Para que serve a literatura?, por Mario Barenghi (tradução Cláudia Alves)

Para que serve a literatura?*

Mario Barenghi 

A meu ver, questionar-se sobre “o que é literatura?” ou “o que é um texto literário?”, como Giovanni Bottiroli[1] fez, não é a maneira mais adequada de encarar o problema do ensino de literatura na universidade, muito menos na escola. A questão colocada não deveria ser ontológica, mas sim funcional. Vale interrogar-se sobre o escopo da literatura, o que quer que isso seja: sobre sua razão de ser. Para que serve? Para que nós a usamos? Com quais motivações? E com quais objetivos e vantagens? Tendo que dar uma definição genérica, tomo emprestada a fórmula que o linguista israelense Daniel Dor[2] usa para definir a linguagem.

A literatura é uma técnica de “instrução da imaginação”, que não serve simplesmente para “comunicar”, mas para fazer viver experiências simuladas. Por meio de uma prática de simulação socialmente compartilhada (portanto, diferente da fantasia individual), o leitor tem a possibilidade de ampliar sua própria complexa experiência existencial: de clareá-la e de enriquecê-la, de articulá-la e de ampliá-la, adquirindo assim novos instrumentos para enfrentar os desafios da vida real.

Também podemos formular essa ideia em termos moralmente mais comprometidos. O final das obras literárias deveria servir para nos ajudar a viver. Servem para viver: assim soa o título de um ensaio inteligente de Bruno Falcetto (subtítulo: Por uma educação com uso de literatura)[3]. Para viver, ou para sobreviver, ou para nos fazer viver melhor, como escreveu Tzvetan Todorov em um livro de 2007, A literatura em perigo[4]; e como reiterou Antoine Compagnon, no mesmo ano, em sua aula inaugural ao Collège de France, Literatura para quê?[5], a literatura serve para nos fazer mais felizes. Ou menos infelizes. E para nos fazer melhores: mais sábios, mais conscientes, mais sensíveis, mais perspicazes (aqui, Compagnon cita uma célebre passagem do ensaio “O miolo do Leão”, de Calvino); em geral, mais preparados para interpretar o mundo que nos circunda, o mundo humano in primis. Como consequência, melhor inseridos no ambiente que nos é próprio: mais hábeis em compreender nossos semelhantes, suas ações e suas atitudes, assim como as dinâmicas das relações que nos ligam a eles; mais preparados para compreender o sentido e o peso das palavras, nossas e dos outros.

Mas atenção: a literatura não produz esses efeitos de maneira automática. Pelo contrário, pode acontecer que ela não os produza de maneira nenhuma. Não apenas e nem tanto porque, além da grande literatura, exista também a literatura ruim, mas sobretudo porque (o caso dos textos sagrados ensina) não existe livro bom de que não se possa fazer mau uso, do mesmo jeito que não existe utensílio (ferramenta, equipamento, competência ou conhecimento) de que não possam se aproveitar os “estúpidos” e os “bandidos”, para usar duas categorias de Cipolla, de Allegro ma non troppo[6]. Podemos nos consolar, talvez, ao pensar que o contrário também é verdadeiro: de um livro medíocre pode se fazer um uso positivo. Fato é que o ensino de literatura deveria seguir esse escopo: aumentar as possibilidades de que, na experiência literária dos alunos, os efeitos considerados profícuos, desejáveis, esperados prevaleçam aos considerados negativos. (…)

Pode-se ensinar literatura? Nisso Bottiroli tem razão: “o que um professor de Letras pode fazer é criar condições para que seja possível uma experiência estética. Não pode impô-la, mas pode favorecê-la”. E tem também razão ao sustentar que o professor não deve criar obstáculos. Eu diria, mais drasticamente, que deveria evitar criar danos: primum non nocere[7], de acordo com o aviso dourado da Escola Médica Salernitana. Concordo menos quando Bottiroli coloca em oposição a atenção dada aos “textos” e a atenção dada aos “contextos”, denunciando as consequências nefastas do “contextualismo” (“o contextualismo mata a literatura”). Com certeza, tratar um texto da mesma forma que um simples documento de qualquer outra coisa, reduzindo-o a um suporte para investigações de ordem histórica, psicológica, social, “cultural”, significa sufocá-lo. Danos não menos graves, todavia, foram produzidos – principalmente na escola, até onde sei – pelo abuso de noções e grades elaboradas pela teoria literária. Não se lê um romance para aprender o que significam as palavras “prolepse” e “analepse”.

