Deixem os radicais serem livres

Black_bloc

Eu tenho um amigo artista que adora ver fractais nas coisas – esses padrões que se repetem na natureza entre escalas macro e micro, sabe!? Esse meu amigo me fez pensar num fractal que beira uma piada infame: os radicais livres.

O escritor de sci-fi Isaac Asimov já fez comparação parecida de populações humanas e de moléculas e até que faz algum sentido. Pense bem: os radicais políticos da nossa sociedade são como moléculas instáveis, altamente reativas, cujas opiniões e atitudes conseguem se alastrar rapidamente, colocando fogo em mentes e corações – e eventualmente em coisas. Em certo sentido poderia se dizer também que frequentemente são “fogo-de-palha”: o radicalismo disseminado se aquieta tão rápido quanto se alastra, com uma área de ação limitada. Em ambos os casos chamamos esses “altamente reativos e instáveis” sujeitos de “radicais livres”.

Radicais Livres versus Radicais Livres

Da mesma maneira que um radical político é aquela pessoa que se torna “extrema” por carregar a convicção muito forte de que há algo muito estranho na sociedade, os radicais livres também têm algo incomum que os deixa extremamente reativos: elétrons. Quando uma molécula fica com um elétron desemparelhado (geralmente por quebra homolítica de ligações) ela se torna um radical, uma molécula que não está dentro da regra do octeto e que por isso com muita pouca energia é capaz de reagir com outras moléculas, formando novos radicais – igual seres humanos, só que com regras bem mais complexas.

Radicalizando contra os radicais

Como deu para perceber com os amigos e familiares com quem você talvez tenha brigado nessas últimas eleições, radicais geram radicalismos também na “direção oposta”. Se a natureza é uma das principais fontes de radicais livres, o radicalismo oposto é a vida, que conseguiu sobreviver a opressores raios UV, raios gamma e os mais variados compostos oxidativos até se diversificar e milhões de anos depois acabar sendo capaz de ler esse texto. Talvez o melhor exemplo desse radicalismo anti-oxidativo que a vida se tornou são as bactérias do gênero Deinococcus.

Deinococcus_radiodurans

Essa é a carinha da Deinococcus radiodurans.

Uma das bactérias mais famosas desse gênero é a Deinococcus radiodurans, que sobrevive a uma quantidade de radiação gamma (a mesma que gerou o Íncrível Hulk) 20000 vezes maior do que a permitida para astronautas em missões espaciais – e sem se tornar uma mutante. Isso só é parte da grande característica das bactérias do gênero Deinococcus de “radicalizar” na proteção a danos moleculares. No dano causado por radicais livres (danos oxidativos), que pode ser um efeito indireto da ação dos raios gamma, as espécies de Deinococcus possuem estratégias que vão além das usuais para se proteger de radicais livres: esses seres vivos diminuem seu tamanho celular eliminando água; com menos água, menor a probabilidade de se gerar espécies reativas de oxigênio provenientes das moléculas de H2O, além de “concentrar” o citosol de moléculas responsáveis por reagir e “conter” esses radicais livres – sim, os antioxidantes – que existem em grande quantidade nas Deinococcus.

No ponto de vista de “engenheirar” soluções biotecnológicas, entender os extremos é uma maneira importante de entender como as coisas “normais” funcionam, e como podemos resolver problemas com esse conhecimento. É um jeito de entender a nós mesmos. O mesmo vale para os radicais políticos.

Radicais livres, “malvados” e naturais

Igual ao termo “black block”, os radicais livres químicos também já são populares. Hoje é muito fácil encontrar embalagens de cosméticos e de “alimentos saudáveis” com os termos “antioxidantes naturais” que inibem os “radicais livres” – essas coisinhas químicas malvadas. A associação dos radicais livres com algo ruim é natural porque estão intimamente relacionados com o envelhecimento e o câncer [3] – duas coisas muito cotadas para ganhar dinheiro de pesquisa, inclusive se for para estudar isso nas Deinococcus.

Além de produzidos por radiação, eles são produtos naturais do nosso metabolismo aeróbio [4]. Desde quando a atmosfera terrestre passou a se tornar oxidante (por causa do oxigênio, há!) há milhões de anos [1], a vida começou a se tornar esse joguinho cada vez mais complexo de conduzir elétrons através de moléculas estranhas. É como um circuito eletrônico, em que os caminhos de condução devem estar isolados uns dos outros para evitar curto-circuito e o dispositivo realizar sua função. A célula é como um circuito com um isolamento quase perfeito, e é essa pequena falta de isolamento que faz os elétrons irem aonde não devem, formando radicais livres [1].

