Uma fauna muito, muito grande, que chamamos de Mega

Texto por Thaís Pansani

Quando se fala de Paleontologia, muitos associam na sua imaginação automaticamente os dinossauros – não os culpo, pois muitas das indústrias (especialmente a cinematográfica) apostam, tradicionalmente, na imagem do T. Rex e dos pescoçudos pra vender seus produtos e conquistar o público. Quantas histórias contadas vocês já ouviram sobre dinos na televisão? Quantos desenhos com alguns mais coloridos, outros mais assustadores, nos cinemas? Quantas camisetas, canecas e até mesmo bichinhos de pelúcia? Até o nome estegossauro é familiar. Agora, tente se lembrar de quantos filmes sobre preguiças-gigantes você já viu no cinema? Essa é mais fácil, porque temos o “Era do Gelo” (pra alegria dos pesquisadores). Mas e se eu te perguntar quantas pessoas na rua você já viu com uma camiseta de tigre-dentes-de-sabre ou quantos bichinhos de pelúcias de gliptodontes (um tipo de tatu gigante com armadura) você já viu? Aposto que não vai ser tão fácil agora. E se eu disser que o nome toxodonte não é tão familiar assim (você provavelmente nunca ouviu falar nele, não é mesmo?). Acontece que há uma história cheia de animais incríveis que existiram (e infelizmente hoje não existem mais), que vai muito além dos dinossauros. Nossos queridos dinos, tão popularmente conhecidos, viveram apenas uma fraçãozinha de tempo no nosso registro geológico da Terra, ocupando a Era Mesozóica, apenas. Eles viveram durante os períodos Triássico, Jurássico (esse é famoso!) e Cretáceo, entre aproximadamente 230 e 66 milhões de anos atrás. Antes e depois desse período de tempo, temos outras eras, divididas entre muitos outros períodos, os quais tinham as mais diversas espécies e em que ocorreram os mais diversos eventos ecológicos, geográficos, geológicos e ambientais. Sinto que o que falta na Ciência, são mais pesquisadores com desejo de difundir informações sobre as espécies que estudam para o público geral. Quem sabe assim, quando se falasse de Paleontologia, aqueles (ainda uma porção pequena) que conhecem essa ciência passariam a ter uma visão mais ampla sobre diversidade e evolução da vida ao longo do tempo geológico. Não desmerecendo a importância dos dinos – nem paleontológica nem na divulgação científica – , mas quero falar aqui de uma outra fauna. Com alguns animais tão grandes e impressionantes quanto os dinossauros e, o mais fascinante, tão recentes, que alguns co-existiram com as primeiras populações humanas.

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Na Era Cenozoica (era atual em que vivemos), a linhagem dos mamíferos se diversificou. Muito do seu sucesso evolutivo se deu devido à extinção dos dinossauros, no final do período Cretáceo (período que encerra a era anterior, a Mesozoica). Os animais que vamos tratar aqui, são especificamente do período Quaternário, a última subdivisão da Era Cenozóica, que se estende até a atualidade. Porém, essa fauna incrível, que vocês estão para conhecer, apenas permaneceu viva até o final do Pleistoceno (cerca de 11 mil anos atrás), extinta por alguns fatores que vamos apresentar no desenrolar dessa história.

Considera-se megafauna todo conjunto de grandes animais. E quando digo grande, são grandes mesmo! Animais com mais de 50 kg, 100 kg, alguns com mais de 1000 kg. Ao longo da Era Cenozóica, uma distinta megafauna de mamíferos evoluiu independentemente em vários cantos do planeta, ocupando os espaços ecológicos deixados vagos pelos dinossauros. São centenas de organismos fascinantes, mas dessa vez, eu vou apresentar um pouco sobre a  fantástica megafauna sul-americana:

1-smithsoniansA América do Sul permaneceu muito tempo isolada ao longo da Era Cenozoica, e isso permitiu com que animais muito estranhos e únicos evoluíssem por aqui nesse intervalo de tempo. A megafauna endêmica de mamíferos da America do Sul é muito específica e alguns dos seus principais representantes foram as preguiças-gigantes, os litopternos, os gliptodontes e os pampaterídeos (vamos conhecer mais sobre eles já já). Assim que o Ístimo do Panamá foi formado, houve um intercâmbio de animais entre América do Norte e do Sul, evento conhecido como “O Grande Intercâmbio Biótico Americano” ou GIBA, para os íntimos. Durante o GIBA, alguns animais típicos da megafauna de mamíferos endêmica norte-americana como os tigres-dente-de-sabre, os ursos, os cavalos e os poderosos proboscídeos vieram parar por aqui. Assim como alguns dos nossos megamamíferos migraram para lá. Terminou, que no Pleistoceno estavam todos juntos… e algumas espécies se perderam nesse contexto, mas isso é história para outra postagem. Vamos nos ater à megafauna endêmica da América do Sul:

As maiores espécies de preguiça-gigante que existiram na América do Sul podiam chegar a ter 6 metros de comprimento e alcançar até 4 metros de altura, quando sobre duas patas. Elas tinham garras enormes que, entre outras coisas, ajudavam na sua proteção. Além disso, apresentavam uma pelagem espessa com pequenos ossículos embebidos na pele, formando uma espécie de armadura. O tamanho e o peso das preguiças-gigantes variava muito entre os gêneros. Nothrotherium, por exemplo, podia ser considerada uma preguiça-gigante “nanica”, mas te garanto que eram muito grandes se comparadas as ‘preguicinhas’ atuais, que vemos em cima das árvores. Falando nisso, as preguiças gigantes eram todas terrícolas, não arborícolas! Nada de ficar de galho em galho descansando (conseguem imaginar o tamanho de uma árvore pra conseguir isso?). As preguiças-gigantes perambulavam pelas vegetações abertas e podiam até fazer tocas com suas garras, seja pra descanso temporário ou habitação. As preguiças-gigantes foram os mamíferos mais diversificados da América do Sul (considerando tamanho, peso, preferências alimentares, etc.), além de o grupo mais amplamente distribuído geograficamente. Uma espécie específica, Eremotherium laurillardi, conseguiu alcançar do sul da América do Sul ao norte da América do Norte, sendo considerada uma espécie “pan-americana”. Pensa no sucesso para se estabelecer em todo canto das Américas!

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Eremotherium, arte de Jorge Blanco.

