A ignorância é suprapartidária

atocha

PETRALHAS E COXINHAS, afinal, compartilham algo além de citações no caderninho de Marcelo Odebrecht: os dois extremos dessa tosqueira que virou o debate político no Brasil professam uma brutal ignorância científica, disfarçada de oposição consciente e orgulhosa à “modinha” do momento, o ambientalismo.

As reações da advogada Janaína Paschoal e do jornalista Paulo Henrique Amorim à inclusão do alerta contra as mudanças climáticas na abertura da Olimpíada deixam isso claro. Quem lê ambas pode ficar deprimido ao lembrar que foi da cabeça de Paschoal que saíram os argumentos jurídicos usados para derrubar uma Presidente da República eleita — mas talvez um pouquinho aliviado ao lembrar na sequência que essa presidente rezava pelo mesmo catecismo obscurantista de Amorim.

Janaína, a “matadora de jararacas”, tuitou após a cerimônia codirigida por Fernando Meirelles que até que era legalzinha a ideia de botar os atletas para plantar árvores (ufa). Mas prosseguiu:

“Achei a parte do aquecimento global um pouco ‘over’. A teoria é bem polêmica” (grifo meu).

PHA, o neopetista-desde-criancinha, achincalhou Meirelles de alto a baixo em um post cheio de adjetivos e vazio de informação. Acusa o cineasta de “miliciano”, de propagar “pseudociência” de “direita” e “contrabandear” doutrinação “político-partidária” para a cerimônia de abertura com os objetivos, não necessariamente nesta ordem, de eleger Marina Silva, destruir o agronegócio e a geração de energia no Brasil e entregar o país para o Tio Sam.

O tuíte da uma e o surto do outro se enquadrariam fácil naquilo que o grande Paulo Vanzolini qualificou de “espetáculo tão frouxo, não merece comentário”. Mas não resisto a comentar, já que eles ilustram como os dois polos do espectro político abdicam voluntariamente do direito básico ao raciocínio ao papaguear, com sinais trocados, a mesma falácia sobre o aquecimento global: para a “direita” a mudança do clima é uma grande conspiração comunista/anticapitalista; para a “esquerda” (PHA é de esquerda?), uma grande conspiração imperialista. Como já expliquei alhures, não há como ambos os lados estarem certos aqui.

A advogada do impeachment faz um uso excessivamente liberal dos termos “teoria” e “polêmica” para se referir ao aquecimento da Terra. Senão vejamos. Segundo o Dicionário de Ciência de Oxford, uma teoria é

uma descrição da natureza que engloba muitas leis, mas que não adquiriu o status incontroverso de lei.

O fato de não serem livres de controvérsia não exime algumas teorias científicas de serem descrições bem boas da natureza. A teoria da relatividade de Einstein produziu a bomba atômica e reconfigurou o poder no planeta no século 20; a teoria da evolução de Darwin explica por que os antibióticos e as vacinas que mantiveram Janaína Paschoal viva até hoje puderam ter sua segurança e eficácia testadas em animais antes; e a teoria quântica de Planck, Bohr e Heisenberg abriu a porta para a revolução digital que permite que qualquer um saia pontificando sobre ciência por aí nas redes sociais.

Já o adjetivo “polêmica” vem com uma década ou duas de atraso, que parece ser o “delay” mental mínimo de alguns setores da “direita”.

Esqueçamos por um momento que há nove anos o aquecimento da Terra foi decretado “inequívoco” pelo consenso dos cientistas do clima. Esqueçamos também que a física básica da relação entre combustíveis fósseis e a elevação da temperatura global foi elucidada há exatos 120 anos. E esqueçamos que o sistema político internacional, que inclui 196 nações (com crenças e interesses tão distintos quanto Arábia Saudita e Dinamarca, Venezuela e Estados Unidos), concorda tanto com os cientistas que assinou no ano passado um tratado para reorganizar a economia do planeta de forma a minimizar a mudança do clima. Ignoremos tudo isso e fiquemos apenas com o que os anglo-saxões chamam de “quorum-sensing”: vamos perguntar aos especialistas.

Isso vem sendo feito desde 2004, quando a americana Naomi Oreskes não conseguiu encontrar, entre artigos científicos de climatologistas publicados entre 1993 e 2003, um único sequer que negasse a mudança climática antropogênica. Em 2013, o australiano John Cook refez a contagem em outros termos e chegou a um consenso de 97%. No fim de 2013, o americano James Powell publicou uma contagem de mais de 2000 artigos científicos sobre clima e chegou a outro número sobre a “polêmica”: 2.258 artigos aceitavam os humanos como causa do aquecimento global; um artigo rejeitava a tese. Para colocar em termos seguros, a rejeição do consenso científico sobre o aquecimento global varia de 0,04% a 3%.