Parte da “função” desse fluxo eletrônico da célula, no final das contas, é armazenar informação. Você não é apenas um agregado aleatório de moléculas, você é um agregado de moléculas com uma certa ordem e arranjo específicos, e isso é informação. O envelhecimento é causado por perda dessa ordem ao longo do tempo, e os maiores culpados disso até agora são os radicais livres. Eles reagem com o DNA podendo causar mutações e estão associados diretamente com o encurtamento dos telômeros [3] (que é uma espécie de “medida” de idade celular). Essa perda de informação se dá até de outra maneira (ainda mais literal) com a ação dos radicais livres em proteínas, como no caso do Alzheimer. Nesse caso os radicais livres contribuem para a formação de agregados proteicos tóxicos nas células do cérebro, associados com o desencadeamento da doença.

O bom é o equilíbrio

Apesar da doença de Alzheimer, radicais livres no cérebro não geram apenas danos. O radical livre óxido nítrico (NO) por exemplo, é um neurotransmissor regulador cardiovascular muito potente – tanto que o Viagra interfere no mecanismo de regulação mediado naturalmente pelo NO para ter seu efeito. A visão dos radicais livres como simplesmente vilões começou a mudar com o radical superóxido (molécula de oxigênio com um elétron a mais) que deixou de ser considerado meramente como um subproduto nocivo do metabolismo para ser uma das peças fundamentais na bioquímica do sistema imunológico. Hoje sabemos que vários genes são diretamente regulados por ação de radicais livres que interagem com fatores de transcrição para a ativação e/ou inibição da expressão gênica [3], em outras palavras: os radicais livres não são meras fontes de dano que levam à morte, mas estão profundamente ligados com a própria regulação da vida em si.

Indo de volta para a visão macro do nosso “fractal”, os radicais políticos teriam papel semelhante: são mais do que membros “extremistas”. Eles estão ligados profundamente com a regulação da própria política  em si. São, assim como os radicais livres químicos, algo do que a sociedade precisa se proteger mas ao mesmo tempo algo que faz parte do seu próprio sistema imunológico. São os radicais que chamam a atenção, seja para a direita ou para a esquerda, de que algo precisa ser debatido. São os vistos como “radicais” que têm a coragem de entrar no campo cinzento da moralidade para redefini-lo com o tempo. Sobretudo, são os radicais que são a melhor indicação da saúde política: havendo um certo equilíbrio e limites, são a caricatura de uma pluralidade e flexibilidade política que uma democracia precisa ter.

Esse é o meu ponto como advogado-do-diabo dos radicais livres. Precisamos entendê-los como sujeitos de um equilíbrio natural. Por isso, assim como é errado chamar qualquer manifestante de “black block” sem ao menos saber o que é isso, é também errado para radicais livres específicos chamá-los de “ROS” (reactive species of oxygen) sem saber direito o que de fato esses radicais fazem. É como a pesquisadora principal do CEPID Redoxoma, Ohara Augusto, menciona na newsletter do grupo:

…abreviações são úteis quando têm significados específicos. ROS não é verdadeiramente uma abreviação porque agrupa moléculas com propriedades químicas e biológicas completamente diferentes.

Ou seja: é errado colocar tudo num mesmo saco porque isso pode acabar atrapalhando o entendimento das coisas. Assim como posicionamentos políticos podem ter os mais variados espectros, os radicais livres podem ter as mais diferentes reatividades, estruturas e fontes de produção – tornando-os na prática bem diferentes uns dos outros (veja na figura abaixo).

Tabela reatividade radicais

Todos são “radicais”, mas com reatividades bem diferentes.

Bons ou maus, úteis ou inúteis, tudo isso depende do contexto, e o principal contexto é entendê-los melhor, saber como eles funcionam – sendo radicais químicos ou políticos. Por isso, vamos parar de achar que a existência de radicais é algo errado. Independentemente do que achamos deles, a natureza é muito mais do que esse preto-no-branco. Ela é livre para ser esse incrível caos organizado – então deixem os radicais serem livres também!

Referências

[1] McCord, Joe M. “The evolution of free radicals and oxidative stress.” The American journal of medicine 108.8 (2000): 652-659.

[2] Slade, Dea, and Miroslav Radman. “Oxidative stress resistance in Deinococcus radiodurans.” Microbiology and Molecular Biology Reviews 75.1 (2011): 133-191.

[3] Kim, Hyon Jeen, et al. “Modulation of redox-sensitive transcription factors by calorie restriction during aging.” Mechanisms of ageing and development 123.12 (2002): 1589-1595.

[4] Ohara Augusto and Sayuri Miyamoto. “Oxygen Radicals and Related Species”. Principles of Free Radical Biomedicine. Vol. 1, chapter II (2011).