Muita gente se acostumou a incluir o derretimento acelerado do manto de gelo da Groenlândia juntamente com a morte e os impostos na lista das grandes certezas da vida. Um estudo publicado na edição de hoje da revista Science sugere que é assim, mas não é bem assim. Na verdade, o degelo dá mostras de que está desacelerando neste momento.

Calma, leitor. Os climatologistas não piraram nem a indústria do petróleo está por trás disso. Mas um grupo de cientistas da Dinamarca e dos EUA concluiu, examinando três décadas de fotografias aéreas do noroeste da ilha, que a maior parte da perda de gelo da Groenlândia acontece em pulsos e “de baixo para cima”, por assim dizer: o degelo superficial, decorrente da resposta do manto às temperaturas do ar mais elevadas, é irrelevante. O que importa mesmo é o que acontece no ponto de contato entre o mar e as terminações das grandes geleiras da região.

O grupo liderado por Kurt Kjaer, da Universidade de Copenhague, analisou centenas de fotos, cruzadas com dados de altimetria a laser coletados nos últimos anos pela Nasa, para montar um mapa de elevação do noroeste da Groenlândia, mostrando como variou a espessura do gelo. Eles identificaram dois grandes episódios de perda: um entre 1985 e 1992 e outro, mais dramático, entre 2005 e 2010. Embora o derretimento superficial tenha crescido, ele ainda é literalmente uma gota d’água no oceano se comparado a esses “pulsos”. Portanto, é precipitado extrapolar uma tendência para calcular a contribuição da Groenlândia para a elevação total do nível do mar neste século.

“É um sinal periódico, o que significa que você tem uma perda de gelo imensa num período de 5 a 8 anos e um período estável, seguido por um outro evento de 5 a 8 anos. Não é um sinal linear e não tem uma tendência”, diz Shafaqat Abbas Khan, da Universidade Técnica da Dinamarca, co-autor do estudo.

Abbas é um jovem de origem paquistanesa que eu conheci no ano passado em Copenhague e que tem um emprego que me mata de inveja: todo verão ele é despejado de um helicóptero sobre geleiras em derretimento acelerado, faz uma série de medições com GPS em poucos minutos e pula de volta no helicóptero antes que o movimento do gelo o empurre no abismo. “Depois de um tempo você se acostuma, vira só mais um trabalho”, minimiza.

Sua especialidade é medir o chamado “repique isostático”, em tradução livre, o levantamento da crosta da Groenlândia em resposta ao alívio de peso causado pela perda de gelo. Parece incrível que essa “espreguiçada”da ilha possa ser medida, mas basta ter um bom GPS.

O que me impressiona em Abbas é que ele é um cético do clima. Cético no bom sentido da palavra: um cientista que questiona o tempo todo as suposições por trás do próprio trabalho. Como lida com observações e não com modelagem,o geofísico se recusa em fazer previsões sobre o colapso do manto e sobre o consequente aumento do nível do mar no mundo — apesar de se declarar chocado com o rebaixamento que observa ano após ano nas geleiras que visita. Ele diz que não é possível afirmar, como alguns colegas têm sugerido, que a Groenlândia já tenha ultrapassado o ponto de não retorno, algo que provavelmente aconteceu 125 mil anos atrás, quando estima-se que a ilha tenha derretido quase completamente. “Quando esse cara começar a derreter, aí sim eu vou ficar preocupado”, me disse uma vez, apontando num mapa um rio de gelo várias vezes mais largo que o Amazonas, conhecido apenas como Geleira 79, no nordeste groenlandês.

A descoberta do derretimento em pulsos (que o grupo de Abbas e Kjaer chama de “perda de gelo dinâmica”) não significa que o aquecimento global não tenha culpa no cartório — ao contrário, já que o principal suspeito de causar o fenômeno é o aumento periódico da temperatura do mar nos fiordes de Kalaallit Nunaat (como os groenlandeses chamam seu país). Vários cientistas já vinham chamand atenção para isso. Mas ela serve como um alerta para os pesquisadores da complexidade da natureza e da dificuldade de prever seu comportamento, e como baliza para os modeladores climáticos.

O grupo dinamarquês lança, ainda, um alerta: o degelo superficial teve participação quase zero no episódio de 1985-1992, mas causou 33% da perda nas margens das geleiras no de 2005-2010, o que sugere uma sensibilidade cada vez maior do manto à elevação da temperatura do ar. Tudo que Kalaallit Nunaat não precisa agora é de um golpe nos dois flancos.

Discussão - 5 comentários

  1. "Não é um sinal linear e não tem uma tendência"<=Pergunta: se não tem tendência, então entre os períodos de degelo acentuado a massa perdida é totalmente recuperada?

    []s,

    Roberto Takata

    • Claudio Angelo disse:

      Ué, o que tem uma coisa a ver com a outra? O balanço de massa é negativo, o que eles estão dizendo é que é complicado calcular quão negativo ele será daqui pro fim do século. Pode ser até pior do que hoje, mas não sabemos. Abs.

  2. Roberto Teixeira Luz disse:

    Existem outros estudos que indicam existir, sim, uma tendência de degelo. Vejam http://www.skepticalscience.com/is-greenland-close-to-a-climate-tipping-point.html .

    Quanto ao papel do GPS no monitoramento das mudanças globais, vejam:
    http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geodesia/rbmc/rbmc.shtm?c=7
    http://www.sirgas.org/index.php?id=149

    Além de "um bom GPS e poucos minutos", é necessária uma infraestrutura geodésica composta por estações GPS contínuas, i.e., coletando informações posicionais 24/7, homogeneamente distribuídas.

    Abraços

  3. Claudio,

    Se não tem tendência, a massa está oscilando, mas não se pode dizer que esteja diminuindo com o tempo (em um prazo mais longo).

    A temperatura atmosférica/superficial global média anual varia de ano para ano, tem vezes que até cai por algumas décadas, mas tem uma tendência de aumento.

    O pergunta é a que essa "tendência" de que eles estão falando se refere.

    []s,

    Roberto Takata

    • Claudio Angelo disse:

      sorry, passei o dia fora de brasília e sem computador ontem. ah, mas acabo de ver que você postou isso aqui hoje, disfarça. acho que nós dois estamos falando a mesma língua, takata. o que o abbas quis dizer é que os eventos de perda de gelo dinâmica não têm uma tendência; eles são possivelmente (embora com N=2 seja complicado sair dizendo essas coisas) periódicos, como o el niño. mas CERTAMENTE o BALANÇO DE MASSA da groenlândia, ou seja, a diferença entre acumulação e degelo, é negativo, e foi estimado pelo próprio abbas (num paper na Proceedings no ano passado com o john wahr, se não me engano) em uma estupidez, tipo 250 bilhões de toneladas/ano. eu não sei te dizer qual será a cifra depois que esta fase de perda dinâmica passar, no intervalo entre uma e outra, mas dificilmente haverá um sinal líquido de acúmulo de gelo, principalmente por causa do degelo superficial, que está cada vez mais importante. lembre-se também de que estamos olhando para o noroeste da ilha. nada nos autoriza a pensar que as geleiras do leste, que também têm sofrido rebaixamento rápido, mas estão sujeitas a outras influências oceânicas, se comportem do mesmo jeitinho.

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