Salvamos mesmo as baleias?

 

"Kujira", em breve num supermercado perto de você?

“Kujira”, em breve num supermercado perto de você?

 

A NOTÍCIA DO ANO na área ambiental veio ontem de Haia: a Corte Internacional de Justiça deu ganho de causa à Austrália numa ação movida em 2010 que visava proibir a caça “científica” de baleias que o Japão pratica anualmente nos mares antárticos. A decisão, publicada ontem no site da corte, determina a suspensão imediata das atividades baleeiras japonesas no Oceano Austral. É um documento de 22 páginas de juridiquês denso, que diz basicamente que os resultados da tal ciência letal são xexelentos demais para justificar a morte de centenas de baleias por ano. Um dos argumentos dos magistrados é matador. Poderia ser resumido assim: “Ô, seu Japão, se vocês estão só fazendo pesquisa, por que mesmo levam um navio-fábrica para picar e embalar as baleias no próprio local dos ‘estudos’ e deixá-las prontinhas para o comércio?” Perdeu, mermão. A demanda australiana foi considerada procedente por 12 votos a 4. O primeiro juiz a apresentar voto contrário foi um tal Hisashi Owada. Mera coincidência.

Como não são malucos de descumprir decisões judiciais, os japoneses baixaram a cabeça e disseram que vão parar o programa, que em 18 anos já matou 6.700 baleias minke, mais um monte de baleias-fin, jubartes e cachalotes num lugar que, tecnicamente, é um santuário para baleias.

Então é isso? Enfim salvamos as baleias? Podemos agora por favor discutir coisas mais importantes, como a guerra na Síria, a ocupação da Ucrânia e a CPI da Petrobras? Os australianos podem ser elevados à categoria de heróis do meio ambiente por sua coragem de processar os japas malvados e acabar com uma das violações mais hipócritas do direito internacional de que se tem notícia?

Não necessariamente. Primeiro, porque a Austrália não entrou na CIJ contra o Japão porque gosta de baleias, mas sim porque há grossos interesses nacionais envolvidos, como lembra meu amigo Reinaldo José Lopes numa boa análise hoje na Folha de S.Paulo. Um deles é a clamada soberania nacional australiana sobre parte do Oceano Austral. A Austrália acha (mas só ela) que aquele pedaço de mar é sua zona econômica exclusiva, embora todas as pretensões territoriais sobre a Antártida estejam congeladas (doh!) até 2048 por um tratado internacional. Também importante é a conservação de estoques de jubartes que mantêm o turismo de observação na Austrália e que usam o Oceano Austral todo ano como zona de alimentação. E o ganho de poder e prestígio da Comissão Internacional da Baleia (CIB), que se reúne em setembro na Eslovênia.

Depois, porque o fim da caça científica pode produzir o efeito oposto do que os países conservacionistas desejam: ela pode ser o gatilho que faltava para a retomada da caça comercial de baleias, suspensa por uma moratória decretada pela comissão em 1986.

A CIB é dividida entre países caçadores (Japão, Noruega, Islândia e quem mais eles conseguem cooptar) e conservacionistas (basicamente o resto do mundo, mas com forte liderança de EUA, Austrália e Nova Zelândia). Seu objetivo primário inicialmente nunca foi proteger baleias, mas evitar o cenário de “free for all” da caça comercial que levou esse grupo de cetáceos quase à extinção — o que iria contra os interesses dos próprios caçadores. A moratória foi criada para permitir aos estoques se recuperarem para uma eventual reabertura, em moldes “sustentáveis”. Para isso criou-se um instrumento legal chamado RMS, ou esquema de manejo revisado, que permite a caça, dentro de limites e com uma série de salvaguardas.

Hoje a caça comercial só é praticada abertamente pela Noruega e pela Islândia. Esses países se reservaram o direito de ignorar a moratória em suas águas territoriais. Indígenas do Ártico têm cotas anuais de caça na Rússia, no Alasca, no Canadá e na Groenlândia, por exemplo. A única caça praticada internacionalmente e em larga escala era justamente a japonesa na Antártida, sob a (agora é oficial) desculpinha barata de “pesquisa científica”.

Os conservacionistas sempre exigiram como precondição para a reabertura da caça a aprovação do RMS (a que o Japão sempre se opôs, porque não queria ser regulado nem monitorado) e a suspensão da caça científica japonesa. Em 2010, a CIB chegou a debater uma proposta de reabertura, com cotas menores para o Japão e a vedação de qualquer atividade baleeira nos santuários do Pacífico Sul, do Índico e do Oceano Austral. Com a decisão da corte de Haia, acaba o argumento. E o Japão certamente levará essa cartada às negociações em setembro. Para o Brasil, que tenta desde o começo da década passada emplacar um santuário no Altântico Sul, isso pode significar novo adiamento nos planos.

O fim forçado do programa “científico”, por contraditório que pareça, é uma boa notícia para o governo japonês, que vem subsidiando há anos uma política impopular, desgastante em termos de imagem e sujeita a chuvas e trovoadas (por “chuvas” leia-se Greenpeace e por “trovoadas” leia-se Sea Shepherd) que frequentemente impedem o cumprimento das cotas, aumentando o preju. Para o público interno, o governo nipônico pode pagar de vítima do “Ocidente preconceituoso”; para o externo, pode trucar exigindo o fim da moratória.

A saída para o impasse só virá com o tempo, quando os japoneses se derem conta de que comer baleia é uma tradição que fossilizou, um hábito que não faz mais sentido no século 21. É o que está acontecendo na Noruega, país onde o consumo de carne de baleia despencou entre os jovens. E é o que provavelmente já está acontecendo também na terra do Sol Nascente, onde os estoques de carne de baleia têm encalhado (com a vênia do trocadilho) ano após ano.

A indústria baleeira já perdeu uma vez para a tecnologia, com a invenção da lâmpada a petróleo. Perderá mais uma vez, para a ética. Está condenada ao rol das más ideias extintas do capitalismo, juntamente com a escravidão, o fumo em lugares públicos e as lâmpadas incandescentes. É bom que seja assim. A questão é quantas baleias ainda virarão sashimi enquanto isso não acontece.

Discussão - 2 comentários

  1. FabioLugar disse:

    Eu sempre me perguntei: visto que a "pesquisa" científica com baleias dos japoneses é tão grande, porque nunca vi nenhum tipo de pesquisa interessante em nenhum nível vindo de lá?

    Só com a quantidade de baleias abatidas e tecidos recolhidos, a possibilidade para estudos genéticos, ecologicos e populacionais seria assombrosa. Mas mesmo assim, nada.

    • Claudio Angelo disse:

      Bom, os japoneses sempre poderão argumentar que eles publicam em japonês &coisa &tal. Mas os juízes em Haia não engoliram essa.

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