O que está matando a literatura, na minha opinião, é a indiferença nos enfrentamentos por parte dos leitores. Eu não diferenciaria tanto “artefato” e “objeto virtual” (termos com os quais Bottiroli se refere ao “conjunto das interpretações possíveis”), mas sim “texto” e “obra”, onde obra é o texto concretamente reativado pela leitura: executado – no sentido musical da palavrapor um leitor ou por uma comunidade de leitores. Franco Brioschi cita várias vezes – por exemplo, no prefácio a Gli immediati dintorni: primi e secondi, de Vittorio Sereni[8] – o epigrama citado por Possídio no final de sua biografia de Santo Agostinho. A intenção do poeta latino era celebrar a função eternizante da poesia, mas esses dois versos servem bem para representar a reativação do texto e da obra pelo leitor: Vivere post obitum vatem vis nosse, viator? Quod legis, ecce loquor; vox tua nempe mea est (“Queres saber, viajante, se o poeta vive após a morte? Tu lês, e então eu digo: a tua voz é a minha”[9]). A poesia revive, ou antes, vive literalmente na leitura. Ora, se a literatura conta enquanto simulação de experiências, não se pode ignorar o fato de que cada experiência é contextual. Dito de outra maneira, quem ensina, ensina sempre a alguém: e qualquer um dos sujeitos implicados leva consigo um conjunto de contextos que não podem ser desconsiderados (ainda que seja obviamente necessário olhar com cuidado os devaneios impressionistas). (…)

Concluo. Talvez fosse possível considerar que uma certa familiaridade generalizada com a experiência literária se cumprisse na universidade de um tempo atrás. Os estudantes, pelo menos na Faculdade de Letras, nutriam um interesse consistente pela literatura: se não por todos os autores do nosso cânone histórico-literário, ao menos por muitos clássicos da modernidade. Não sei se essas circunstâncias se reproduzem hoje em alguma ilha privilegiada do arquipélago acadêmico. Pessoalmente, dou aula em cursos de graduação nos quais a literatura não é uma prioridade no pensamento dos estudantes, então não posso não colocar para mim como problema despertar-lhes interesse. Esforço-me sim para fazer com que as leituras que proponho interajam com suas consciências – entende-se com isso nos modos próprios da literatura. Sei com certeza que não consigo com todos, nem – temo – com a maior parte, mas me alegro por conseguir ao menos com algum. Com todos tento, entretanto, exigir que percebam a densidade do texto literário, a gravidez no uso das palavras, a complexidade da construção do discurso, a importância dos temas tratados. Tudo isso não será suficiente para que ocorra uma experiência estética verdadeira; mas se nesse ínterim eu conseguir não suscitar um desgosto excessivo, uma reação de repulsa pela literatura em geral, poderá valer, quem sabe, como pressuposto ou plataforma para experiências futuras. Não é muito, mas é melhor do que nada.

* Tradução do excerto por Cláudia Alves. Texto na íntegra em: http://www.doppiozero.com/materiali/cosa-serve-la-letteratura. Mario Barenghi é crítico literário e professor de literatura italiana contemporânea na Universidade de Milão.

[1] Disponível em italiano, La letteratura se iniziassimo davvero a estudiarla: http://www.doppiozero.com/materiali/la-letteratura-se-iniziassimo-davvero-studiarla.

[2] Em inglês, The Instruction of Imagination: Language as a Social Communication Technology (2015): http://www.oxfordscholarship.com/view/10.1093/acprof:oso/9780190256623.001.0001/acprof-9780190256623?rskey=4hjRbX&result=2.

[3] Em italiano, “Servono per vivere: verso un’educazione all’uso della letteratura”, no volume La didattica della letteratura nella scuola delle competenze (2014): http://www.edizioniets.com/scheda.asp?n=9788846739445.

[4] Disponível em português. A literatura em perigo, trad. Caio Meira, Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

[5] Disponível em português. Literatura para quê?, trad. Laura Taddei Brandini, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. Sugestão de leitura dada aqui no blog, no post https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2016/06/07/afinal-por-que-pensar-sobre-literatura/.

[6] Em italiano. Allegro ma non troppo con Le leggi fondamentali della stupidità umana (1988): https://www.ibs.it/allegro-ma-non-troppo-con-libro-carlo-m-cipolla/e/9788815019806.

[7] “Em primeiro lugar, não fazer mal.”

[8] Em italiano. Gli immediati dintorni. Primi e secondi (2013): https://www.ibs.it/immediati-dintorni-primi-secondi-libro-vittorio-sereni/e/9788842819394.

[9] Tradução do italiano: “Vuoi sapere, viandante, se il poeta vive dopo la morte? Tu leggi, ed ecco io parlo: la tua voce è la mia”.

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