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Algumas preguiças-gigante em escala.

Os Litopternos são bem menos conhecidos, mas não menos interessantes. Eles eram de tamanho semelhante ao de um camelo e pesavam cerca de 1 tonelada. Tinham o pescoço comprido, pernas longas com três dedos e uma estranha narina entre os olhos, que levou pesquisadores à sugerirem a existência de uma tromba, semelhante à da anta.

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Macrauchenia, um litopterno, arte de Kobrina Olga.

Sabe aquele fusca azul, que a gente não resiste e dá um soco no coleguinha por conta de uma brincadeira clássica? (espero que ainda conheçam essa brincadeira e eu não esteja ficando tão velha). Ele é do tamanho de um glitptodonte, um bicho parecido com um tatu, com uma carapaça alta, cheias de osteodermos ornamentados, caudas robustas e garras capazes de cavar tocas que podiam servir como abrigo, proteção contra o frio ou até mesmo esconderijo de predadores. Na verdade, assim como as pregiças-gigantes, existiram diversas espécies de gliptodontes!

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Dois gliptodontes lutando. Arte de Peter Schouten.

Toxodontes, por sua vez, possuíam um tamanho semelhante ao de um hipopótamo, podendo chegar a 2 metros de altura. Tinham um crânio grande, pescoço achatado, pernas curtas, com patas dianteiras menores que as posteriores e ouvidos na região acima da cabeça. Viviam por vezes associados a cursos de água e, supostamente, tinham hábito semi-aquático. Pelo que se sabe por meio do registro fossilífero, não chegaram na América do Norte, mas conseguiam sobreviver graças a seu hábito generalista, alimentando-se de acordo com a sua localização geográfica.

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Toxodonte. Arte de Jorge Blanco.

É incrível imaginar como a evolução selecionou organismos tão grandes e é tão incrível que ainda se discute na academia o que os levaram à extinção. Algumas das sugestões são: doenças; alterações climáticas e ambientais; a relação com os seres humanos primitivos, afetando direta (ex: pela caça) ou indiretamente (ex: queimada e derrubada de árvores afetando seus habitats) suas populações; ou junção de um ou mais desses fatores. Para cada continente, atribui-se um motivo mais provável para a extinção desses animais. No caso do sul-americano, por falta de evidências substanciais da interação entre ser humano/megafauna no registro paleontológico (diferente de na América do Norte, que esses indícios são bem mais comuns), é pressuposto que variações climáticas e na dinâmica da vegetação tenham sido os principais fatores que levaram esses organismos à extinção. Entretanto, vale salientar que a Paleontologia é uma ciência relativamente nova, principalmente no continente sul-americano. Há a possibilidade de que existam evidências que ainda não investigamos ou encontramos, por falta de cientistas trabalhando com o tema ou por falta de exploração de novas áreas, coletas e/ou organização de dados.

Estudar a megafauna pleistocênica possui uma série de importâncias. A começar pela compreensão da grandiosidade que esse termo “megafauna” carrega. Estamos falando de animais de grande porte que viveram espalhados pelo mundo todo até muito recentemente. Esses organismos passaram por evento de extinção significativo, que concentrou os seus únicos remanescentes atuais nas savanas africanas. Atualmente estamos passando por um processo muito semelhante de perda de espécies, o que significa, que estudar os efeitos da extinção desses animais no passado pode ser muito importante. Além disso, entender a diversidade e como eles se organizavam em comunidades pode nos ajudar a reconstruir todo um cenário ambiental de uma determinada época e/ou de um determinado local. Tente fechar os olhos e imaginar como era a sua cidade há 30 anos atrás. Agora, volte um pouco mais no tempo e tente imaginar há 300 anos atrás. 3 mil anos atrás. 30 mil anos atrás. Expanda sua imaginação para todo seu estado ou a região. Será que o Brasil era desse exato jeitinho, caracterizado pelas mesmas florestas e cursos de rios e sensação térmica há 40 mil anos atrás? Um dos maiores desafios dos paleoecólogos é reconstituir um ambiente do passado com as informações presenteadas pelos fósseis. A partir da dieta inferida pela análise dos dentes da maioria dos animais da megafauna, por exemplo, conseguimos deduzir qual o tipo de vegetação que predominava no ambiente em que este animal viveu, do que ele se alimentava, quão generalista ele era, etc. Fechamos os olhos e conseguimos imaginar um palco em que as cortinas se abrem e temos campos de matas abertas e clima muito mais seco do que o atual, algo completamente diferente do que existe hoje na Mata Atlântica, por exemplo. Onde preguiças terrícolas andavam tranquilamente por uma vegetação mais aberta e menos úmidas e alguns tatus-gigantes migravam em busca de comida e temperaturas mais amenas. Conseguimos também imaginar a dinâmica das populações desses animais, como se reproduziam ou interagiam com as outras espécies. Além disso, conseguimos associar fatores que tenham contribuído para com que o espetáculo de diversidade deste palco imaginário tenha sido encerrado e estabelecer associações com o que ocorre atualmente em nossa biodiversidade, nossas taxas de extinções e as consequências ambientais e ecológicas que o nosso modo de vida pode e já está acarretando. Afinal, vivemos em um constante conflito de uma nova época, que alguns cientistas já denominam como “Antropoceno”. E que talvez possa ter um desfecho diferente, se conseguirmos aprender com o passado.

Há muito a ser descoberto em nossas cavernas mineiras, nossos tanques nordestinos e demais sitios fossilíferos espalhados pelo Brasil – muitos ainda desconhecidos. Acredito que há ainda muitas espécies a serem descritas, muitos paradigmas a serem derrubados e conclusões que nem sequer começamos a imaginar. Não é preciso uma distância de 100 ou mais milhões de anos para nos sensibilizarmos com a maravilha que é um mundo que não existe mais. Parece que foi ontem (em escalas de tempo geológico), mas o panorama que configurava a megafauna sul-americana há pouco mais de 10 mil anos atrás foi completamente diferente do que temos hoje. E isso não é tão apaixonante quanto imaginar grandes dinossauros? Espero que, ao final deste texto, a resposta seja sim, e que só não se tinha esse sentimento ainda por culpa nossa – de nós, paleontólogos, que nos esquecemos de enaltecer as outras facetas da Paleontologia.

