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Prehistoric Planet: um (baita) exercício de especulação

A semana é boa quando você acaba sendo agraciado com 40 minutos diários de Mesozóico. Agora que terminamos de ver Prehistoric Planet, a série mais do que hypada da Apple TV+, que tal refletirmos sobre a origem do estilo especulativo da série?

Quando saíram os primeiros sinais do que era Prehistoric Planet, escrevi um texto a respeito de como a nova série de documental viera para repaginar (e talvez até substituir) a clássica ‘Caminhando com Dinossauros’. Era uma aposta óbvia: em mais de 20 anos, nenhuma outra produção sobre dinossauros conseguiu atingir o mesmo nível e impacto, e Prehistoric Planet parecia estar aqui exatamente para isso. E, embora muita gente siga comparando as duas séries, percebi que a grande inspiração da produção da Apple TV+ não era o clássico de 1999, mas sim um… livro.

Capa do livro “All Yesterdays” – A melhor dica de livro que você vai receber hoje.

All Yesterdays é um livrinho simpático e aparentemente inofensivo. Creditado aos paleoartistas John Conway e C.M. Kosemen e ao paleontólogo Darren Naish. A proposta da obra é realizar uma releitura das representações paleoartísticas do Mesozoico, assumindo dinossauros como seres vivos e não gigantes sanguinários com tendência a berrar e mostrar os dentes 24 horas por dia. Sentiu uma semelhança com Prehistoric Planet? Calma que é só metade da história.

Um Allosaurus e um Camptosaurus apenas se encarando, sem segundas intenções. Porque o predador não precisa estar caçando e a presa não precisa estar fugindo 100% do tempo.

Desde o chamado “Renascimento dos Dinossauros”, nos anos 1970-80, uma tendência dos paleoartistas foi representar esses animais como organismos complexos e atléticos, mas magrelões secos, verdadeiros sacos de ossos. Isso não é de se surpreender, uma vez que tecidos moles raramente são preservados, restando aos paleoartistas reimaginar essas criaturas tendo apenas os ossos como base.

Greg Paul é um dos maiores nomes da paleoarte e do Renascimento dos Dinossauros, e suas representações hiper-atléticas e zero gordura destes animais seguem sendo uma das mais influentes e reproduzidas nos últimos 40 anos. Por esse motivo que dinossauros magros são tão comuns na paleoarte. Aqui, um Tyrannosaurus apelão apostando corrida.

Em All Yesterdays, os autores reforçam que os dados científicos publicados devem ser utilizados ao máximo na reconstrução de tecidos moles, incluindo aí músculos, tecidos conjuntivos, penas, chifres e escamas. Com isso, temos uma nova interpretação dessas criaturas, reforçando ainda mais a visão dos mesmos como animais, e não monstros. Um exemplo que ilustra bem o caso é o dos bracinhos dos abelissaurídeos.

Um Majungasaurus agita seus bracinhos num claro sinal de comunicação. Já viu um abelissaurídeo fazendo isso em algum lugar?

Se existem evidências de que os diminutos braços dos abelissaurídeos possuem uma articulação que permite a rotação do membro em vários ângulos e, ainda por cima, cicatrizes musculares que indicam uma alta possibilidade de movimentos, por que não imaginá-los como órgãos de comunicação? E, seguindo essa lógica, porque não reconstruí-los com cores chamativas? Esse é o espírito de All Yesterdays, que foi muito bem encarnado em Prehistoric Planet

O jeito Carnotaurus de dizer “Oi gata, tá afim de ver uma Netflix?”. Cena do episódio 5.

Aliás, qualquer semelhança entre essas obras está longe de ser coincidência: o já citado paleontólogo Darren Naish é o principal consultor científico da série, e John Conway e outros paleontólogos/paleoartistas fortemente ligados ao “movimento” também deram assistência em sua criação.

Confia.

E é exatamente por isso, por conta dessa pegada “especulativa mas baseada no maior número possível de trabalhos científicos”, que Prehistoric Planet está sendo considerada a produção mais fidedigna sobre a vida no Mesozoico (e essa constatação não é apenas minha, mas a de muitos paleontólogos de respeito). Nada de dinossauros se matando como kaijus saídos do quinto dos infernos, mas sim animais bem adaptados ao seu ambiente.

Inclua no balaio da especulação mosassauros utilizando “estações de limpeza” em recifes de corais, Dreadnoughtus disputando direitos reprodutivos com sacos infláveis a la fragata, Quetzalcoatlus fazendo voos intercontinentais, um “Troodon” ateando fogo na floresta para tirar suas presas de seus esconderijos, Triceratops buscando minerais dentro de cavernas, e por aí vai.

Outro momento All Yesterdays: elasmossaurídeos fazendo display com o pescoço fora d’água, presente tanto na série como no livro. Cena do episódio 1.

Nenhum comportamento exibido na série “veio do nada”: com uma equipe de consultores tão grande e experiente, tais suposições foram baseadas ou em evidências fósseis ou por “phylogenetic bracketing“, um maneira de inferir traços em organismos a partir de sua posição num cladograma. Um assunto muito interessante que renderia horas e horas de discussão e, no mínimo, um novo post sobre.

Um exemplo resumido de phylogenetic bracketing: é de se assumir que cuidado parental seja uma condição ancestral em dinossauros, uma vez que tanto as aves (dinossauros modernos) quanto os crocodilos (parentes vivos mais próximos) possuem esse traço. Cena do episódio 4.

Pra cimentar esse jeitão “tão real que parece até de verdade”, temos o estilo documental. Cinegrafistas gravaram as tomadas de paisagens nos quatro cantos do planeta, para então inserirem os dinosauros de CGI nelas (e que CGI, senhoras e senhores… os efeitos são, no mínimo, ABSURDOS). Esse trabalho de câmera (que, inclusive, foi utilizado 23 anos atrás em Caminhando com Dinossauros) resultou numa abordagem muito mais realista, sem os maneirismos permitidos e artificiais de produções 100% animadas (como o caso de Planet Dinosaur).

