R$ 113 bilhões e mais uma chance perdida

UM AMIGO inglês me escreveu ontem um e-mail engraçado. “E aí, quanto disso vai para pesquisa?”, perguntou, mandando embaixo o link para uma matéria do Financial Times sobre o “pacote de estímulo de US$ 66 bilhões de Ms. Rousseff”. Dei uma risadinha e respondi: “Você deve estar confundindo o Brasil com a Coreia. Nosso pacote é só para fazer estrada e ponte”. Meu amigo não desistiu: “Mas, puxa, e os cientistas, não estão reclamando? Porque todos os países que aprovaram pacotes de estímulo à economia incluíram um dinheirão para pesquisa…”

Esses ingleses são uns ingênuos, pensei. Não sei como conseguiram dominar o mundo por dois séculos. Mas depois, claro, veio a depressão. Não, nossos cientistas não estão reclamando. Talvez porque eles tenham se acostumado a NUNCA verem a pesquisa incluída na conta dos investimentos do governo. Não esperavam nada, não ganharam nada.

Por um lado, não dá para ser contra o pacote de subsídio às privatizações da mocr…, digo, da presidenta. Conceder estradas, ferrovias, portos e aeroportos é um grande passo na resolução de um (desculpem o clichê) gargalo de infraestrutura que é muito real no país. Faz a iniciativa privada trabalhar e botar a mão no bolso. E rompe mais um pouquinho com o ideário esquerdizante tosco que ainda domina alguns setores do governo.

Por outro lado, o pacote é mais uma chance desperdiçada por um governo que insiste em ver ciência, tecnologia e educação como gasto — na contramão do resto do mundo, como apontou candidamente meu amigo britânico. Uma parte muito pequena desses 113 bilhões recomporia o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, cortado por Dilma em 22%. Com uns caraminguás a mais, Dilma poderia iniciar um crash-program em inovação tecnológica — energias limpas, por exemplo, ou tecnologia espacial para a agricultura, ou biotecnologia, você escolhe — que poderia ajudar a qualificar o crescimento do país no médio-longo prazo. Com apenas US$ 400 milhões, Barack Obama fez o Arpa-e, que visa devolver os EUA à linha de frente das tecnologias de energia. Não é que falte dinheiro no Brasil: nesta semana, a Petrobras anunciou um investimento de R$ 3 BIlhões para P&D em quatro anos, com dinheiro do petróleo.

Um programa como o Arpa-e no Brasil poderia turbinar setores estratégicos para o nosso crescimento limpo, em linha com os compromissos que nós juramos adotar na Rio +20. Mas a esta altura não há mais ninguém que se lembre da Rio +20 em Brasília. O pacote de Dilma, por sua vez, é novamente (lembrem-se do IPI zero) a antítese da sustentabilidade: ao destravar a logística, vai facilitar ainda mais o crescimento do agronegócio desmatador, que já está montado no maior pacote de crédito da história (R$ 114 bilhões) e num Código Florestal enfraquecido. Não é à toa que as privatizações foram saudadas con gusto por Kátia Abreu e a CNA.

E os nossos cientistas, onde estão que não estão invadindo o Palácio do Planalto neste momento? Ficaram tão acostumados assim a perder? Ou não conseguem pensar em um uso para, digamos, 10% do pacote de logística de Dilma? O que vocês fariam com R$ 11 bilhões?

 

Código Florestal: só acaba quando termina

QUEM NÃO AGUENTA mais ouvir falar de Código Florestal atire o primeiro correntão. Pouca gente se lembra daquele que já foi O assunto mais polêmico deste Brasil varonil, o babado do momento, the talk of town, antes do Mensalão e da eleição passarem por cima até da CPI do Cachoeira e daquela gatinha da Andressa. Pois bem, senhoras e senhores, o código está de volta, arrebatando multidões e dando vários cabelos brancos à ministra Izabella Teixeira. Hoje parlamentares da bancada do trator, maioria na comissão mista que examina o texto da MP do código, deram mais uma volta na bancada dos abraçadores de árvores e aprovaram quatro destaques que aumentam ainda mais o teor de látex da já mui flexibiizada lei (deixo a vocês imaginarem o que eles vão fazer com tanto látex). O governo jurou vingança.