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Sobre a autora:

Thaís Pansani é bióloga formada pela UFSCar Sorocaba, atualmente é mestranda em Ecologia e Recursos Naturais pela UFSCar São Carlos e trabalha com megafauna pleistocênica sul-americana e suas relações ecológicas e paleobiogeográficas.


Referências:

Cartelle, 1994. Tempo Passado.

Cartelle, 2000. Preguiças terrícolas, essas desconhecidas.

Ghilardi et al. 2011. Megafauna from the Late Pleistocene-Holocene deposits of the Upper Ribeira karst area, southeast Brazil. Quaternary International, 245: 369-378.

Oliveira et al. 2017. Quaternary mammals from central Brazil (Serra da Bodoquena, Mato Grosso do Sul) and comments on paleobiogeography and paleoenvironments. Revista Brasileira de Paleontologia, 20(1):31-44.

http://revistapesquisa.fapesp.br/2005/07/01/o-mastodonte-e-a-macrauquenia/

Sobre penas e escamas: a nova roupa do rei

Recentemente uma nova publicação causou uma acalorada discussão entre amantes dos dinossauros na internet. Trata-se de um assunto muito mais polêmico que mamilos. Claro, só poderíamos estar falando de PENAS em dinossauros. Ou talvez, nesse caso, a ausência delas.

Polemica

No início do mês Phill Bell e colaboradores, incluindo os Phill Currie, Robert Bakker e Pete Larson (alguns paleontólogos de renome na área), publicaram um artigo na revista Biology Letters intitulado Tyrannosauroid integument reveals conflicting patterns of gigantism and feather evolution, ou, traduzindo: “O integumento de tiranosauróides revela um padrão conflituoso entre gigantismo e a evolução das penas”. Esse artigo foi amplamente noticiado pela mídia geral e foi justamente a causa de uma grande reviravolta na internet. Em especial, entre fãs de dinossauros (e, mais significativamente,  entre aqueles fanáticos por Jurassic Park).

Obviamente, esse foi mais um caso em que a mídia leiga deitou e rolou. Dinossauros… tiranossauro… e penas. Ingredientes mágicos pra escrever besteiras vender notícias/atrair leitores! Um monte de gente que simplesmente não entende nada desses assuntos resolveu escrever sobre isso e pipocaram manchetes como: “O Tiranossauro não tinha penas!”, “Tiranossauro era coberto de escamas, como um lagarto” ou “Jurassic Park estava certo!”. É claro que o corpo das notícias não foi melhor do que isso.

tyrannosaurus-rex-conway-1024x1024Um efeito em cadeia teve início e monte de outras pessoas prontamente compartilhou (sem ler, claro) nas redes sociais a notícia. Uma parte dessas mesmas pessoas, então, começou a advogar a manchete jornalística como a descoberta paleontológica do ano e a verdade definitiva sobre os tiranossauros.

Quando abri minha linha do tempo no Facebook, ela se parecia com isso:
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Depois de me inteirar sobre o assunto, mais uma vez lamentei sobre como uma divulgação mal feita de um resultado de estudo científico pode ser danosa. Um artigo tão legal, sendo mal compreendido e passando a ser usado quase como um “argumento bíblico” por algumas pessoas que não querem, de forma alguma, se desapegar de ideias ultrapassadas. Foi um verdadeiro desfile de falácias. E é por isso que viemos tentar esclarecer um pouquinho esse assunto!

Primeiramente, não podemos deixar de falar, que no mesmo dia que o artigo de Bell e colaboradores foi publicado, um outro artigo magnífico sobre um filhote de ave (Enanthiornithine) do Cretáceo preservado em âmbar de Myanmar saiu do prelo no periódico ‘Gondwana Research‘. Um artigo de grande impacto no meio paleontológico, que passou praticamente despercebido pela mídia e consequentemente, o público geral. Uma pena (me perdoe o trocadilho).

Para não propagar a injustiça, seguem aqui algumas fotos e o link do artigo para quem tiver interesse em ler sobre o assunto:

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Agora, quanto às penas em tiranossauros, é importante começar desde já dizendo que, de tudo que o artigo diz, a única coisa que ele NÃO diz é que tiranossauros não tinham penas. Pronto, falei. Pois é, poderíamos encerrar a postagem aqui.

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O que o artigo trás, na verdade, é a descrição formal de algumas impressões de pele com evidências de escamas em certas partes do corpo de diferentes espécies de tiranossaurídeos (incluindo Tyrannosaurus rex, Daspletosaurus, Tarbosaurus, Gorgosaurus e Albertosaurus) e, a partir disso, os autores discutem a possibilidade de uma evolução paralela dessas espécies gigantes mais tardias, em relação às espécies de tiranossauróides emplumados mais basais (considere aqui os penosos asiáticos Yutyrannus e Dilong – clique nos nomes para acessar os artigos originais com imagens dos fósseis). Basicamente, o que os autores argumentam, é que as espécies tardias  (a maior parte de depósitos da América do Norte) não teriam uma extensa cobertura  de penas como os tiranossauróides basais chineses (NÃO QUE ELES NÃO POSSUIAM PENAS!). A justificativa principal do artigo é que a evolução do gigantismo poderia ter desfavorecido a manutenção de uma extensa cobertura de penas em Tyrannosaurus rex, Daspletosaurus, Tarbosaurus, Gorgosaurus e Albertosaurus. Os autores justificam sua hipótese alegando uma suposta redução na importância das penas na manutenção de calor corpóreo devido à:

1) Homeotermia inercial por gigantismo (i.e. inércia térmica);

2) Uma hipotética atividade metabólica mais alta em algumas espécies tardias ou;

3) A ocupação de ambientes com pressões seletivas distintas. As espécies asiáticas mais basais, por exemplo, habitavam regiões mais florestadas.

Todas argumentações muito pertinentes, que implicam necessariamente na reversão (ou modificação) de um caráter basal do grupo, que É a presença de uma extensa cobertura de penas (veja a figura abaixo). Os autores deixam em aberto a questão sobre se as escamas de espécies mais derivadas seriam ou não produto de uma modificação das penas primitivas observadas em Yutyrannus e Dilong, já que as escamas em Aves atuais não são homólogas às escamas ‘reptilianas’ (ou seja, não têm a mesma origem embrionária), mas sim são resultado de penas modificadas.

Relações de parentesco entre Yutyrannus, Dilong e Tyranosauridae.
Relações de parentesco entre Yutyrannus, Dilong e Tyranosauridae.