Dinossauros de CGI em meio a cavalinhas de CGI fugindo de pterossauros de CGI. Ao fundo, nuvens de CGI. Planet Dinosaur pode parecer ser tudo, menos realista.

E, por fim, temos o estilo narrativo. Cada episódio é focado num ecossistema, com vinhetas que mostram como bicho X lida com a vida no ambiente Y: no fim das contas, um episódio se resume a sequências dramáticas sem muita conexão umas com as outras. Essa pegada tornou-se meio que um padrão nas produções recentes, como Planeta Terra II e Nosso Planeta, para citar apenas dois exemplos.

E é exatamente aqui que encontro o calcanhar de Aquiles de Prehistoric Planet (e devo ressaltar que essa é apenas a minha opinião). Ao assistir a série, notei que não existem praticamente nenhuma explicação de como as especulações foram feitas: elas simplesmente estão lá, assumidas como verdade absoluta. Isso é uma falha grave num documentário cuja intenção é transmitir conhecimento. Para entender melhor qualquer comportamento exibido, você ou deve ter conhecimento prévio sobre o assunto ou precisa pesquisar um bocado na internet.

Existe evidência fóssil da língua-pegajosa-armadilha-de-cupim do Mononychus? Não, embora a gente pode supor sua existência por outros detalhes anatômicos. Sei disso por ter visto o documentário? Não. É porque dei um Google depois de assistir. Cena do episódio 2.

O jeitão polido que Prehistoric Planet emula das outras séries de peso da BBC impede um maior teor científico ou mesmo um jargão mais pesado em cada episódio. Isso podia ter sido evitado se houvessem maiores explicações ao longo da narração, ou no mínimo um episódio especial apenas sobre a “ciência da série”. Ou ainda, imitando outros documentários modernos, colocando um “making of” de 10 minutos após a exibição, para deixar claro como foi feita a reconstrução. Infelizmente, o mais próximo disso foram vídeos de 4-5 minutos, lançados como bônus no serviço de streaming e também no canal da Apple TV+, explicando um único caso por episódio. Complicado.

Mesmo com essa ressalva (que considero bem relevante), estou com a maioria: Prehistoric Planet é uma obra excepcional, digna de ser considerada uma das maiores, senão a maior, produção do tipo já feita. O simples fato de trazer essas especulações tão bem baseadas em evidências ao público amplo através de uma produção de altíssimo nível já é louvável e garante um destaque. Na verdade, eu gostei tanto que já estou me preparando para reassisti-la e trabalhar em análises de cada episódio, porque tem pano pra gente discutir aqui!

Porque não é todo dia que somos brindados com Tarbosaurus tirando uma sonequinha <3 Cena do episódio 2.

Link para meu texto anterior: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2022/04/20/de-caminhando-com-dinossauros-ate-prehistoric-planet/

Prehistoric Planet está na Apple TV+: https://tv.apple.com/us/show/prehistoric-planet/umc.cmc.4lh4bmztauvkooqz400akxav

O conteúdo bônus da série pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FIeCzBCLJww&list=PLx-VtE7KiW8zKg7VkRGBV5gguBncOPe-a

Você pode adquirir o ebook de All Yesterdays na amazon.com.br por R$ 20,00: https://www.amazon.com.br/All-Yesterdays-Speculative-Dinosaurs-Prehistoric-ebook/dp/B00A2VS55O/ref=sr_1_1?keywords=all+yesterdays&qid=1653761942&sprefix=all+yester%2Caps%2C227&sr=8-1&ufe=app_do%3Aamzn1.fos.4bb5663b-6f7d-4772-84fa-7c7f565ec65b

A origem dos pterossauros

Hoje (quarta-feira 9/12/2020), acaba de ser publicado um trabalho que traz informações importantes para a compreensão de um grande enigma da paleontologia: a origem dos pterossauros, répteis voadores que dominaram os céus durante a Era Mesozoica.

O trabalho foi publicado na revista Nature e conta com a participação de alguns cientistas brasileiros, que ajudaram a investigar em detalhes um grupo de pequenos répteis que viveu durante o Período Triássico, os lagerpetídeos.

A origem dos pterossauros sempre foi um daqueles problemas cabeludos da Paleontologia. Os pterossauros, para quem não conhece ou não se recorda, são aqueles répteis voadores com asas membranosas, que viveram durante a chamada “Era dos Dinossauros”, intervalo do tempo que se estende de 251 à 66 milhões de anos atrás.

O problema com os pterossauros é que seus fósseis mais antigos (que tem cerca de 208 milhões de anos), já apresentam características tão diferenciadas, que é difícil traçar a origem evolutiva do grupo. Eles já apresentam, por exemplo, dedos das mãos hiper-alongados, crânio super modificado e diversas outras características derivadas muito bem adaptadas para o voo. A comparação com outros grupos de répteis que viveram no mesmo período é bastante difícil, pois não temos registros de fósseis de organismos com características intermediárias. Logo, descobrir onde o grupo se encaixa na árvore da vida tornou-se um desafio.

Diversos grupos independentes de cientistas têm se debruçado sobre a questão ao longo do tempo. Os resultados específicos são bastante contrastantes, mas em uma coisa, pelo menos, temos concordado, eles pertencem a um grupo chamado de Archosauromorpha, que inclui, por exemplo, os dinossauros e os crocodilos atuais. É um grupo muito amplo. Isso serve para você entender a gravidade da questão.

Há muita discordância sobre em que ponto exato dentro dos Archosauromorpha se encaixam os pterossauros. Alguns pesquisadores sugerem que eles teriam derivado de Archosauromorpha basais. Outros, que eles são parentes bem mais próximos dos dinossauros, derivados de avemetatarsálios basais próximo aos lagerpetídeos. Aí entra o estudo publicado hoje.