Vamos recapitular: os ruralistas queriam mudar o código porque em 2008 o maluco do Carlos Minc resolveu ter o desplante de baixar um decreto determinando que a lei (de 1965) fosse cumprida. Fez-se um relatório ruim, aprovado por uma comissão de maioria ruralista. O governo chiou, porque não queria anistia a desmatadores. Aprovou-se em maio do ano passado na Câmara, por 410 votos, uma nova versão do texto, que… bem, anistiava desmatadores. O Senado mexeu, melhorou. Voltou para a Câmara. Piorou de vez. Dilma vetou parte e baixou uma MP, a 571, para recompor os buracos do veto com o texto do original do Senado. O Congresso agora aprecia a MP, numa comissão formada por… ruralistas.

A comissão produziu um relatório mais ou menos salomônico, que cedia aos ruralistas entregando um pouquinho mais de áreas de preservação permanente (APPs) que deveriam ser recuperadas à produção, aliviando para a espécie em extinção (mas ainda boa de lobby) dos médios proprietários, mas preservando a essência do Artigo Primeiro, que evita que a lei ambiental vire uma lei rural. Aí veio o recesso. E aí vieram os destaques. Mais de 300 deles. Quase todos de ruralistas, e quase todos para enfraquecer a lei.

Centenas de destaques foram derrubados em bloco. Sobraram 37. Quatro foram aprovados hoje. O mais grave deles é o que acaba com a necessidade de APP para cursos d’água intermitentes, ou seja, para rios que secam em parte do ano. Oi? Mas… e os rios do Nordeste, não são quase todos intermitentes? Sim. E o Nordeste não atravessa hoje sua pior seca em mais de três décadas? Hm, sim. E falta de mata ciliar não ajuda a secar rio? Sim! Mas não é um escárnio o Congresso Nacional aprovar uma coisa dessas? Sim.

O governo também achou, pelo visto, e segundo me informou uma fonte com bom trânsito no Planalto, parou de negociar. A continuação da votação dos destaques, marcada para ocorrer na manhã desta quinta, teria sido suspensa ontem até 28 de agosto. Aparentemente o governo quer trucar (mais uma vez) os ruralistas e devolver o teor do texto votado na comissão. Senão…

Pois é: senão o quê? O governo já provou que não tem números e que não controla a base nesta matéria. Dilma vai fazer o veto do veto? Pode ser. Aí o veto do veto vai voltar para apreciação pelo Congresso ruralista. Aí vem o veto do veto do veto, e enquanto isso ninguém paga multa, ninguem recompõe floresta e tudo fica exatamente como na teoria da Rainha Vermelha, mudando para não sair do lugar.

Precisava tanto drama para isso?

A Groenlândia está derretendo. Mas não como você imagina

Icebergs gigantes se desprendem da Corrente de Gelo de Upernavik, um dos glaciares estudados pelo grupo dinamarquês (Foto: Science)

Muita gente se acostumou a incluir o derretimento acelerado do manto de gelo da Groenlândia juntamente com a morte e os impostos na lista das grandes certezas da vida. Um estudo publicado na edição de hoje da revista Science sugere que é assim, mas não é bem assim. Na verdade, o degelo dá mostras de que está desacelerando neste momento.

Calma, leitor. Os climatologistas não piraram nem a indústria do petróleo está por trás disso. Mas um grupo de cientistas da Dinamarca e dos EUA concluiu, examinando três décadas de fotografias aéreas do noroeste da ilha, que a maior parte da perda de gelo da Groenlândia acontece em pulsos e “de baixo para cima”, por assim dizer: o degelo superficial, decorrente da resposta do manto às temperaturas do ar mais elevadas, é irrelevante. O que importa mesmo é o que acontece no ponto de contato entre o mar e as terminações das grandes geleiras da região.

O grupo liderado por Kurt Kjaer, da Universidade de Copenhague, analisou centenas de fotos, cruzadas com dados de altimetria a laser coletados nos últimos anos pela Nasa, para montar um mapa de elevação do noroeste da Groenlândia, mostrando como variou a espessura do gelo. Eles identificaram dois grandes episódios de perda: um entre 1985 e 1992 e outro, mais dramático, entre 2005 e 2010. Embora o derretimento superficial tenha crescido, ele ainda é literalmente uma gota d’água no oceano se comparado a esses “pulsos”. Portanto, é precipitado extrapolar uma tendência para calcular a contribuição da Groenlândia para a elevação total do nível do mar neste século.

