Arquitetura do invisível

Matéria publicada na Unesp Ciência de outubro de 2009.

A rotina dos nanocientistas é desvendar as entranhas da matéria. Eles modificam sua estrutura em busca de novas propriedades e assim conseguem resolver problemas tecnológicos da indústria

 

De posse de microscópios de altíssima resolução, Elson Longo e sua equipe enxergam as entranhas da matéria até o seu mais básico nível de organização. Eles veem como os cristais se estruturam, as moléculas se arranjam, os átomos se empilham. No melhor estilo “voyeur científico”, desvendam o invisível em belíssimas imagens (como a que abre esta reportagem e a que foi mostrada no Click! da 1ª edição da Unesp Ciência).

A tarefa de desnudar assim a matéria não é só indiscrição de nanocientista. É a primeira parte de uma rotina centrada na busca por novas propriedades, como cor, dureza, condutividade elétrica e fotoluminescência. Essas características têm grande potencial industrial e estão intimamente relacionadas à estrutura tridimensional da matéria, visível apenas numa escala nanométrica, que é um milhão de vezes menor que um milímetro (um fio de cabelo, por exemplo, pode ter entre 50 mil e 100 mil nanômetros de espessura).

“Conhecendo a estrutura dos materiais, podemos alterá-la e ver como as propriedades mudam”, explica Longo, coordenador do Centro Multidisciplinar de Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), formado por laboratórios da Unesp em Araraquara, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), da USP e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares.

Para alterar a estrutura da matéria, os nanocientistas dedicam-se a sintetizar substâncias quimicamente já conhecidas, à procura de arranjos moleculares diferenciados. Um exemplo é o titanato de bário. Quando sintetizado em determinadas condições de temperatura e pressão, esse sólido, com grande potencial na fabricação de memórias de computador, adquire fotoluminescência – a capacidade de absorver e emitir luz. Materiais fotoluminescentes encontram vasta aplicação industrial: da medicina diagnóstica à prospecção de petróleo.

“Nós brincamos com a arquitetura dos materiais”, diz Diogo Paschoalini Volanti, doutorando do Instituto de Química da Unesp em Araraquara, que conduz a parte experimental de sua tese no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da UFSCar. Ele é o responsável pela criação de uma engenhoca da qual toda a equipe se orgulha e que deu origem à maior parte dos 53 artigos científicos publicados pelo grupo só em 2009. “É a combinação de um micro-ondas com uma panela de pressão”, diverte-se Longo.

Pequeno notável
De fato, é um forno de micro-ondas doméstico, ao qual foi acoplada uma válvula que controla a pressão dentro de um recipiente que é aquecido pela radiação. O híbrido atende pelo nome de hidrotermal-micro-ondas e, na verdade, é a adaptação de um equipamento homônimo importado, que custa cerca de US$ 60 mil. A versão brasileira sai por até R$ 5 mil. “Se quebrar uma peça, a gente mesmo conserta, não precisa mandar para fora”, afirma Volanti.

Nessa engenhoca os pesquisadores literalmente cozinham seus reagentes, sempre em meio aquoso, para então obter o composto de interesse, que mais tarde vai ser fotografado em microscópios eletrônicos.

O sistema hidrotermal-micro-ondas é uma tecnologia que chegou aos laboratórios de nanociência há menos de dez anos. Antes, os pesquisadores usavam um equipamento no qual o calor era produzido por resistência elétrica. “Com as micro-ondas, o aquecimento ficou mais homogêneo”, explica Mário Lúcio Moreira, outro doutorando da Unesp que divide seu tempo entre Araraquara e São Carlos.

A grande vantagem é que a energia eletromagnética das micro-ondas propicia uma quantidade de choques maior entre as moléculas, o que torna o sistema mais eficiente e econômico. “Para sintetizar titanato de bário pelo método convencional, precisávamos aquecer a amostra a 220oC durante 72 horas. Com o hidrotermal-micro-ondas, levamos a 140oC por 10 minutos”, compara Moreira. “E o material adquire propriedades que a gente não consegue com nenhum outro método.”

O processo envolve um bocado de tentativas e erros. Os cientistas geralmente têm alguma ideia da estrutura nanométrica que terá o composto sintetizado em condições X, Y e Z, por assim dizer, graças à experiência e aos cálculos de química teórica. Mas, vez por outra, o que se vê ao microscópio é bem diferente do esperado, como conta Volanti. “Eu queria fazer nanotubos, mas o que saiu foi isso aqui”, diz ele, apontando para um monte de nanoesferas de óxido de cobre no seu notebook.