Os autores concluem o artigo da seguinte forma:

“Our results, therefore, reveal an intriguing counterintuitive pattern between size and integumentary evolution within Tyrannosauroidea that can only be tested by future fossil discoveries.” – “Nossos resultados, portanto, revelam um intrigante padrão contraintuitivo entre tamanho e evolução tegumentar dentro de Tyrannosauroidea que só pode ser testado por futuras descobertas de fósseis.”

A última frase resume tudo. Uma proposta que somente poderá ser testada com futuras (e melhores ou mais completas) descobertas de fósseis.

Ótimo. Agora que ficou claro tudo o que o artigo quer dizer e aquilo que ele não quer dizer, existem algumas outras coisas que podem ter sido mal interpretadas nele. A primeira, e mais importante, é a imagem sobre as impressões de pele com escamas (figurada alguns parágrafos acima). A imagem dá a impressão – errada! – de que as regiões ‘escamosas’ sinalizadas foram encontradas todas em um mesmo indivíduo/espécime ou que foram encontradas em diferentes fósseis de uma mesma espécie (no caso, como amplamente argumentado por quem não leu o artigo direito: Tyrannosaurus rex). Mas não, ela reúne todas as evidências de impressões de peles das VÁRIAS espécies citadas no texto (veja esta imagem que demonstra mais honestamente o que conhecemos sobre o tegumento de Tyrannosaurus rex, Tarbosaurus e Albertosaurus, respectivamente – de cima para baixo).

2838737845_fa89d35c4a_zSão conhecidas apenas pequenas áreas preservadas de pele para cada espécie, o que nem de longe justifica que o padrão escamoso observado possa ser extrapolado para o corpo inteiro do animal/dos animais. Desde quando, por exemplo, a imagem ao lado seria uma justificativa para avestruzes serem escamosos?

A ausência de penas em algumas partes do corpo do animal não é uma evidência suficiente para afirmarmos que todo o animal era (ou a maior parte dele era) escamoso.

Agora, o oposto (ou seja, que penas estavam presentes nesses organismos, mesmo que ainda não tenhamos encontrado evidências diretas da sua presença) se pode afirmar com certo embasamento lógico. Por quê?!

É importante compreender um princípio básico da Ciência, aqui adaptado à Biologia Evolutiva: é mais parcimonioso supor que um caracter (no caso, penas) se manteve ao longo da evolução de um grupo de organismos, do que que ele tenha sido perdido, revertido ou alterado em linhagens sucessivas. Da mesma forma, por inferência com base nos parentes mais proximamente relacionados, – mais basais ou derivados – (phyllogenetic bracketing), é mais parcimonioso afirmar que as penas estavam presentes em Tyrannosauridae do que que estivessem ausentes.

Não vou nem me estender muito, mas ainda existem ainda outras questões não discutidas no artigo, como a ação de aspectos tafonômicos, que causam desvios preservacionais no registro fossilífero. Inúmeras adversidades naturais (ação de decompositores, exposição prolongada da carcaça, aspectos geoquímicos da fossilização, etc.) poderiam ter desfavorecido a preservação de penas. Os tipos de depósito em que as espécies mais tardias (de Tyrannosauridae) são encontradas, são bastante diferentes do de Dilong e Yutyrannus, que pelas condições de preservação excepcionais pode ser considerado um lagerstätte.

Aos paleobiólogos interessa ainda investigarem possíveis variações ontogenéticas (é provável que em estágios mais juvenis, Tyrannosauridae tivessem uma cobertura mais extensa de penas); e geográficas (espécies de latitudes mais altas apresentariam esse mesmo padrão sugerido no artigo?).

Mais uma vez: o que o artigo de Bell e colaboradores quis dizer, apenas, é que a cobertura de penas nas espécies de Tyrannosauridae citadas no artigo (Tyrannosaurus rex, Daspletosaurus, Tarbosaurus, Gorgosaurus e Albertosaurus) provavelmente seria mais restrita do que em espécies mais basais, de Tyrannosauroidea, e outros Coelurosauria. Não  que elas estivessem definitivamente ausentes! Aceitem: a presença de penas (seja lá em qual extensão pelo corpo) em Coelurosauria (Eumaniraptora, Oviraptorosauria, Therezinosauroidea, Alvarezsauridae, Ornithomimosauria, Compsognathidae e Tyrannosauroidea) já não é mais um assunto em discussão. É um fato amplamente aceito por paleontólogos especialistas em dinossauros.

Fãs de Jurassic Park, por favor, não deixem a emoção sobrepor a razão! E aos outros fãs de dinossauros: leiam sempre os artigos originais ou procurem fontes confiáveis de informação.

Fanboys, vocês ainda não se livraram do T. rex com penas...
Fanboys, vocês ainda não se livraram do T. rex com penas… Arte de Raul Martin.

Algumas leituras adicionais sobre essa questão:

T. rex, Feathers, Scales, and Science
Prejudices skin in the evolution of Tyrannosauridae
Those scales are scales?

Revenge of the scaly Tyrannosaurus 

Não deixe de assistir também o vídeo do nosso colega Pirulla sobre o assunto:

Coleções informais de fósseis

Hoje tropecei nesta notícia, de um senhor já conhecido por sua coleção particular de fósseis na região de Cruzeiro do Sul, no Acre (clique na imagem para ler a notícia): Captura de Tela 2017-06-06 às 14.14.24

O que me fez refletir sobre as coleções informais de fósseis. Devo admitir, que essas são muito mais comuns pelo Brasil a fora do que a gente imagina e isso demanda uma discussão aberta sobre o assunto e não uma “varrida pra debaixo do tapete”.

Abaixo segue uma breve reflexão sobre o caso específico do Sr. Renato Bezerra, retratado na notícia. Procurei atentar para os dois lados da balança, mas, claro, como paleontóloga, sinto a necessidade de esclarecer qual o problema (para a sociedade e a ciência) envolvido nisso.

É polêmico e muito difícil lidar com situações assim. É necessário sempre usar a parcimônia e a lei do bom senso, principalmente pelo fato do Sr. Renato Bezerra ter começado suas atividades há muitos anos e hoje ser um senhor de idade. Certamente, Sr. Renato não reuniu os fósseis por maldade ou ganância. Sua intenção, acredito que posso afirmar, não era vender ou enriquecer com isso. No fundo, ele é um curioso e tem “alma” de cientista (ou pelo menos gostaria de ter), assim como muitos de nós. O que acontece, apenas, é que ele não teve preparo e/ou conhecimento de causa para compreender que o melhor lugar para um fóssil estar é na mão de paleontólogos, em um instituto de pesquisa.