“É um sinal periódico, o que significa que você tem uma perda de gelo imensa num período de 5 a 8 anos e um período estável, seguido por um outro evento de 5 a 8 anos. Não é um sinal linear e não tem uma tendência”, diz Shafaqat Abbas Khan, da Universidade Técnica da Dinamarca, co-autor do estudo.

Abbas é um jovem de origem paquistanesa que eu conheci no ano passado em Copenhague e que tem um emprego que me mata de inveja: todo verão ele é despejado de um helicóptero sobre geleiras em derretimento acelerado, faz uma série de medições com GPS em poucos minutos e pula de volta no helicóptero antes que o movimento do gelo o empurre no abismo. “Depois de um tempo você se acostuma, vira só mais um trabalho”, minimiza.

Sua especialidade é medir o chamado “repique isostático”, em tradução livre, o levantamento da crosta da Groenlândia em resposta ao alívio de peso causado pela perda de gelo. Parece incrível que essa “espreguiçada”da ilha possa ser medida, mas basta ter um bom GPS.

O que me impressiona em Abbas é que ele é um cético do clima. Cético no bom sentido da palavra: um cientista que questiona o tempo todo as suposições por trás do próprio trabalho. Como lida com observações e não com modelagem,o geofísico se recusa em fazer previsões sobre o colapso do manto e sobre o consequente aumento do nível do mar no mundo — apesar de se declarar chocado com o rebaixamento que observa ano após ano nas geleiras que visita. Ele diz que não é possível afirmar, como alguns colegas têm sugerido, que a Groenlândia já tenha ultrapassado o ponto de não retorno, algo que provavelmente aconteceu 125 mil anos atrás, quando estima-se que a ilha tenha derretido quase completamente. “Quando esse cara começar a derreter, aí sim eu vou ficar preocupado”, me disse uma vez, apontando num mapa um rio de gelo várias vezes mais largo que o Amazonas, conhecido apenas como Geleira 79, no nordeste groenlandês.

A descoberta do derretimento em pulsos (que o grupo de Abbas e Kjaer chama de “perda de gelo dinâmica”) não significa que o aquecimento global não tenha culpa no cartório — ao contrário, já que o principal suspeito de causar o fenômeno é o aumento periódico da temperatura do mar nos fiordes de Kalaallit Nunaat (como os groenlandeses chamam seu país). Vários cientistas já vinham chamand atenção para isso. Mas ela serve como um alerta para os pesquisadores da complexidade da natureza e da dificuldade de prever seu comportamento, e como baliza para os modeladores climáticos.

O grupo dinamarquês lança, ainda, um alerta: o degelo superficial teve participação quase zero no episódio de 1985-1992, mas causou 33% da perda nas margens das geleiras no de 2005-2010, o que sugere uma sensibilidade cada vez maior do manto à elevação da temperatura do ar. Tudo que Kalaallit Nunaat não precisa agora é de um golpe nos dois flancos.

Os sectários e os do pé virado

FAZ EXATOS DOIS ANOS que eu recebi o primeiro convite do Carlos Hotta para cometer um blog que discutisse meio ambiente no Brasil. Eram tempos interessantes no país: o debate sobre o Código Florestal pegava fogo no Congresso e a eleição presidencial era disputada por uma ambientalista — mas todo mundo sabia que quem iria levar seria sua antítese. Eram também tempos interessantes para mim: saía após seis anos da editoria de Ciência da Folha de S. Paulo para voltar a Brasília, minha savana de origem, justamente para acompanhar mais de perto o debate ambiental.

A combinação não deu certo na época por razões contratuais. Mas os tempos ficaram interessantes mais uma vez, então cá estamos: bem-vindos ao Curupira.

Este blog empresta seu nome da criatura mítica de pés virados que, no imaginário caboclo, funciona como uma espécie de fiscal do Ibama: impõe quotas de caça, proíbe o abate de filhotes e fêmeas prenhes, pune quem desmata além do necessário. O curupira, porém, é mais pedagógico que o Ibama: em vez de uma multa que o infrator jamais pagará, impõe-lhe como castigo a loucura: perder-se ou desaparecer na mata.