Fármacos nanométricos
Com o composto sintetizado em mãos, é hora de verificar seu aspecto no microscópio eletrônico de varredura, que aumenta a imagem em até 1 milhão de vezes. No Liec de Araraquara, os alunos de pós-doc Márcio Luiz dos Santos e Carla dos Santos Ricardi obtêm nanoesferas produzidas a partir da combinação de polímeros, impregnados com um determinado fármaco. “Estamos na fase de escrever a patente”, diz Santos, sobre o projeto que prevê uma nova formulação oral para um medicamento genérico, cujo diferencial será a liberação lenta e controlada do princípio ativo.

Devido aos termos sigilosos do contrato assinado com um laboratório farmacêutico nacional, os detalhes do projeto não podem ser revelados. Mas não é segredo que o hidrotermal-micro-ondas está na fórmula de sucesso dessa linha de pesquisa. Com essa metodologia, foi possível diminuir o tamanho das partículas, deixando-as mais uniformes, explica Carla, de forma a atender às normas da Anvisa, segundo as quais as partículas dos medicamentos sólidos de uso oral devem medir entre 0,5 micrômetro e 1 micrômetro.

Depois do microscópio eletrônico de varredura, o próximo passo é observar a amostra no microscópio eletrônico de transmissão. Enquanto no primeiro o feixe de elétrons escaneia a superfície do material, no último, ele a atravessa. Nesse caso, o que dá mais trabalho é preparar a amostra, explica o professor Mário Cilense, da Unesp em Araraquara. Ela pode ter no máximo 3 milímetros de diâmetro e, o que é mais complicado, 100 nanômetros de espessura.

Para chegar a uma amostra tão fina, os cientistas usam uma série de equipamentos, sendo que o último é um polidor iônico. Um feixe de íons de argônio vai desbastando o material. “Quando aparece um furinho, é o momento de parar”, afirma Cilense.  Segundo ele, o preparo da amostra pode levar mais de um dia. “Dá uma boa enchida de paciência”, confessa.

O microscópio de transmissão permite uma visão mais detalhada da morfologia da amostra, quando comparado ao de varredura. Mas o que essa máquina faz de mais impressionante é revelar a organização mais íntima da matéria, átomo a átomo. “É possível ver que numa partícula elíptica ou redonda, por exemplo, a cela unitária, isto é, o arranjo básico de átomos que se repete na estrutura cristalina, tem formato tetragonal”, afirma Marcelo Ornaghi Orlandi, também professor em Araraquara.

Ele explica ainda que, embora o equipamento tenha um aumento máximo de 1,2 milhão de vezes, na prática essa capacidade raramente é usada. “Com o aumento máximo, perde-se resolução, não vemos bem os contrastes. Geralmente trabalhamos com aumentos que variam entre 550 mil a 800 mil vezes.”

Prática com teoria
Em um dos laboratórios do Liec de São Carlos, veem-se apenas computadores, papéis e, claro, pessoas. É um grupo de nanocientistas que passa o dia diante dos dados obtidos nas análises dos materiais sintetizados, e com eles fazem cálculo sofisticados. “São correlações entre os resultados experimentais e a previsão teórica”, explica Mário Lúcio Moreira. Assim eles tentam descobrir como determinadas propriedades estão relacionadas a certas modificações estruturais. Nada disso é possível sem conhecimentos avançados de química quântica e um cluster de computadores que fica numa saleta refrigerada, num dos cantos do laboratório.

Da prática explicada pela teoria saem saberes úteis para indústrias de diversas áreas, como cosmética, farmacêutica, química e siderúrgica. Atualmente, 11 delas mantêm convênio com o CMDMC. “É importante para os alunos, que veem como a iniciativa privada funciona”, diz Longo.”Por outro lado”, acrescenta, “mostramos como os problemas da indústria podem ser resolvidos com pesquisa básica.”

O CMDMC, que é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fapesp e, desde o início deste ano, também um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do CNPq, celebra este mês sua parceria mais antiga, com a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Nas últimas duas décadas, 43 projetos ajudaram a melhorar a competitividade da maior siderúrgica do país.

“No início, a gente nem sabia que estava fazendo nanotecnologia. Não havia equipamentos para ver o material nesse nível”, diz Longo, que divide os méritos do trabalho com José Arana Varela, professor em Araraquara e diretor da recém-criada Agência Unesp de Inovação. Não por acaso, o lançamento da agência e a celebração da parceria acontecem no mesmo dia e local: 6 de outubro, no câmpus de São Paulo.

 

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