Arte de Rodolfo Nogueira.

O estudo publicado hoje na revista Nature é assinado por 18 autores, entre eles os brasileiros Mário Bronzati, Sergio F. Cabreira, Lúcio Roberto da Silva e Max Langer. O que os 18 pesquisadores fizeram foi investigar mais a fundo um grupo específico de pequenos répteis arcossauromorfos do Período Triássico (cerca de 237 a 210 milhões de anos atrás), conhecidos como lagerpetídeos. A equipe analisou não apenas detalhes da aparência externa do esqueleto desses organismos, como utilizou também a tecnologia de tomografia computadorizada para observar dentro de seus ossos. Mais especificamente, dentro do crânio.

Os lagerpetídeos viveram onde hoje é a América do Sul, América do Norte, África e Madagascar. Durante o Triássico, estas massas de terra estavam unidas, formando o supercontinente Pangea. Aqui no Brasil, fósseis de lagerpetídeos são encontrados apenas no Rio Grande do Sul, em rochas da Bacia do Paraná.

Um exemplo de lagerpetídeo brasileiro é Ixalerpeton polesinensis, um animal com cerca de 40 cm de comprimento e 15 centímetros de altura, descrito em 2016. Seu fóssil foi encontrado no município de São João do Polêsine, RS. Ixalerpeton é uma das espécies de lagerpetídeos incluída no estudo. Ele tem preservado parte de sua caixa craniana, o que permitiu aos pesquisadores reconstruir o cérebro e ouvido interno do animal.

Fóssil de Ixalerpeton polesinensis (Foto fornecida pelos autores do estudo)

Outras espécies de lagerpetídeos foram analizadas, como Lagerpeton chanarensis, da Argentina, Dromomeron romeri e Dromomeron gregorii, dos E.U.A. e Kongonaphon kely, de Madagascar. Até pouco tempo atrás, lagerpetídeos eram conhecidos apenas com base em ossos das pernas e do quadril (que se preservam mais facilmente nesse grupo), mas descobertas mais recentes têm revelado mais detalhes sobre a anatomia desses animais, como a aparência do crânio, coluna e membros anteriores.

Os pesquisadores reuniram, então, esses fósseis e fizeram um estudo anatômico comparativo, avaliando diversas características destes animais e comparando-as com de outros Arcosauromorpha. A análise filogenética resultante do estudo (uma forma matemática de análise de parentesco) revelou grandes semelhanças anatômicas entre os lagerpetídeos e os primeiros pterossauros. Apontou, inclusive, a existência de um grupo independente, que incluiria ambas as linhagens, chamado de Pterosauromorpha.

Filogenia calibrada no tempo para Archosauria (Ezcurra et al. 2020).

No trabalho são destacadas várias características únicas compartilhadas apenas por pterossauros e lagerpetídeos, incluindo, por exemplo, alongamento dos ossos do antebraço e das mãos. O parentesco muito próximo surpreendeu bastante, pois anteriormente pensava-se que lagerpetídeos deveriam ser mais aparentados aos silesaurídeos e dinossauros. Assim, o atual estudo estabelece um marco importante para o entendimento da origem dos pterossauros.

Outro resultado fascinante do estudo publicado hoje, envolve a biologia dos lagerpetídeos. Algumas características anatômicas indicam adaptações a um estilo de vida bastante ágil. As análises com tomografia computadorizada e reconstrução do cérebro e ouvido interno desses animais, por exemplo, demonstraram que eles tinham sistemas sensoriais típicos de organismos capazes de movimentos rápidos da cabeça e bom controle do movimento dos olhos e do pescoço. Adaptações como essa são observadas em organismos voadores e/ou arborícolas da atualidade. Talvez os lagerpetídeos utilizassem essa sua característica para a captura de presas ágeis, como insetos. O que é reforçado pela anatomia dos seus dentes.

Dentário (osso anterior da mandíbula) direito do lagerpetídeo Ixalerpeton polesinensis do Triássico do Brasil. Foto fornecida pelos autores do estudo.

Se comparado ao sistema sensorial dos pterossauros, lagerpetídeos tinham basicamente as mesmas adaptações no cérebro e ouvido interno. Isso pode sugerir que características sensoriais vantajosas para o voo evoluíram antes mesmo do voo em si nos Pterosauromorpha (uma pré-adaptação).

Outro ponto interessante é o formato das garras das mãos dos lagerpetídeos, bastante curvadas, o que indica uma função diferenciada dos membros anteriores. Os autores sugerem que elas podem ter sido selecionadas devido a um estilo de vida arborícola (para ajudar a escalar) e/ou utilizadas para a aquisição de presas. O que é interessante , pois pode sugerir um cenário em que o voo nos pterossauros teria evoluído como uma vantagem para se mover de uma árvore para a outra.

Reconstituição em vida do lagerpetídeo Ixalerpeton polesinensis, do Triássico do Rio Grande do Sul, com estilo de vida arborícola. Arte de Rodolfo Nogueira.

Embora este estudo tenha demonstrado um parentesco entre lagerpetídeos e pterossauros, muitas questões ainda permanecem. Entre elas, talvez a mais perturbadora ainda seja como a principal característica dos pterossauros, as asas, evoluíram. Pode parecer frustrante não ter todas as respostas de uma vez, eu sei. Mas estamos chegando cada vez mais perto. Este estudo nos aproxima um pouco mais da “solução” do grande enigma. Pense pelo lado bom: pelo menos, agora sabemos melhor onde procurar respostas!