Assemelha-se nisso a outro demônio do desenvolvimento sustentável, a sanguinária caipora (do tupi kaa-pora, ou “morador do mato”), cujas histórias, contadas pela minha babá nos já longínquos anos 80, nunca falharam em me fazer pensar duas vezes antes de estilingar um passarinho ou entrar no mato. Cheguei a considerar esta figura medonha para o título do blog, mas lembrei-me de um detalhe: a caipora, como alguns fiscais do Ibama, é corrompível. Basta o cidadão botar um fumo de rolo numa pedra e ela esquece sua “job description” e alivia para o criminoso. Fiquemos, pois, com o curupira.

Escrevo este blog convicto de que alguma coisa se perdeu na discussão sobre meio ambiente na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que o Código Florestal e a conferência de Copenhague trouxeram a temática para o horário nobre do debate público, culminando numa eleição presidencial, criou-se uma polarização estúpida entre “ambientalistas” e “ruralistas” ou entre “ambientalistas” e “desenvolvimentistas”, como se a defesa do meio ambiente fosse uma questão ideológica ou partidária, como se nela houvesse “dois lados”.

Essa bestagem fez vítimas tanto à esquerda quanto à direita no Brasil. Na esquerda, como o demonstrou a abertura das Olimpíadas de Londres, a defesa do meio ambiente é enxergada como “marinismo”, “oportunismo eleitoral” ou “fantasia”. Quando acaba o argumento, é um “instrumento de dominação dos países ricos, que já desmataram tudo” etc. Coisas que a gente espera da esquerda, que vive mesmo de pregar rótulos nos outros.

Mas a direita, pelo menos neste país, costumava pensar com um tico mais de sofisticação. E virou modinha entre os “intelectuais de direita”, com o perdão do oximoro, atacar a defesa do meio ambiente como sendo um instrumento de dominação do mundo da… esquerda! Assim, falam do “aquecimentismo global” como uma conspiração anticapitalista, sem mencionar entre as fileiras “aquecimentistas” (como nunca se cansou de lembrar meu amigo Rafael Garcia) notórios comunistas como Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. Quando acaba o argumento, usam o mesmíssimo tigre de papel da esquerda: os “países ricos” e as “ONGs estrangeiras”. Que preguiça.

Sempre tão orgulhosa de sua independência de pensamento, a direita no Brasil acabou papagaiando o mais tosco fundamentalismo norte-americano, que conseguiu transformar a ciência numa questão de crer ou não crer. É preciso fazer uma pausa para a reflexão e lembrar, como diz o cientista americano Tom Lovejoy, que “conservação” e “conservador” têm a mesma etimologia.

Os ambientalistas exageram? Dimais da conta. Erram sempre que deixam de lado evidências e usam argumentos religiosos. Um exemplo é a maneira irracional como boa parte do movimento ambientalista tratou os transgênicos — demonizando a tecnologia em vez de olhar caso a caso. Outro é a reação também atávica à energia nuclear. Em ambos os casos, o ambientalismo se afasta de quem deveria ser sua maior aliada, a ciência, e aferra a um vago princípio da precaução, cuja aplicação absoluta é impossível.

Mas talvez os ambientalistas sejam, no fim das contas, o setor menos sectário da sociedade. Evidência disso é a coisa mais bonita que já se escreveu sobre o assunto no Brasil:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem comum de uso do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Este é o “caput” do Artigo 225 da Constituição de 88 e será o mantra deste blog. Como o curupira, os constituintes não escolheram “lados”. Tinham objetivos mais altos em mente.

PS: Foi apertar o botão de “publicar” e eu lembrei que o Scienceblogs Brasil já tem uma Caipora. Ou melhor, uma Caapora, dos zoólogos Luciano Moreira Lima, Rafael Marcondes e Guilherme Terra (que vai entrar na minha lista de aptônimos), a quem peço desculpas por um quase-plágio involuntário e por eventuais ofensas à sua entidade mitológica. Vou me lembrar de levar um rolo de fumo na próxima vez que for fazer uma trilha.

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