Uma coisa é certa: do jeito que os fósseis estão acondicionados (veja a foto na notícia), eles NÃO podem ficar. Precisam ser curados, precisam ser cuidados (ter um repositório adequado, proteção, etc.). Estamos no século XXI, fóssil não é mais só peça de exposição ou objeto de curiosidade. Fóssil é, sobretudo, informação paleobiológica e paleoecológica (é um pedaço da história da vida no planeta), e precisa ser estudado! Fóssil tem que ter dados de coleta, coleta controlada, identificação adequada e, sobretudo, acesso irrestrito a pesquisadores. Colecionar fósseis implica em problemas sérios como esses: você tem a peça, não sabe direito o que é, de onde saiu, qual era a sua associação, qual o seu contexto, além de ela ficar fechada para toda (ou pelo menos grande parte) da comunidade acadêmica. É um objeto curioso, sem história nenhuma, que não contribui em nada. Fósseis bons já são raros, aí acabam nesses becos sem saída.

É urgente discutir melhor a legislação sobre fósseis. E o que fazer em casos como esse. Proibir? Liberar? Fiscalizar? Melhor fiscalizar? Mais inteligentemente fiscalizar? Aproximar? Afastar? Reprimir? Auxiliar? Orientar?

A coleção do Sr. Renato é uma coleção importante. No mínimo, deveria ser avaliada cuidadosamente por um paleontólogo especialista no estudo dos táxons envolvidos (aparentemente a maioria é megafauna, do Mioceno ao Pleistoceno, alguns fósseis raros) e os fósseis de relevância científica (possíveis novos táxons, etc.) resgatados para uma instituição competente de pesquisa, ou então devidamente curados, para garantir a sua preservação a longo prazo. No último caso, que seja garantida pelo menos a sua exposição ao público (como deseja o senhor), para que não se tornem peças de absoluto inúteis. Assim, pelo menos, mesmo como fósseis vazios, sacrificados pela vaidade e/ou egoísmo humano (ainda que na sua mais ingênua intenção), eles poderiam servir ao nobre propósito de instruir a população sobre a importância dos fósseis e como deveríamos tratar o nosso patrimônio fossilífero. Um sacrifício que se faz com uns, mas é para salvar outros mais.

E você, qual a sua opinião?

Projeto PaleoJr: Paleontologia para a Educação Básica

Olá seguidores do Colecionadores de Ossos! Seguindo no eixo de postagens relacionadas a divulgação científica, trago a vocês mais uma contribuição! Só que dessa vez o projeto de divulgação não está relacionado à um projeto de campo ou ao resultado de trabalhos científicos. Desta vez veremos o relato de um projeto de divulgação feito pelo Laboratório de Mastozoologia da UNIRIO, cujo foco era a educação infantil! A divulgação paleontológica é uma forte ferramenta para encantar e motivar o nascimento de novos pesquisadores, mas, além disso,  criar uma consciência nas crianças de hoje sobre a importância da ciência para o dia-a-dia e sua vida! Com vocês o relato da Dra. Dimila Mothe!


Ensinar conceitos relacionados à Biologia e Geologia para o público infantil é essencial para despertar a atenção, curiosidade e compreensão inicial sobre os processos naturais que nos cercam. Para tal, é importante realizar divulgação clara e objetiva, com o uso de linguagem acessível e didática, para que a dinâmica e o aspecto recreativo da atividade não se perca. O Projeto PaleoJr (PPJr) foi criado quando Eduardo, um menino de 5 anos muito apaixonado por Jurassic Park e paleontologia, juntamente com sua mãe, contactaram o Núcleo RJ/ES com um pedido inegável: uma conversa entre um paleontólogo do Rio de Janeiro e Eduardo, que tinha muitas perguntas sobre a paleontologia e os dinossauros! Assim, a equipe do Laboratório de Mastozoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, coordenado pelo Dr. Leonardo Avilla e Dra. Dimila Mothé, se reuniu, contando com a colaboração de alunos de graduação e pós-graduação, e idealizou o “Projeto Paleo Jr”, com os objetivos de apresentar o estudo de fósseis e biodiversidade pretérita a crianças na faixa etária de 4 e 7 anos, em uma abordagem lúdica e didática, propiciando experiências comuns à vida de um paleontólogo.
Apesar do curto tempo entre o primeiro contato e o grande dia de pôr em prática o Projeto, organizou-se uma série de atividades sobre Paleontologia e como ser paleontólogo. Contou-se com a colaboração dos alunos do Laboratório de Mastozoologia na organização e produção das atividades (que envolveu planejamento e execução de pesquisa, trabalho artesanal, montagem da programação, confecção de uniformes e de “kits paleontólogo”) e do paleoartista equatoriano Pablo Lara, criador do logotipo desse projeto (uma ilustração de um filhote do proboscídeoNotiomastodon platensis com uma lupa e chapéu de paleontólogo, que em breve terá o seu nome escolhido em um concurso cultural – Figura 1). Contou-se também, para a realização deste projeto, com o suporte da FAPERJ, através da bolsa “Cientista do Nosso Estado” concedida ao Prof. Dr. Leonardo Avilla.

Figura 1 - Logo do Projeto Paleo Jr, um filhote simpático e curioso do mastodonte sul-americano Notiomastodon platensis.
Figura 1 – Logo do Projeto Paleo Jr, um filhote simpático e curioso do mastodonte sul-americano Notiomastodon platensis.

Foram conduzidas diversas atividades, sendo a primeira delas uma “linha do tempo” feita de tecido (Figura 2), com cerca de 40m de comprimento, na qual faixas de tecidos de diferentes cores e tamanhos foram unidas de acordo com a coluna estratigráfica  (aproximadamente Cenozóico em amarelo, Mesozóico em azul, Paleozóico em verde e Pré-Cambriano – Proterozóico, Arqueano e Hadeano – em vermelho). Nesta grande linha do tempo, as crianças participantes do Projeto Paleo Jr, Eduardo e Caio, aprenderam e exercitaram os conceitos de tempo, antiguidade, origem da vida e extinção, uma vez que a atividade consistia em “posicionar” no tempo uma série de elementos (fotografias), como uma cidade moderna, homem das cavernas, mamutes, pirâmides do Egito, múmias, pterossauros, dinossauros, trilobitas, vulcões gigantes e microorganismos.