Nesta sexta-feira, dia 11/12, às 19h, vamos bater um papo ao vivo no nosso canal do Youtube com um dos autores do estudo. Ative o lembrete para não perder:

Veja o vídeo de divulgação do artigo:

Referência:

Ezcurra, M. D. et al. 2020. Enigmatic dinosaur precursors bridge the gap to the origin of Pterosauria. Nature. https://www.nature.com/articles/s41586-020-3011-4

Leia também:

Padian, K. 2020. Closest relatives found for pterosaurs, the first flying vertebrates. Nature https://www.nature.com/articles/d41586-020-03420-z

A rainha das “cobras-cegas”

Pesquisadores brasileiros em parceria com colegas australianos descreveram recentemente, o fóssil de uma espécie de “cobra-cega”, que viveu no Sudeste do Brasil há mais de 85 milhões de anos. Além de o fóssil ser muito importante para o entendimento da evolução do grupo, a espécie é a maior já encontrada entre as cobras-cegas vivas ou extintas. Boipeba tayasuensis, como foi batizada, tinha cerca de 1 metro de comprimento, e sua descoberta preenche uma grande lacuna na história evolutiva das serpentes Scolecophidia.

Boipeba tayasuensis, uma grande cobra-cega do Cretáceo do Brasil. Arte de Jorge Blanco.

O fóssil de Boipeba foi encontrado no município de Taiaçu no Oeste do Estado de São Paulo, próximo à Monte Alto, localidade já conhecida pela ampla ocorrência de fósseis do Período Cretáceo. O principal responsável pelo estudo foi Thiago S. Fachini, estudante de doutorado, orientado pela Professora Annie S. Hsiou, ambos da USP de Ribeirão Preto. O estudo ainda contou com a participação de outros dois colegas brasileiros, Silvio Onary e Mário Bronzati, e dois pesquisadores australianos.

O trabalho foi publicado dia 19 de novembro na revista iScience e baseia-se na descrição de uma vértebra bem distinta, grande, para uma “cobra-cega”, e com um formato notavelmente achatado. Daí o nome Boipeba, que significa “cobra-achatada” em Tupi-Guarani. O epíteto específico, “tayasuensis”, faz referência ao município de Taiaçu, assim, a combinação do nome da nova espécie fóssil significa “cobra-achatada de Taiaçu”.

A distinta vértebra de Boipeba tayasuensis (Fachini et al. 2020).

Boipeba tayasuensis era uma serpente de médio porte, com comprimento estimado em 1 metro, tamanho bastante semelhante ao de outras cobras fósseis do mesmo período. O interessante, todavia, é o fato de Boipeba ser uma serpente Scolecophidia, ou seja, um tipo de “cobra-cega”. Atualmente, as cobras-cegas são pequenas serpentes escavadoras, de hábitos essencialmente subterrâneos, que tem os seus olhos bastante reduzidos. As espécies atuais de Scolecophidia não ultrapassam 30 cm de comprimento, o que torna Boipeba uma gigante das cobras-cegas. Mesmo as outras formas fósseis conhecidas não têm tamanho comparável ao da “cobra-achatada de Taiaçu”. O fato de ela ser tão grande dá uma pista aos pesquisadores sobre as tendências evolutivas do grupo. A “miniaturização” em Scolecophidia pode ter sido uma tendência mais recente, acompanhando fatores ambientais e ecológicos.

Mas não é só o tamanho que torna Boipeba importante. Fósseis de serpentes são muito raros no Cretáceo, ainda mais na Bacia Bauru, unidade geológica na qual ela foi encontrada. Outros fósseis associados à serpentes já haviam sido descobertos, mas este é o primeiro descrito formalmente como espécie. Boipeba, portanto, amplia o nosso conhecimento sobre a diversidade de organismos do Cretáceo da Bacia Bauru e torna a rede ecológica deste antigo paleoambiente mais complexa.

No Cretáceo brasileiro, o único outro registro inequívoco de uma espécie de serpente é de Seismophis septentrionalis, do Cenomaniano do Maranhão (Bacia de São Luís-Grajaú). Tetrapodophis amplectus, comumente referida como a “cobra com patas” do Aptiano-Albiano da Bacia do Araripe, é questionada por muitos autores e tem uma história bastante complexa (leia mais sobre isso aqui).

Outro aspecto que destaca a descoberta de Boipeba para a Ciência é a idade do seu fóssil. Ela é a espécie mais antiga de cobra-cega já descoberta. Os registros mais antigos de Scolecophidia até então encontrados, eram datados do final do Paleoceno e início do Eoceno da Europa e África (cerca de 56 milhões de anos atrás). Contudo, análises moleculares estimavam o surgimento do grupo para o Cretáceo. Boipeba confirma essa hipótese. A diversificação inicial das cobras-cegas pode ter acontecido na América do Sul e o Brasil pode ter sido um dos palcos principais deste evento evolutivo.

Boipeba estende o registro de Scolecophidia para o Cretáceo Superior do Brasil, preenchendo uma lacuna no espaço e no tempo para a compreensão evolutiva do grupo. As previsões moleculares agora ganharam sustento de evidências paleontológicas.

Boipeba é mais uma descoberta recente que demonstra como o território brasileiro é importante para a Paleontologia mundial. As contribuições que o artigo de Boipeba traz são fundamentais para os estudiosos de evolução de serpentes e, com certeza, atrairão a atenção de paleontólogos do mundo para os estratos rochosos do interior de São Paulo.

NOTA: o grupo mais popularmente conhecido como “cobra-cega” são as cecílias, ou gimnofionas, que são um tipo de anfíbio. As Scolecophidia, um grupo de serpente, todavia, também podem ser chamadas de “cobras-cegas” por conta de seus olhos reduzidos.

