E 2017, é culpa de quem?
QUANDO CHOVEU EM BRASÍLIA na semana de 20 de setembro, eu comemorei em vez de xingar o engarrafamento. Até que enfim um ano em que as chuvas começaram quase na época de costume, após mais de 110 dias de seca. Juntando isso com um inverno em que fez frio também como antigamente, parecia que o ano seria enfim normal – após os malabarismos climáticos de 2015, quando em vez de estação chuvosa tivemos uma onda de calor de 45 dias que quebrou todos os recordes, e de 2016, quando o inverno durou uma semana.
Pelo visto, comemorei cedo demais. Entre 22 de setembro e 16 de outubro não caiu uma gota d’água no DF. Em vez disso, tivemos um repeteco em miniatura da onda de calor de 2015, com temperaturas da casa dos 35 graus de dia e 26 à noite (a máxima recorde da cidade foi 36,5oC, batida em 2015). Depois de eu escrever a primeira versão deste texto, a imprensa confirmou que o domingo (15) superou os dois recordes de 2015, com 37,3oC medidos pelo Instituto Nacional de Meteorologia em Águas Emendadas, a cerca de 25 km da minha casa. A média histórica para o mês de outubro, o mais quente do ano na cidade, é e 27,5oC. A timeline do meu Facebook foi invadida por memes de calor no fim de semana (como o que ilustra este post). A quentura e a secura põem pressão adicional nos reservatórios de uma cidade que está há dez meses racionando água. Se não chover copiosamente a partir da segunda quinzena de outubro, as represas não vão se recuperar e 2018 será ano de mais racionamento.
Não há nada de normal nisso tudo.
Olhando para fora da minha aldeia, 2017 definitivamente não teve nada de normal. No hemisfério Norte, o abre-alas do verão foram os incêndios florestais que deixaram mais de 60 mortos em Portugal. Em julho e agosto, foi a vez da onda de calor apelidada Lúcifer, que deixou o sul da Europa com temperaturas manauaras. Ao mesmo tempo, 158 incêndios florestais atingiram a Colúmbia Britânica, no Canadá. Agosto viu ainda incêndios de grandes proporções no sul da Groenlândia – a pior temporada desde o início dos registros.
Em setembro quem brilhou foi o Oceano Atlântico, com a temporada de furacões mais danosa já registrada na história. Até agora foram dez, começando com Franklin e chegando a Ohpelia (que atravessa o oceano neste momento numa estranha trajetória rumo à Europa), incluindo três simultâneos (Katia, Irma e José), dois de categoria 5, a máxima na escala (Irma e Maria), o mais forte já registrado no Atlântico (Irma) e três supertempestades tocando terra nos EUA e no Caribe (Harvey, Irma e Maria, que devastou a ilha de Porto Rico). Até agora foram mais de 300 mortos e prejuízos ainda por contabilizar, mas estimados em mais de US$ 200 bilhões.
De volta a Pindorama, no mesmo mês de setembro o Brasil bateu seu recorde mensal de queimadas (106 mil registradas pelo Inpe), tornando 2017 o sétimo ano com maior número de incêndios desde o início dos registros, em 1998 – e isso a dois meses do fim do ano. E, já que estamos falando de fogo, outubro seguiu com uma temporada de incêndios sem precedentes na Califórnia, com mais de 30 mortos e prejuízos sérios para a indústria vinícola americana. Água, por outro lado, sobrou no Rio Grande do Sul, atingido por tornados, microexplosões e tempestades.
Em 2015 e 2016, dois dos três anos mais quentes da história, nós tínhamos um bode expiatório para os extremos climáticos. O biênio foi do El Niño “Godzilla”, que ajudou a elevar o aquecimento da Terra de 0,85oC para 1oC acima dos níveis pré-industriais no ano passado, secando porções do globo como o Nordeste brasileiro e o oeste americano. Só que o El Niño submergiu em meados de 2016, e a fase inversa da oscilação, o La Niña, que ajuda a resfriar o mundo, não veio nem de longe com a mesma intensidade. Em 2017 não temos o “ruído” das oscilações climáticas naturais de curto prazo. A música que toca ao fundo, numa sucessão decidida de compassos que deve nos levar ao segundo ou terceiro ano mais quente nos registros, parece ser mesmo a do aquecimento global.
De fato, o planeta em 2017 se assemelha uma encenação daquilo que os modelos climatológicos previam para este século num cenário de crise climática. Condições oceânicas semelhantes ao El Niño: check. Furacões mais intensos, mais incêndios florestais e ondas de calor mais frequentes: idem. Invernos anormalmente frios e com muita neve, como o deste ano no hemisfério Norte: também. Para ficar apenas no Brasil, a seca no Nordeste (que vai entrar no sétimo ano), o calor extremo no Norte, no Sudeste e no Centro-Oeste, os baixos níveis dos reservatórios e as chuvas mais intensas no Sul são exatamente o que os modelos climáticos globais regionalizados pelo Inpe prognosticavam para o meio do século.
Obviamente, atribuir cada um desses extremos de forma unívoca aos efeitos dos gases-estufa acumulados na atmosfera é temerário. Por outro lado, cada vez mais cientistas vêm apontando para um fato óbvio: nada do que acontece hoje na atmosfera da Terra pode ser dissociado do fato de essa atmosfera estar em média 1oC mais quente do que em 1850. Portanto, de certa forma, mesmo que nem tudo seja culpa do aquecimento global, tudo é culpa do aquecimento global.
Enquanto mais um ano de extremos fode com a gente se abate sobre a Terra, uma quantidade enorme de energia é desperdiçada na ágora por um monte de gente boa tentando persuadir a Dona Maria com dados e fatos de que o problema é real e causado por nós. É precisamente como a indústria fóssil quer que a gente aja: perdidos na cortina de fumaça argumentativa enquanto eles tentam espremer até o último centavo de lucro vendendo óleo e carvão e ao mesmo tempo buscam formas de competir com a Tesla e os painéis solares chineses.
O real debate que deveria estar sendo travado agora diz respeito a proteger pessoas e ecossistemas. Como Brasília e São Paulo vão evitar a próxima crise hídrica? Como os moradores de São Francisco de Paula poderão se proteger de tornados a tempo? Que decisões prefeituras, fazendeiros, seguradoras e o mercado imobiliário precisarão tomar para lidar com um presente que não é mais como o passado e com um futuro que será uma versão piorada do presente, qualquer que seja a causa das mudanças? E o que fazer com pessoas menos afortunadas do que eu, que não têm dinheiro para comprar um aparelho de ar-condicionado – e que mal têm acesso a energia?
Perdemos muito tempo aprisionados na armadilha da atribuição. É um espaço confortável, no qual homens brancos com instrução superior e salas refrigeradas podem se digladiar em teoria e sonhar em resolver o problema no atacado, com acordos internacionais, NDCs e grandes esquemas de precificação de carbono. É óbvio que não há saída de longo prazo para a crise sem atacar suas causas e zerar emissões antes de 2050.
Mas no mundo real o disco virou para a ação local de construção de resiliência. É uma conversa muito mais complicada, já que envolve necessariamente o pequeno poder, a esfera municipal, o código de obras e outras coisas sem o menor glamour – além de interlocutores com os quais boa parte das pessoas com instrução superior prefeririam não precisar lidar, como aquele prefeito do Pros ou aquele vereador do PP. Essas pessoas e, a bem da verdade, todas as outras, precisam entender que as referências e a experiência não são mais guia para o futuro. E que rezar pela chuva ou contratar o Cacique Cobra Coral não são a resposta.
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