Grande linha do tempo trabalhada com as crianças participantes do Projeto Paleo Jr.
Figura 2 – Grande linha do tempo trabalhada com as crianças participantes do Projeto Paleo Jr.

Ainda, um grande quebra-cabeças ilustrado exemplificou o processo de formação dos fósseis (Figura 3), trazendo imagens de processos naturais do ciclo da matéria orgânica e ainda dos processos bioestratinômicos e fossildiagenéticos. Neste momento, cada criança participante ganhou um “kit paleontólogo” que contou com uma bolsa de campo, pá, peneira, pincel e bandeja, preparando-os para a atividade que mais trouxe empolgação e experiência paleontológica: a “escavação”, realizada em uma piscina inflável repleta de areia lavada e seca, com partes desmontadas de dinossauros de madeira de baixa densidade (mdf) cobertos por porcelana fria (pasta de biscuit em duas cores diferentes, para distinguir os dois “indivíduos” soterrados – Figura 4). Conforme encontradas pelas crianças as peças foram “preparadas”, sendo limpas (removendo-se a areia/sedimento com a ajuda de um pincel), identificadas (coluna vertebral, crânio, membros anteriores, posteriores, bacia e cauda – Figura 5) e montadas, formando o dinossauro completo, que cada participante pôde levar consigo para casa como recordação deste dia único. Não é preciso dizer que encontrar o seu primeiro dinossauro (mesmo que réplica) foi o ápice do dia para as crianças participantes do Projeto PaleoJr que ficaram extasiados com a experiência! Além disso, foi um momento extremamente gratificante e comovente para a equipe do Laboratório de Mastozoologia: colaborar com o aprendizado de crianças tão interessadas na paleontologia (Figura 6)!

Figura 3 - Caio (5 anos, esquerda) e Eduardo (5 anos, direita) montando o quebra-cabeças do processo de formação dos fósseis.
Figura 3 – Caio (5 anos, esquerda) e Eduardo (5 anos, direita) montando o quebra-cabeças do processo de formação dos fósseis.
Figura 4 - Eduardo com um dos dinossauros de mdf e porcelana fria, ainda desmontado e com “sedimento”, recém-coletado
Figura 4 – Eduardo com um dos dinossauros de mdf e porcelana fria, ainda desmontado e com “sedimento”, recém-coletado.
Figura 5 - Caio concentrado na limpeza e identificação dos “espécimes” encontrados.
Figura 5 – Caio concentrado na limpeza e identificação dos “espécimes” encontrados.
Figura 6 - Idealizadores e participantes do Projeto Paleo Jr do Laboratório de Mastozoologia da UNIRIO (sentido horário: Dr. Leonardo Avilla, Karol de Oliveira, Dra. Dimila Mothé, Eduardo, Caio, Alline Rotti e Sabrina Belatto)!
Figura 6 – Idealizadores e participantes do Projeto Paleo Jr do Laboratório de Mastozoologia da UNIRIO (sentido horário: Dr. Leonardo Avilla, Karol de Oliveira, Dra. Dimila Mothé, Eduardo, Caio, Alline Rotti e Sabrina Belatto)!

Os conceitos científicos ensinados neste dia, bem como as habilidades trabalhadas durante as atividades do Projeto Paleo Jr, como organização, pensamento crítico, atenção, capacidade de dedução, coordenação motora, entre outras, estão presentes na vida diária dos cidadãos e são extremamente importantes para o desenvolvimento pessoal, educacional e social de qualquer indivíduo. Sendo a Paleontologia uma área da ciência que está em constante expansão e renovação de seu conteúdo (com novas interpretações e achados inéditos sobre a vida pretérita surgindo frequentemente), é essencial que haja diálogo simples (Figura 7), direto e proveitoso com o público, para que a sociedade conheça o que tem sido feito no âmbito científico em seu país e reconheça sua aplicabilidade e importância na geração de conhecimento. Desta forma, aumenta-se o interesse geral e identificação pela ciência, e incentiva-se a criação ou ampliação de uma cultura científica como um todo. O conhecimento científico, em seus diversos aspectos, permeia a vida de todos, e poucas pessoas se dão conta que os mesmos processos naturais que ocorrem atualmente no planeta já ocorriam há milhões de anos, influenciando e impactando a vida de organismos tão complexos quanto nós, seres humanos, quanto de dinossauros, trilobitas e tantos outros que já “reinaram” na Terra. Visto o sucesso desta experiência do Projeto Paleo Jr, a proposta agora em diante é dar prosseguimento ao Projeto, aprimorando as atividades e as expandindo para outras faixas etárias, como forma de incentivar o conhecimento e a paixão dos futuros paleontólogos brasileiros!

Figura 7 - Conversa entre o presente e o futuro: Eduardo esclarece dúvidas e faz perguntas (sobre dinossauros, claro!) para o Prof. Leonardo Avilla.
Figura 7 – Conversa entre o presente e o futuro: Eduardo esclarece dúvidas e faz perguntas (sobre dinossauros, claro!) para o Prof. Leonardo Avilla.

Foto DimilaDra. Dimila Mothé
Formação: Bióloga, Mestre e Doutora em Zoologia (subárea Paleozoologia) pelo Museu Nacional/UFRJ.
Áreas de Estudo: Sistemática, Evolução e Paleoecologia de mamíferos fósseis, principalmente mastodontes, mamutes e elefantes (proboscídeos). 
Atualmente bolsista de Pós-Doutorado Jr (CNPq) e coordenadora do Laboratório de Mastozoologia da UNIRIO.

Município de Coração de Jesus, uma experiência além do tempo

Olá a todos! Seguindo a vertente de postagens relacionadas à divulgação científica e sua importância, temos aqui outra narrativa acerca da divulgação da descoberta do Tapuiasaurus macedoi em sua cidade natal, o município de Coração de Jesus! Este texto, redigido pelo Me. Natan Santos Brilhante, traz uma perspectiva complementar à postagem prévia sobre o assunto (veja aqui). Espero que gostem!