Referência:

Fachini, T. S., Onary, S., Palci, A., Lee, M. S. Y., Bronzati, M., Hsiou, A. S. CRETACEOUS BLINDSNAKE FROM BRAZIL FILLS MAJOR GAP IN SNAKE EVOLUTION. iScience, 1-40. doi: https://doi.org/10.101 /j.isci.2020.101834

Novidades sobre as relações evolutivas dos dinossauros

Uma nova e interessante proposta para explicar as relações evolutivas dos dinossauros e principalmente, a origem dos dinossauros ornitísquios, grupo que inclui o Triceratops e os famosos dinossauros “bico de pato”, acaba de ser apresentada por dois pesquisadores brasileiros da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS, Rodrigo Temp Müller e Maurício Garcia. O estudo foi publicado na revista científica Biology Letters e agita ainda mais a discussão sobre as relações evolutivas dos dinossauros.

Arte de Márcio Castro

Não faz muito tempo que um estudo liderado por um pesquisador britânico chamado Matthew Baron, sacudiu a comunidade paleontológica e abriu espaço para novas discussões sobre uma questão fundamental no estudo de dinossauros: a relação evolutiva entre os grandes grupos desses animais.

Em 2017, Baron e colaboradores ressuscitaram uma antiga hipótese sobre a relação dos dinossauros, que propunha que o grupo que inclui os dinossauros carnívoros, como o Tyrannosaurus, era mais proximamente relacionado ao grupo dos dinossauros ornitísquios, aquele que reune Triceratops, Stegosaurus e os chamados “dinos bico de pato”. A hipótese de Baron e colegas veio com algumas novidades, mas já havia sido considerada no passado, tendo sido descartada por diversos estudos em detrimento da proposta mais clássica, que reúne dinossauros carnívoros e os grandes dinossauros “pescoçudos ” em um mesmo grupo chamado Saurischia.

Se quiser ler mais sobre essa história, clique aqui.

O agito causado por esse artigo foi tanto, que, na época, muito se falou na mídia popular, inclusive, como se tudo que sabíamos sobre dinossauros tivesse que ser reescrito. Pouco tempo passou, todavia, até a publicação de um outro estudo, rebatendo a proposta de Baron e colaboradores. Estudo esse, liderado por um pesquisador brasileiro, da USP de Ribeirão Preto, Prof. Max Langer. O estudo liderado por Langer apontava inconsistências no trabalho de Baron e concluía que a hipótese clássica da divisão dos dinossauros ainda se sustentava com prioridade, apesar de a proposta de Baron não poder ser totalmente descartada, já que era somente “um pouco menos provável que a hipótese tradicional”. Leia mais sobre isso aqui.

A história é longa e a disputa continuou em alguns estudos subsequentes, mas aonde eu quero chegar é que, toda essa discussão ressaltou novamente uma verdade muito incômoda para os estudiosos de dinossauros: nós conhecemos muito pouco sobre os primeiros ornitísquios e não conseguimos dizer com certeza como eles se relacionam com os outros dinossauros. E é aí, finalmente, que o trabalho recém-publicado pelos colegas da UFSM pode ajudar. 

Os “caçadores de dinossauros” da UFSM

Rodrigo Temp Müller e Maurício Garcia são dois pesquisadores muito privilegiados, pois têm a honra de estar justamente no local que provavelmente foi o berço dos dinossauros, há aproximadamente 230 milhões de anos. Os fósseis de dinossauros mais antigos conhecidos no mundo são encontrados em rochas dessa idade na Argentina, no sul do Brasil e na porção sul do continente africano. Justamente por estarem trabalhando sobre essas rochas, esses pesquisadores têm acesso direto a fósseis fantástico, que contam a história da aurora desse grupo tão fascinante de animais.

Rodrigo Temp Müller e Maurício Garcia

Atualmente, Rodrigo T. Müller e Maurício Garcia, junto a outros pesquisadores, trabalham vinculados ao Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica (CAPPA-UFSM), em São João do Polêsine, RS, onde se dedicam a estudar a história dos primeiros dinossauros.

A nova hipótese de Müller e Garcia

Verdade seja dita, a origem dos dinossauros ornitísquios é um grande mistério. Enquanto os fósseis mais antigos de dinossauros saurísquios datam de estratos do meio do Período Triássico, entre 245 e 230 milhões de anos, os fósseis mais antigos de ornitísquios são um pouco mais recentes, da transição Triássico-Jurássico, e têm aproximadamente 200 milhões de anos. Explicar esta ocorrência usando a hipótese tradicional sobre da relação dos dinossauros é um pouco constrangedor, pois implica na existência de “linhagens fantasmas” de ornitísquios, que teriam existido entre ‘pouco tempo depois da origem dos dinossauros’, por volta de 240-230 milhões de anos, até cerca de 206 milhões de anos atrás, idade do fóssil mais antigo de ornitísquio conhecido. Resumindo: ornitísquios necessariamente teriam que ter existido entre ~240 e 206 milhões de anos, mas não temos evidências dos fósseis deles.

A nova hipótese proposta por Müller e Garcia solucionaria esse problema de maneira muito elegante, com algo que sempre esteve bem debaixo do nariz dos pesquisadores: os “Silesauridae”.

As criaturas conhecidas como ‘silessaurídeos’ compõe um grupo de organismos extintos normalmente considerados como parentes muito próximos dos dinossauros. De fato, eles e os primeiros dinossauros são extremamente parecidos, tanto em forma, hábitos, quanto em tamanho (imagem).

Fósseis de ‘silessaurídeos’ são encontrados no Brasil, como é o caso de Sacisaurus agudoensis, um pequeno animal, com cerca de 1,5m de comprimento, que viveu há 225 milhões de anos onde hoje é o Rio Grande do Sul.

Reconstituição artística de Sacisaurus agudoensis por Rodolfo Nogueira.