A invectiva de Paulo Henrique Amorim contra Fernando Meirelles e o ambientalismo é mais extensa e, por isso, mais difícil de comentar sem aborrecer o leitor. Fiquemos apenas com seus oximoros. O principal deles é dizer que o que ele chama de “verdismo” é uma “importação política” americana e de “direita”. Dizer isso é ignorar, entre outros, um fato básico da vida chamado Donald Trump. Assim como outros expoentes do Partido Republicano (vou pedir licença a Amorim para qualificar essa patota como “de direita”), Trump também acredita que o ambientalismo é uma “importação política” (europeia?) destinada a minar o desenvolvimento dos Estados Unidos e a substituir empregos por árvores (ou cata-ventos, ou painéis solares, escolha aqui seu tigre de papel favorito). Repito: não há como Amorim e Trump estarem certos ao mesmo tempo, nem neste mundo, nem em nenhum dos universos mentais paralelos elaborados por alguns setores da autoproclamada “esquerda”.

O outro ponto é o que ele chama de “pseudociência” e “muamba político-partidária” ao se referir ao aquecimento global. A tal Marina Silva deve ser mesmo muito poderosa, para convencer o mundo a esquentar 1 grau Celsius desde antes de ela nascer, as geleiras a derreterem, a Amazônia a secar e as tempestades tropicais a ficarem mais violentas. Poderosa e mesquinha, pois faz tudo isso apenas para ganhar uma eleição. O “miliciano” Meirelles, em nome dessa causa, propagaria por aí “pseudociência”. Mais eis que Amorim, algumas linhas antes, tece loas ao papel de liderança do Brasil… nas conferências do clima! Entenderam? Os verdes propagam uma ficção para destruir o Brasil, mas o Brasil merece aplausos por seu papel de destaque atuando sobre essa mesma ficção. Vou deixar vocês relerem isso até encontrarem alguma lógica que eu tenha deixado escapar. Me avisem, porfa.

Sei que eu não deveria gastar horas de trabalho nem meus escassos neurônios comentando isso aqui. Mas a polarização do debate público no país, onde cada lado insiste em olhar apenas no retrovisor enquanto briga pela barra de direção para guiar o país rumo ao muro, exige que o bom senso se manifeste uma vez ou outra. Num mundo cada vez mais assolado pelas consequências da mudança do clima, no qual a transição energética e econômica passa a ser a pedra de toque do desenvolvimento e da competitividade (e, sim, PHA, da redução das desigualdades e da distribuição de renda), dar sobrevida ao negacionismo climático — este sim, uma importação política perigosa — é contra os interesses do Brasil. Jararacas e tucanos só têm a perder com isso.

 

PS: obrigado a Adriana Ramos e Délcio Rodrigues por chamarem atenção para os posts originais.

Discussão - 6 comentários

  1. Ricardo disse:

    Prezado Cláudio Ângelo,
    eu não me lembro qual a última vez que comentei algo num site. Acho que deve ter sido há mais de 8 anos, pelo menos.
    Não sei o porquê, mas o seu texto me fez quebrar a preguiça para contribuir com dois tostões para a discussão.
    Primeiro: creio ser verdade que a maioria esmagadora dos climatologistas concorda com a tese do aquecimento antropogênico do planeta. Neste ponto, você está coroado de razão.
    Segundo: não é verdade que sejam poucos os artigos que vão de encontro (e não ao encontro da) à teoria do aquecimento global induzido pelo ser humano. Neste ponto, sua argumentação é falha, no meu humilde entendimento.
    Somente no primeiro semestre de 2016, foram publicados 240 artigos científicos, revistos por pares (ou revisão paritária, arbitragem ou peer-review) cujas conclusões são opostas a do aquecimento global antropogênico.
    Fonte: http://notrickszone.com/skeptic-papers-2016/
    E em 2015, foram mais de 250.
    Fonte: http://notrickszone.com/250-skeptic-papers-from-2015/
    Você comenta que James Powell fez uma pesquisa com mais de 2000 artigos. Não fica claro que estes são artigos apenas de 2013. Suponhamos, para ajudar o seu argumento, que sim. Ora, se em 2015 - ou seja, num ano - foram publicados 250 artigos "do outro lado", estamos falando de algo em torno de 12,5%, supondo-se que o número de artigos publicados sobre o tema não se alterou muito de um ano para o outro. Arredondemos para 10%. Sim, trata-se de um valor pequeno, mas não tão desprezível quanto você pretende.
    Ressalto: não se deve inferir, a partir da quantidade significativa destes artigos, que a comunidade científica esteja intensamente dividida a respeito do tema, já que os climatologistas que esposam a tese do aquecimento global antropogênico constituem ampla maioria. Mas argumentar que praticamente inexistem artigos científicos do lado contrário é uma inexatidão que pode ser explorada pelos negacionistas como um ato de má fé de um lado da contenda que, não contente por já deter a hegemonia, anseia por apagar quaisquer divergências com medo de que estas estejam corretas.
    Eu acho que a sua argumentação deveria ter sido num outro sentido: os negacionistas conseguem publicar centenas de artigos por ano, mas não convencem seus pares, possivelmente porque seus argumentos não são tão bons assim. A comunidade científica não impede a discussão a respeito do tema, a despeito do que advogam negacionistas de variadas estirpes. Afinal, descabe olvidar que na ciência o debate é sempre salutar!
    Um abraço!