Sob a mira de olhares curiosos e intrigados, forasteiros em um veículo branco com logotipo (representado pela silhueta de um Tamanduá-bandeira) de uma instituição pública conduziram diversas expedições de coleta de fósseis no norte do estado de Minas Gerais. Os trabalhos na região duraram vários anos, mais precisamente de 2005 até 2012. Entretanto, na perspectiva dos habitantes, quais seriam os motivos que trariam por tanto tempo pesquisadores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP)1 para uma cidade modesta e longínqua?

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Veículo oficial do MZUSP no afloramento. Fonte: Natan Santos Brilhante

Logo MZUSP Atualizado
Logo em evidência, o mesmo visto na porta dianteira do veículo oficial do MZUSP. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Talvez o município de Coração de Jesus seja considerado simples em comparação com as grandes metrópoles brasileiras. Contudo, é uma cidade extremamente rica em cultura, hospitalidade e vivacidade. Em meio a toda a sua diversidade, nunca faltaram pessoas com disposição e prontidão em ajudar, seja para desatolar o veículo quando este enfrentou chuvas torrenciais nas estradas de barro do município, ou para servir com capricho uma boa refeição para toda a equipe depois de um dia exaustivo de trabalho.
 
Outras situações inusitadas fazem parte das boas lembranças, e ocupam as páginas do diário de campo, como o deslocamento de um bloco de grandes dimensões e peso, localizado em área de difícil acesso. Esse material só pôde ser transportado para o alto do barranco graças ao auxílio de um “carro de boi” , gentilmente disponibilizado por José Adão Pereira de Souza, o “Zezinho”, responsável pela descoberta dos primeiros ossos fossilizados expostos na região por ação do intemperismo*.
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“Carro de boi”, comumente usado para auxiliar em atividades de zonas rurais. Fonte: Natan Santos Brilhante

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Moradores do município de Coração de Jesus ajudando a equipe de pesquisa do MZUSP a transportar os materiais. Fonte: Natan Santos Brilhante

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Fragmentos de ossos fossilizados (esbranquiçados) aflorando em meio aos sedimentos por ação do intemperismo. Fonte: Natan Santos Brilhante

E o que falar da amizade do Sr. Israel Cruz e da Sra. Marylene Ferreira que abriram as porteiras da Fazenda Santa Tereza para os pesquisadores trabalharem e que, no entardecer, os acolhia com tanto carinho em sua casa para oferecer um bolo caseiro acompanhado de suco de coquinho azedo***. Vale lembrar ainda do Sr. Amilcar, que nos recebeu em sua residência semelhante a uma “casa de taipa”, a alguns quilômetros dos afloramentos. Sua atitude cordial possibilitou o abastecimento de água para as etapas de coleta, resguardando o uso de recurso potável destinado ao nosso consumo e, consequentemente, evitando a nossa desidratação diante do sol forte e de temperaturas com médias diárias acima dos 40 graus (na sombra). Curiosamente, ele sempre lembrava com precisão o nome de integrantes da equipe que por lá passaram há anos (memória invejável para qualquer taxonomista, não?!).
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Um dos pontos de coleta de fósseis nos domínios da Fazenda Santa Tereza. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Estes foram apenas alguns dos eventos e personagens que fizeram parte das muitas histórias de bastidores que ocorreram durante os trabalhos de campo.
Tal empenho e esforço renderam frutos, ou melhor… fósseis, de dinossauros saurópodes e terópodes, que foram (e continuam sendo) dedicadamente estudados por pesquisadores nacionais e internacionais. Entre as descobertas mais emblemáticas está a espécie Tapuiasaurus macedoi, a partir de um exemplar que detém o mais bem preservado crânio de titanossauro da América do Sul. Essa descoberta recebeu destaque na comunidade científica e na mídia por meio da publicação de um artigo na PLoS ONE4 em 2011 e, mais recentemente, na Zoological Journal of the Linnean Society5 em 2016.
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Coleta de fósseis de dinossauros nos arredores do município de Coração de Jesus. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Equipe de pesquisa do MZUSP protegendo e preparando a retirada dos fósseis no afloramento para serem transportados. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Crânio do espécime MZSP-PV 807 (Tapuiasaurus macedoi). A barra de escala representa 10 cm. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Infelizmente, nem sempre cabem agradecimentos em uma revista científica a cada pessoa que, direta ou indiretamente, colaborou com o desenvolvimento da pesquisa. Eventualmente, estas serão retratadas em outros meios de comunicação, como internet, jornais e rádio. Outra questão recorrente é a falta de acesso e de linguagem adequada a este tipo de conteúdo por público o qual a vida acadêmica não faz parte da sua realidade.
Então, como retribuir o apoio tão caloroso? Como mostrar à população a importância e a seriedade do que está sendo realizado nos arredores da sua cidade? Ou o porquê de estar sendo realizado. Como resposta, cito a seguir alguns dos trabalhos promovidos por alunos, funcionários e professores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, em parceria com o Museu de Ciências da USP – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária2 e o Instituto Butantan3.
As atividades contaram também com o apoio da Prefeitura local e ocorreram a partir de duas frentes principais:
(1) Montagem da exposição itinerante “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”
Abordou temáticas como Paleontologia, Evolução e Dinâmica da Terra, e foi uma remontagem (e recontextualização) de uma exposição com o mesmo título, montada para o Museu de Zoologia da USP, em 2011.
A exposição permaneceu aberta de terça-feira a domingo, durante todo o dia, entre os meses de maio e agosto de 2012. Adentro, o público pôde contemplar fósseis originais e réplicas de diferentes regiões e contextos geológicos, assim como dioramas, vídeos informativos e “paleoarte”. Entre os vídeos, destaca-se um feito com os depoimentos de algumas pessoas da cidade, sobre suas impressões ou sua participação na descoberta dos fósseis.
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Vista geral da exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, em sua primeira montagem itinerante. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Painel com informes e material a respeito do vasto universo da Paleontologia. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Após poucos dias de abertura, a exposição já havia recebido milhares de visitantes, alcançando não apenas os Corjesuenses, mas também cidadãos de municípios próximos e de outros estados . Para se ter ideia em números, a exposição foi visitada por mais de 9 mil pessoas, em uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes!
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Dia de visita. Interação entre o público e a exposição. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Acreditamos que este tipo de realização estimule uma prática de grande importância para a região: o turismo. Afinal, a rotatividade intensa de pessoas pode ser uma importante fonte para a economia regional, uma vez que a cidade está distante de grandes centros urbanos e o comércio se restringe basicamente aos seus próprios habitantes.
(2) Projeto de extensão “Paleontologia sob a perspectiva da Educação Patrimonial: aproximando os fósseis da população de Coração de Jesus”
Foi de caráter educativo e teve o intuito de permitir o reconhecimento do patrimônio fossilífero da região, assim como apresentar questões científicas relacionadas à Paleontologia, relevância desta ciência para o mundo e valor do Patrimônio Geopaleontológico. Foram efetivadas as seguintes atividades:
I. Curso de Formação Continuada de Professores – visou um melhor entendimento do patrimônio fossilífero regional e do conteúdo da exposição itinerante por parte de professores, de modo que eles pudessem promover visitas direcionadas com seus alunos, utilizando ferramentas da Educação Patrimonial e o conhecimento obtido a partir de estudos regionais. Esse evento ocorreu em março de 2012, teve duração de uma semana (40 horas) e contou com a participação de 118 professores e funcionários de escolas públicas estaduais e municipais, tanto de áreas urbanas quanto rurais, divididos em duas turmas.
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Curso sendo ministrado para a formação continuada de professores. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