O que Müller e Garcia fizeram em seu estudo foi testar as relações evolutivas dos grandes grupos de dinossauros, incluindo uma ampla amostragem de silessaurídeos (até então tidos como grupo irmão de Dinosauria) e diversas espécies de dinossauros basais. Eles fizeram uma análise filogenética abrangente, que juntou, pela primeira, vez os dados de espécies há tempos conhecidas, com as espécies mais recentemente descritas. Os resultados encontrados por eles foram surpreendentes…

O que uma análise filogenética faz, basicamente, é testar as relações evolutivas dos organismos por meio da comparação de uma extensa matriz de dados sobre eles. Estes dados podem ser genéticos ou morfológicos, ou os dois, por exemplo. No caso dos fósseis, os pesquisadores normalmente usam dados morfológicos (da forma) para realizá-las, pois informações genéticas só ficam preservadas em materiais relativamente recentes (de até algumas centenas de milhares de anos). O produto de uma análise filogenética são um conjunto de “árvores evolutivas” possíveis, mostrando todas as relações prováveis entre os organismos analisados. Algumas árvores são estatisticamente mais plausíveis que outras e, normalmente são essas as consideradas mais atentamente pelos pesquisadores.

Uma incrível descoberta

O que Müller e Garcia recuperaram em suas análises foi algo diferente de tudo antes proposto e muito excitante para os estudiosos de dinossauros, já que tem o potencial de explicar várias questões sobre o início da história evolutiva do grupo. Em especial, o tal mistério das “linhagens fantasmas” de ornitísquios.

De acordo com os resultados do estudo, os chamados ‘silessaurídeos’ seriam, na verdade, uma série de espécies ordenadas sucessivamente na base de Ornithischia. Ou seja, linhagens que teriam gradualmente acumulado características típicas de ornitísquios ao longo de milhões de anos. Essa hipótese preencheria o intervalo evolutivo antes “assombrado” pela ideia de “linhagens fantasmas”.

Os “silessaurídeos” seriam os dinossauros ornitísquios basais “que faltavam”! De acordo com a hipótese recuperada na análise de Müller e Garcia (2020), ‘Silesauridae’ seriam um grupo parafilético, na base de Ornithiscia. Sob esta perspectiva, Sacisaurus voltaria a ser um dinossauro.

Imagem do artigo de Müller e Garcia (2020).

Outros autores já haviam apontado uma possível relação entre silessaurídeos e ornitísquios, mas o cenário evolutivo encontrado por Müller e Garcia é inédito. Os ornitísquios clássicos, segundo o novo estudo, teriam evoluído a partir de formas típicas de silessaurídeos por meio de mudanças graduais ao longo do tempo, partindo inclusive, de uma possível forma carnívora. O que assemelharia o cenário evolutivo dos ornitísquios ao dos saurísquios sauropodomorfos (veja este vídeo aqui para entender).

Todos os ornitísquios conhecidos até o momento apresentam características que os vinculam a uma dieta herbívora, todavia os mais antigos ‘silessaurídeos’ tinham dentes pontiagudos e afiados, possivelmente adaptados para uma dieta carnívora.

Os pesquisadores responsáveis pela pesquisa reconhecem que ainda é cedo para que a questão relacionada a origem dos dinossauros ornitísquios possa ser considerada totalmente respondida. A nova hipótese de Müller e Garcia agora deverá continuar sendo testada à medida que novos fósseis foram descobertos e novas interpretações realizadas.

Nós aqui também estamos de olho.

A nova proposta de Müller e Garcia (2020). Arte de Márcio Castro.
Como ficaria a configuração da nova árvore evolutiva dos dinossauros de acordo com o estudo de Müller e Garcia (2020). Arte de Márcio Castro.

Se você se interessou pelo estudo, você pode ler ele na íntegra AQUI.

Leia também a postagem no blog do parceiro ‘Coelho Pré-Cambriano’: AQUI.

Referência:

Müller, R.T. & Garcia, M. 2020. A paraphyletic ‘Silesauridae’ as an alternative hypothesis for the initial radiation of ornithischian dinosaurs. Biology Letters, https://doi.org/10.1098/rsbl.2020.0417

Cara de Mamífero

Texto por Pedro H. Morais e Maurício Rodrigo Schmitt

Você já se perguntou “como era a cara dos nossos ancestrais, antes deles serem o que somos”? Por exemplo, que cara teria o primeiro hominídeo? Ou o primeiro primata?

Essa pergunta habita o nosso imaginário, principalmente quando diz respeito aos nosso ancestrais e, na maioria das vezes, quem pode nos ajudar a obter essas respostas são os pesquisadores que trabalham com o passado, como os paleontólogos.

Onde sua imaginação te levaria se eu te perguntasse: que cara tinha o primeiro mamífero? Muitos talvez tenham pensado nos grandes mamíferos do passado, como os mastodontes (como Stegomastodon waringi), ou os poderosos tigres-dentes-de-sabre (como Smilodon), ou ainda nas preguiças enormes (como Eremotherium laurillardi) e tatus gigantes (como Glyptodon clavipes). Porém, sinto lhe informar, que você viajou pouco no tempo. 

Uma preguiça gigante (Scelidodon sp.) e um tatu gigante (Doedicurus sp.), ambos encontrados na América do Sul em rochas datadas do Pleistoceno, entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás. Artes de Jorge Blanco (Forasiepi, Martinelli, 2007).

Quando pensamos em um mamífero, o grande grupo de animais ao qual nós, os seres humanos, pertencemos, fica difícil escolher um modelo que represente o todo. Vemos hoje em dia, a enorme diversidade do grupo, que foi capaz de ocupar praticamente todos os ambientes do nosso planeta, das savanas quentes do Brasil e da África, às geleiras mais frias do pólo-norte, das montanhas mais altas do Himalaia, às profundezas do oceano, dos céus, ao interior de cavernas e do solo. Em todos esses ambientes você encontra um exemplo diferente de mamífero. Este grupo de animais se diversificou de tal forma e foi tão moldado pelos ambientes que colonizaram, que é difícil considerar que um elefante, um morcego e um golfinho pertençam ao mesmo grupo e sejam parentes. Talvez, isso se deva ao fato de que a diversidade de formas dos mamíferos hoje é maior em relação aos outros grupos de tetrápodes viventes. Pense nas aves ou nos lagartos ou nos crocodilos, que apresentam, na atualidade, uma variedade bem menor de formas e tamanhos do que os mamíferos (no passado não foi assim, mas esta é outra história). Pensando em tudo isso, qual animal você escolheria para representar os mamíferos? Que mamífero vivo hoje você diria que se assemelha mais ao ancestral de todos os mamíferos, ao primeiro mamífero?

