A culpa é sempre do licenciamento
“Pensei: por que Deus criaria as pessoas tão imperfeitas, então as culparia pelas próprias imperfeições, então mandaria seu filho para ser torturado e executado por essas pessoas imperfeitas como forma de compensar o quão imperfeitas elas eram e o quão imperfeitas elas inevitavelmente seriam? Que ideia maluca.” (Julia Sweeney)
A manchete de hoje do Valor Econômico me fez lembrar esse trecho do monólogo Letting Go of God, da comediante americana Julia Sweeney. O jornal dá voz aos empresários da indústria do petróleo, que manifestam preocupação com o destino da 14ª rodada da ANP, marcada para o fim de setembro. Eles sutilmente ameaçam uma debandada de investimentos no setor no país. E a culpa, claro, será do licenciamento ambiental, esse entrave eterno.
O jornal dá a senha logo no primeiro parágrafo: diz que o setor, recentemente, já “destravou” as regras de conteúdo nacional e a exigência da Petrobras como operadora única do pré-sal. E agora, justo quando chegavam as strippers e a cocaína a festa ia ficar boa, aparece esse Ibama para empatar.
A reportagem do Valor tem alguns problemas, devidamente apontados por Maurício Tuffani no Direto da Ciência. Talvez o principal deles seja o timing. O Congresso Nacional está voltando hoje do recesso, para azar da sociedade brasileira. Amanhã a bancada ruralista e seus aliados do “mercado” devem livrar o Presidente da República da cassação e da eventual temporada em Curitiba. Nos próximos dias, como parte da fatura pela graça realizada, devem votar no plenário a Lei Geral de Licenciamento Ambiental, rifada por Temer, apesar de acordo prévio com o ministro do Meio Ambiente. Nesta terça-feira (01) o licenciamento estará no “cardápio” do almoço semanal da Frente Parlamentar da Agropecuária (a sobremesa é o seu futuro, leitor). Não creio em bruxas, mas há uma coincidência retada no fato de o setor ter se lembrado só agora de contar ao principal jornal de economia do país que tem um “entrave ambiental”.
Ironicamente, o estudo de caso apresentado pelas fontes como símbolo dos supostos problemas do licenciamento sai pela culatra. Trata-se das “dificuldades” que a petroleira francesa Total estaria tendo para conseguir licenciar blocos de exploração na região da foz do Amazonas, arrematados em 2013, na 11ª rodada da ANP. O Ibama, esse inimigo do Brasil, estaria enrolando com a licença só porque a região de exploração fica ao lado de um banco de corais único no planeta, recém-descoberto e provavelmente ultrassensível a vazamentos e… não, pera.
Temos, então, que o licenciamento ambiental é acusado de ser lento e rigoroso demais porque o governo concedeu uma área de exploração de óleo numa zona ecologicamente sensível, onde o licenciamento ambiental precisa ser, necessariamente, mais lento e rigoroso, porque tem o mandato de proteger essa zona ecologicamente sensível. O raciocínio é perfeitamente circular. Julia Sweeney na veia. (Se eu fosse ministro do Meio Ambiente, ainda mais neste clima de baile da Ilha Fiscal que está este governo, me fazia de loka e decretava um parque nacional marinho na região. Sarney, #ficaadica.)
O “prejuízo” causado pelo Ibama ao país no caso seria US$ 300 milhões, que é o que a Total havia planejado investir na região em 2017. Para colocar em perspectiva, US$ 300 milhões equivale a 3 UBV (Unidade Barusco de Valor), ou seja, três vezes o que um único diretor da Petrobras, Pedro Barusco, aceitou devolver aos cofres públicos do dinheiro que ele tinha roubado sozinho. Você me diga se essa grana vale arriscar os corais da Amazônia.
Mais adiante, o texto meio que derruba a si próprio: diz que a 14ª rodada está ameaçada pela lerdeza do licenciamento, mas que que a maioria dos blocos a serem oferecidos não ficam em áreas ambientalmente sensíveis e sim em regiões “já conhecidas”, ao contrário dos da 11ª rodada, que estavam em “novas fronteiras”.
E aí o Valor cita um caso emblemático de outra barbeiragem licitatória da ANP supostamente implodida pelo licenciamento: em 2002, uma empresa americana arrematou blocos de exploração numa área próxima a outro banco de corais — o dos Abrolhos, entre Espírito Santo e Bahia, onde já existia um parque nacional marinho. Em 2004, o Ministério do Meio Ambiente bateu o pé e disse que não dava para furar ali. O ministério de Minas e Energia aquiesceu. A empresa deixou o país dois anos depois e os corais de Abrolhos foram deixados em paz, por enquanto.
A ministra de Minas e Energia que se dobrou ao bom senso na época se chamava Dilma Vana Rousseff.
Foto: corais da Amazônia (Greenpeace)