    • Claudio Angelo disse:

      Caro Ricardo,
      Ótimo ponto, obrigado. Vou olhar os dois links para saber quais foram os parâmetros de pesquizsa. Claro que os parâmetros de busca no Web of Science influenciam o resultado -- e é por isso que Powell, Oreskes e Cook divergem entre si. Por ora, colo aqui os dois papers de Oreskes (2004 e 2007, que concluem basicamente a mesma coisa):
      http://science.sciencemag.org/content/306/5702/1686.full
      http://www.cpp.edu/~aebresnock/aebres/ec435/oreskespaper.pdf
      Aqui, uma expert elicitation feita por Schneider et al. e publicada na PNAS:
      http://www.pnas.org/content/107/27/12107.short
      Aqui, o paper de Cook et al.:
      http://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/8/2/024024;jsessionid=8B022A1977962B3A6408BD6819D783F9.c4.iopscience.cld.iop.org
      E, aqui, uma resposta de Cook e colegas a Powell que havia me escapado (e que indica que você tem alguma razão ao torcer o nariz para Powell):
      http://www.skepticalscience.com/news.php?f=Powell

      Meu ponto, no entanto, permanece: mesmo que o dissenso esteja entre 3% e 10% (vá lá) em vez de 0,04% a 3%, o consenso ainda é forte demais a ponto de podermos descartar a ideia de "teoria polêmica".

  2. Rosalvo O. Junior disse:

    Um artigo partidário.

    Abaixo dois links que provam ser mentirosos as informações do referido artigo, onde o PT realizou no mínimo 2 seminários nos últimos 12 meses sobre o tema das mudanças climáticas e elaborou um texto respectivo:

    1)

    http://novo.fpabramo.org.br/content/fpa-e-fes-debatem-mudan%C3%A7as-clim%C3%A1ticas

    2) http://www.pt.org.br/smad-e-fpa-promovem-roda-de-prosa-sobre-mudanca-do-clima/

  3. Rosalvo O. Junior disse:

    Uma das compreensões do PT acerca das Mudanças Climáticas:

    http://www.pt.org.br/blog-secretarias/resolucao-da-smadpt-sobre-mudanca-do-clima/

  4. MAURO SCARPI disse:

    Fala sério, desde quando Paulo Henrique Amorim representa ou é de esquerda? Desde quando Janaína Paschoal representa a direita?
    Sugestão: observar como se comportam os parlamentares no Congresso, diante de temas caros à sustentabilidade ou de agendas como a PEC 215, a tentativa de liberar geral e acabar com os processos de licenciamento ambiental, a CPI do Incra e Funai, etc, etc, etc.
    Por fim, no tal caderninho de Marcelo Odebrecht, e de outros tem espaço para todos, todos mesmo, indistintamente.

  5. Joaquim Alves disse:

    Caro Claudio, texto esclarecedor, parabéns pela reflexão. Contudo, não consigo ver a Marina como alternativa de nada. Sinceramente, ela está no mesmo xadrez político dos partidos convencionais, não há nada de inovador no discurso dela, pelo contrário. Porém o ponto não é esse, mas sim a questão da alienação político-ideológica em geral relacionada a questão socioambiental, fato este muito agravado na esquerda(?) atual. Outra questão que pode ser relacionada é esta falta de cientificidade no discurso político. É impressionante como o Brasil desperdiça o que produz, incluindo ai seus cientistas.

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