II. Oficinas nas escolas – promoveu monitorias e oficinas para desenvolver dobraduras e desenhos relacionados à Paleontologia, assim como o contato com fósseis e réplicas. Essa etapa incluiu também a iniciativa “Converse com um Paleontólogo”, promovendo o diálogo direto entre alunos das escolas e profissionais e estudantes de pós-graduação em Paleontologia para discutir e esclarecer dúvidas a respeito da atuação do paleontólogo e a relevância da sua área de estudo. Participaram mais de 600 alunos de 10 escolas públicas (urbanas e rurais), em maio de 2012.
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Colaboradores do Laboratório de Paleontologia do MZUSP em diálogo aberto com alunos de escolas públicas. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

III. Formação de Monitores – prestou treinamento técnico para o atendimento ao público na exposição citada acima, de maio a julho de 2012. Os mediadores eram alunos do Ensino Médio, selecionados a partir de uma parceira junto às escolas. O curso abordou conceitos relacionados à Museologia, Paleontologia e Patrimônio Geopaleontológico, totalizando 24 horas.
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Monitores atendendo o público na exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

IV. Curso de Extensão Universitária – foi ministrado para 16 graduandos em agosto de 2012. Para transmitir ideias gerais sobre o que é a Paleontologia, a sua importância, e o quão promissoras são as descobertas regionais.
Foram desenvolvidos também diversos materiais didáticos para complementar, ilustrar e relembrar muitas das informações transmitidas em sala de aula pelos colaboradores do projeto educativo, como o livreto “Cabeça DINOSSAURO – o novo titã brasileiro”.
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Material educativo. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Além dessas práticas, foram também doadas réplicas do “tapuiassauro” para o Centro Cultural José Alves Macedo, um núcleo histórico-cultural sediado na praça central da cidade. Essa instituição foi fundada e é administrada por Ubirajara Alves Macedo, personagem folclórico e um tanto excêntrico da região, que foi homenageado pela sua colaboração na descoberta e na divulgação inicial dos fósseis com o sobrenome da sua família posto no epíteto específico da espécie supracitada (Tapuiasaurus macedoi).
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A praça central da cidade pode ser facilmente reconhecida pela presença de uma icônica estátua, Sagrado Coração de Jesus, que remete ao nome herdado pelo município. Fonte: Natan Santos Brilhante

Por meio dessas ações de ensino e divulgação, foi possível mostrar à população da cidade de Coração de Jesus a importância dos trabalhos paleontológicos, conscientizando e educando os moradores em como proceder diante de novas descobertas, valorizando assim os ideais de preservação e valorização do patrimônio geopaleontológico. Esperamos com isso resgatar não somente o patrimônio fossilífero, mas também, com empenho, incentivar as futuras gerações de paleontólogos(as) e demais entusiastas da ciência.
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Monitores transmitindo conhecimento aos visitantes da exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Alunos de escolas públicas do município de Coração de Jesus durante uma visita à exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Nota-se a curiosidade e o entusiasmo em suas expressões faciais ao bordarem a temática Paleontologia. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

* A história mais completa sobre a descoberta dos fósseis no município de Coração de Jesus foi relatada em uma matéria do Estadão, um jornal do estado de São Paulo, o qual, na época (2010), dedicou um caderno especial a essa temática. A reportagem contou também com uma série de entrevistas de alguns dos moradores e dos pesquisadores que estiveram à frente das descobertas na região.
*** Coquinho azedo (Butia capitata): planta típica do cerrado rica em vitamina A, C e potássio.
 
Endereço eletrônico de algumas das reportagens sobre o assunto:
I. http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,um-dinossauro-no-coracao-de-jesus,609332
II. http://topicos.estadao.com.br/tapuiassauro
III. http://tv.estadao.com.br/geral,dinossauros-do-brasil-o-trabalho-dos-paleontologos,242506
IV. http://tv.estadao.com.br/geral,dinossauros-do-brasil-entrevista-com-alberto-carvalho,244709
Endereço eletrônico das instituições mencionadas:
1 – http://www.mz.usp.br
2 – http://biton.uspnet.usp.br/mc/
3 – http://www.butantan.gov.br
Endereço eletrônico dos artigos científicos a respeito do Tapuiasaurus:
4 – http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0016663
5 – http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/zoj.12420/abstract


Natan Santos Brilhante

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Formação acadêmica: Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade do Grande ABC, Licenciatura Plena e Bacharelado; Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Zoologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Experiência profissional: elaboração e execução de exposições, treinamento e medeio de monitores, atendimento ao público, expedições de campo (paleontologia e herpetologia) e outros trabalhos técnicos devido a sua colaboração junto ao Laboratório de Paleontologia e à Museologia do Museu de Zoologia da USP, de 2008 a 2013. Após esse período, ingressou no Museu Nacional/UFRJ e, desde então, segue como colaborador no Setor de Paleovertebrados do Departamento de Geologia e Paleontologia.
Área de estudo: Zoologia, com ênfase em Paleontologia de Vertebrados. Atua principalmente nos seguintes temas: Taxonomia de arcossauros fósseis e recentes, curadoria de coleções, coleta e preparação de fósseis de vertebrados.