Temos certeza que sua imaginação te deu várias opções, mas, sem querer te decepcionar, a cara do primeiro mamífero seria mais parecida com a de um musaranho ou de uma cuíca (não, não estamos falando do instrumento! Estamos falando do marsupial… Colocamos uma foto abaixo pra ajudar). 

Filhote de cuíca (Didelphimorphia) – Foto dos autores.

O primeiro mamífero era um bicho pequeno, mais ou menos do tamanho de um pequeno gambá, correndo por entre as folhagens de uma floresta, durante uma noite quente do Jurássico (sim, a história dos mamíferos começa no Jurássico).

Atualmente, por consenso, o táxon apontado como o ‘primeiro mamífero’ é Morganucodon, um organismo fóssil encontrado nos EUA, Europa e China. Queremos chamar a atenção aqui para a expressão “atualmente apontado”, porque estes consensos taxonômicos podem mudar a luz de novos estudos, fósseis e evidências.

Reconstrução artísitica de Morganucodon. Seus fósseis são encontrados principalmente em Wales (Reino Unido) e na China, além de outras partes da Europa e América do Norte, em afloramentos Jurássicos. Imagem de FunkMonk (Michael B. H.).

O grupo chamado de ‘Mammalia’ (ou “mamíferos”, em bom português), é definido por um conjunto de características morfológicas compartilhadas por todos os seus membros. Colocando de forma mais simples: pra você ser um mamífero, você tem que ter, ou ter tido, um conjunto de características físicas apontadas como “coisa de mamíferos”. Mas tem um problema aqui. Vários organismos fósseis, muito próximos dos mamíferos já tinham algumas dessas “características típicas de mamíferos”. Isso é um pesadelo para muitos pesquisadores, que acabam por discutir e rediscutir definições…

A definição mais atual e com maior consenso, é a definição filogenética de mamífero, que englobaria Morganucodon e todas as espécies viventes de mamíferos (placentários, marsupiais e monotremados). Nessa definição, varias espécies de mamíferos extintos, que viveram durante a era Mesozoica, estão inclusas no grupo. Basicamente, isso significa que todos os animais que são agrupados numa árvore filogenética entre Morganucodon e os mamíferos atuais, são considerados mamíferos (calma, calma, a gente coloca uma figura, só olhar aí embaixo). Mas, essa definição também é bastante discutida, principalmente porque Morganucodon foi “eleito” como o primeiro mamífero, ou seja, essa é uma escolha arbitrária. Essa problemática de “eleger um primeiro” não é exclusiva dos mamíferos, esse é um conflito constante nos estudos sistemáticos e evolutivos, já que as formas biológicas formam um contínuo, quem tenta classificá-las em grupos artificiais somos nós.

No fim, cada novo achado acrescenta uma nova peça a esse quebra cabeça da evolução e as definições se atualizam com o tempo.

Filogenia simplificada dos cinodontes. Aqui estão apenas algumas poucas espécies da grande diversidade de cinodontes. Note que o grupo que Morganucodon é considerado o início do grupo dos mamíferos, portanto, todos que vierem depois deste grupo na árvore filogenética são considerados mamíferos. E um destaque para Brasilitherium, um fóssil brasileiro que é hoje tido como o fóssil mais relacionado ao grupo dos mamíferos. Modificado de Lautenschlager et al. 2016.

Quais são características presentes hoje nos mamíferos que definem o grupo como tal? Certamente você já ouviu que são as glândulas mamárias, os três ossículos do ouvido, entre outras. Mas para saber mais sobre elas, precisamos voltar no tempo. Mais precisamente, até os períodos Permiano e Triássico (entre cerca de 298 a 201 milhões de anos atrás), quando tais “características de mamífero” começam a ser observadas, gradualmente, em formas mais basais de animais aparentados dos mamíferos.

Durante a transição entre o Permiano e o Triássico, a Terra passou pelo seu maior evento de extinção, conhecido como a Extinção Permo-Triássica. Este evento foi bem maior do que a famosa extinção que dizimou os dinossauros. Essa tal Extinção Permo-Triássica foi tão grande, que causou um “reset” na fauna e na flora do planeta. Durante o final do Permiano (cerca de 255 milhões de anos atrás), os primeiros fósseis de criaturas conhecidas como cinodontes são registrados. Porém, é durante o Triássico que esses animais começam a brilhar no cenário biológico. Infelizmente, todos os holofotes acabam por se voltar para os dinossauros no final deste período, mas, o mundo dá voltas, como vocês verão.

Os cinodontes apresentavam uma grande diversidade de formas e tamanhos durante o Triássico e alguns já apresentavam algumas das tais “características mamalianas”. O curioso é que essas características não estavam presentes somente na linhagem que deu origem aos mamíferos. Alguns grupos de cinodontes completamente extintos, de uma linhagem paralela a nossa (mammaliana), também apresentavam algumas dessas características, que hoje, são consideradas como “coisa de mamífero”. Essa é a razão pela qual o debate sobre a origem dos mamíferos está sempre se modificando atualmente… Uma vez que vários grupos paralelos apresentam características mamalianas, é difícil associar com segurança, que determinado grupo de cinodontes deu origem aos mamíferos ou não. 

