Carl Sagan Guarani-Kaiowá
CARL SAGAN (1934-1996) entrou na minha vida duas vezes. A primeira foi quando eu era criança e passava as manhãs vendo Cosmos na Globo (ainda não tinham inventado o Show da Xuxa — de fato, desconfio que a própria ainda estava naquela fase “50 Tons de Cinza” avant la lettre). Sagan era tão carismático que eu conseguia me manter atento ao programa mesmo sem entender nada. Até hoje, 30 anos depois, me lembro de sua explicação para o efeito Doppler, que prontamente saí repetindo em ocasiões sociais, para aflição de minha mãe. A segunda vez foi no começo da década passada, quando enfim li seu clássico O Mundo Assombrado pelos Demônios. Se houve um único livro que mudou completamente minha vida foi essa bíblia do ceticismo e do pensamento crítico.
Nesta semana, nerds, ateus e céticos do mundo inteiro comemoram a Semana Sagan, marcada pelo aniversário do cientista, dia 9 de novembro. Este blog resolveu prestar uma homenagem a Sagan relembrando uma de suas maiores contribuições à humanidade: o “baloney detection kit”, ou “kit de detecção de balelas”, numa tradução benevolente.
Trata-se de uma seção de O Mundo Assombrado pelos Demônios na qual Sagan resume falácias argumentativas comuns e explica como desarmá-las. É uma espécie de micromanual de bolso do ceticismo, ferramenta fundamental para cientistas, mas também jornalistas e, na verdade, qualquer pessoa que precise avaliar proposições, de qualquer tipo. O kit funciona especialmente bem com proposições de políticos, que precisam o tempo todo sustentar argumentos contraditórios entre si.
A saraivada de artigos antiindígenas que tem tomado as páginas de opinião dos jornais nas últimas semanas, quando estourou a “nova” crise guarani em Mato Grosso do Sul, presta-se bem ao escrutínio pelo kit de Sagan. Dois textos merecem atenção especial por terem sido escritos por uma missivista especialmente inteligente, a presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), a também senadora Kátia Abreu (PSD-TO). Em suas duas últimas colunas na Folha de S.Paulo, Kátia ataca primeiro a AGU (Advocacia-Geral da União), por ter suspendido uma portaria para lá de controversa que atropelava os direitos indígenas em várias instâncias, depois a Funai, a quem acusa de fomentar conflitos no campo.
Quem acompanhou o debate sobre o Código Florestal no Congresso reconhecerá em ambos os artigos semelhanças mais do que casuais com os pontos de fala da bancada ruralista naquela ocasião. Aqui também se fala de “insegurança jurídica”, “pequenos agricultores”, “soberania nacional” e da sempre presente ameaça das “ONGs internacionais”. Os textos jogam à vontade com estatísticas, escondendo por trás de grandes números (12,64% do Brasil para 517 mil índios versus 39,2% do Brasil para 16,5 milhões de agricultures) realidades regionais díspares, uma tática retórica já comentada aqui e brilhantemente desmontada na própria Folha por Marcelo Leite.
Um eixo argumentativo, porém, merece atenção especial, porque delineia a nova linha de ataque da CNA e da bancada ruralista contra os indígenas: a de que o problema do índio, na verdade, não é falta de terra, é desassistência. Escreve Kátia Abreu, em “ctrl+c ctrl+v” de um texto publicado dias antes pelo presidente da Federação da Agricultura de MS:
É simplificação irreal e equivocada resumir o drama pelo qual passam os 170 índios da etnia guarani-kaiowá a uma simples demanda por terra. As carências dos índios, inclusive os que hoje ocupam dois hectares de uma fazenda no Mato Grosso do Sul, são muito mais amplas. Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público.
A excelente revista Amanhã, do Globo, publicou ontem que a CNA lançará na semana que vem uma pesquisa mostrando as mazelas dos índios, que vão além da terra. Repete-se o padrão de comportamento em torno do Código Florestal: encomendar estudos para dar um verniz científico a uma posição política. Mais do que isso, porém, o argumento incorre em dois problemas saganianos clássicos.
Primeiro, ignora a Navalha de Occam, segundo a qual, se existem várias explicações concorrentes para um mesmo problema, a mais simples tende a ser a correta. Quem, como eu, já andou pelas terras kaiowás, sabe que existe um problema fundamental de carência de território e superpopulação das “reservas”. Os índios passam a depender de assistência do governo (que não chega, causando mortes por desnutrição, alcoolismo e suicídios) porque não têm como se sustentar em ilhas territoriais minúsculas, sem caça e arrendadas a preço de banana para plantadores de soja (frequentemente é a opção que sobra). Sem poder subsistir na terra, o guarani é levado à changa nas destilarias, o que reforça o ciclo de desagregação social — embora eu não ache que a cana seja a culpada pelo drama dos kaiowás, como acusa o documentário pop À Sombra de um Delírio Verde.
O outro problema saganiano da argumentação é apresentar uma dicotomia falsa entre terra e outros problemas sabidamente existentes. Sagan chama isso de exclusão do meio-termo. É mais ou menos como quando um político diz que tirar dinheiro de um programa qualquer criado por seu adversário permitiria construir “x casas populares”. As opções frequentemente não podem ser, e não são, excludentes.
O fato de os índios estarem desassistidos, desnutridos e doentes e precisarem de auxílio do governo (e também, por que não, de alguma simpatia da sociedade “civilizada”, algo de que definitivamente não gozam em Mato Grosso do Sul) não lhes anula uma demanda legítima pelo reconhecimento de terras que são deles. E que, no caso de Mato Grosso do Sul, foram-lhes arrancadas em tempos recentes pelo próprio governo para serem entregues ao “setor produtivo”. E cuja devolução, convenhamos, não vai exatamente quebrar o país: as áreas guaranis já demarcadas, lembra Marcelo Leite, correspondem 0,4% do território de MS. Somadas, são menores que a cidade de São Paulo. Segundo O Globo, só os canaviais ocupam no Estado uma área equivalente a 4,3 cidades de São Paulo. Mais uma vez, é preciso colocar as coisas em perspectiva.
Discussão - 1 comentário
Muito bom seu texto Claudio. Primeira vez que vejo alguém argumentando de forma sensata sobre esse assunto. Parabéns!