Voltando para o assunto “que cara teria o primeiro mamífero?”, você deve estar se perguntando agora “que cara teriam os cinodontes?”. Se você pensou no musaranho ali em cima… você não está de todo errado, porém se você prestou atenção neste texto, você já sacou que eles têm uma grande diversidade de formas, e pasmem, em termos fósseis, o Brasil é um dos países que apresentam a maior diversidade de cinodontes do mundo! Todos eles provenientes do Rio Grande do Sul, o local que apresenta as formações de idade triássica mais fossilíferas do país. O Brasil trouxe ao mundo, por exemplo, os Brasilodontideos, o atual grupo apontado como o clado de origem dos mamíferos. 

A Diversidade de Cinodontes Brasileiros

Antes de tudo, a gente precisa entender como são separados os cinodontes. Basicamente, existem dois grandes grupos dentro do grande grupo Cynodontia, os Cynognathia e os Probainognathia. Calma, a gente vai explicar um pouquinho de cada grupo abaixo: 

Cynognathia inclui organismos completamente extintos. Eles eram em sua maioria herbívoros/onívoros, com exceção de apenas uma espécie, que era carnívora. Eram bichos relativamente grandes, variando do tamanho de um cachorro pequeno até o maior de todos, que podia ter mais de 2 metros de comprimento e pesar cerca de 200kg. Neste grupo existem organismos que já apresentavam algumas características que podem ser interpretadas como “coisa de mamífero”, por exemplo, uma das principais características do grupo (e que pode ser comparável a mamíferos), é a enorme complexidade dos dentes pós-caninos. Os mamíferos possuem um padrão dentário altamente especializado, chamado de tribosfênico. Os Cynognathia, embora não tivessem padrão tribosfênico, possuíam especializações dentária até então não encontradas em outros grupos de Synapsidas. Além da grande especialização dos dentes, recentemente foi encontrado em um cinodonte Cynognathia, chamado de Menadon, com um padrão de dente hipsodonte, de crescimento contínuo, tipo os encontrado hoje em mamíferos como o cavalo e roedores (se você não sabia disso, aqui vai mais uma curiosidade, o dente do seu ratinho cresce pra sempre…por isso ele está sempre roendo algo. Não só ele, como vários outros animais). Essa ocorrência de dente hipsodonte no Menadon é única, e este é o único gênero além dos mamíferos com esse padrão de dente. O mais interessante, é que o grupo de Menadon foi completamente extinto, então a característica que era tida como exclusiva de mamíferos, já tinha aparecido na história dos cinodontes muito tempo antes! Infelizmente, toda a linhagem de Cynognathia foi extinta, então nunca teremos a oportunidade de ver um vivo e verificar como eles realmente seriam. 

Cynognathia, os fósseis desse grupo são muito abundantes na Argentina, como o Massetognathus pascuali, e no Brasil, onde encontramos várias espécies em abundância, como Menadon e Santacruzodon. Abaixo a reconstrução de duas espécies de Cynognathia em um típico ambiente do Triássico, com destaque pra aparência que já lembraria muito a de um mamífero atual. Imagens: Massetognathus (foto do autor) Menadon (Melo et al. 2019) e a reconstrução artística por Voltaire D. P. Neto.

O segundo grupo, Probainognathia, abrange uma variedade de formas gigantesca, já que Mammalia está inclusa neste grupo. Mas, levando apenas os fósseis em consideração, o grupo apresentava mesmo assim uma diversidade de tamanho e de hábitos enorme, variando de um bicho com o tamanho de um cachorro grande (como o Aleodon, que podia ter mais de 1,5 metros), até os Brasilodontídeos (que tinham o tamanho de um pequeno gambá, com cerca de 15cm). Os animais desse grupo são, em sua maioria, classificados como insetívoros ou seja, eles comiam insetos, porém, alguns pesquisadores apontam que eles poderiam ser oportunistas (onívoros, assim como os gambás atualmente), com alguns exclusivamente carnívoros, como o Trucidocynodon. Neste grupo estão incluídos os Brasilodontidae, atualmente tido como grupo irmão de mamíferos, mas que pode ter sido o grupo de cinodontes que deu origem a nós, os mamíferos. 

Probainognathia. Artes de Jorge Blanco (Martinelli et al. 2016; Guignard et al. 2019).

A parte mais fantástica disso tudo, é que muitos desses bichos faziam parte da fauna triássica do Brasil. Eles estão entre os achados fósseis do Rio Grande do Sul, onde é encontrada a maior diversidade de Cynognathia do mundo, além de alguns dos registros mais importantes de Probainognathia, como os já mencionados Brasilodontideos. Talvez, devido ao pequeno tamanho, os cinodontes acabem por perder espaço para os grandes dinossauros na mídia e também no imaginário das pessoas… Apesar disso, imaginar um “pequeno musaranho”, correndo de um dinossauro, numa noite quente do Triássico, está carregado de informações sobre como nós, os mamíferos, conseguimos nos tornar o que somos hoje. Enfim, agora você sabe como era “a cara dos primeiros mamíferos” e também como os fósseis do Brasil são importantes para contar essa história.

Referências

Forasiepi A, Martinelli A. Bestiario fósil: mamíferos del pleistoceno de la Argentina. Albatros; 2007.

Guignard ML, Martinelli AG, Soares MB. The postcranial anatomy of Brasilodon quadrangularis and the acquisition of mammaliaform traits among non-mammaliaform cynodonts. PloS one. 2019 May 10;14(5):e0216672.

Lautenschlager S, Gill PG, Luo ZX, Fagan MJ, Rayfield EJ. The role of miniaturization in the evolution of the mammalian jaw and middle ear. Nature. 2018 Sep;561(7724):533-7.

Martinelli AG, Soares MB, Schwanke C. Two new cynodonts (Therapsida) from the Middle-Early Late Triassic of Brazil and comments on South American probainognathians. PloS one. 2016 Oct 5;11(10):e0162945.

Melo TP, Ribeiro AM, Martinelli AG, Soares MB. Early evidence of molariform hypsodonty in a Triassic stem-mammal. Nature communications. 2019 Jun 28;10(1):1-8.